A CARNE DO HOMEM (UM ENSAIO E TRÊS POEMAS CARNÍVOROS) – MARCUS FABIANO GONÇALVES

No gado é que dormimos
e nele que acordamos.
Drummond, Boitempo

As pessoas modernas em quase nada diferem daquele bípede implume cuja espécie autonomizou-se geneticamente há cerca de 300 mil anos nas pradarias africanas, já considerada aí a datação das recentes descobertas de fósseis de Homo sapiens no sítio de Jebel Irhoud, no Marrocos, que recuaram em mais de 100.000 anos a nossa saga sobre o globo. O desenho morfofisiológico humano, portanto, permanece praticamente imune às recentes transformações ocasionadas pela revolução agrícola, ocorrida há aproximadamente dez milênios no Oriente Médio. Isso implica dizer que o quadro de nosso genoma prossegue estável, no mesmo lugar evolutivo do paleolítico: no topo de uma cadeia alimentar que suporta tanto o processamento de pequenas fibras vegetais quanto aportes proteicos de fonte carnívora. Simultaneamente ao encurtamento do intestino, a ingestão de ácidos graxos poli-insaturados de cadeia longa, oriundos da carne vermelha, produziram no gênero homo uma progressiva encefalização, triplicando o tamanho de seu cérebro em relação a hominídeos de cinco milhões de anos, como o Australopithecus afarensis. Do bipedalismo à inteligência loquaz, as mudanças nutricionais culminadas no Homo sapiens estabeleceram então um quadro multifatorial de interações complexas entre causas e consequências que fazem a glória e o tormento dos paleoantropólogos dedicados a reconstruir o percurso de nossa aventura evolucionária.

Ferramentas de corte e trituração, precocemente desenvolvidas pelo homo erectus, ulteriormente associadas a técnicas de uso do fogo, reduziram de modo significativo o dispêndio calórico necessário à mastigação e à deglutição. Ao longo de muitos milênios de seleção natural, as alterações metabólicas proporcionadas pelo carnivorismo associado à dieta frugívora repercutiriam em notáveis mudanças anatômicas do homo em relação a seus ancestrais e macacos colaterais: diminuição do volume das dentições (com molares mais chatos e caninos mais curtos), aumento geral da estatura, crescimento do volume e da densidade neural da massa encefálica, bem como alongamento do pescoço, com maior liberação da faringe, ensejando, inclusive, uma inédita condição articulatória para o aparelho fonador. Em face dos primatas quadrúpedes, com a dieta da carne, os nossos antepassados bípedes, de braços liberados do solo e mãos hábeis, armazenaram abundantes estoques energéticos, resfriaram a temperatura do sangue craniano e paulatinamente conquistaram inúmeras características capazes de incrementar a complexidade dos laços de sua organização grupal. Recentes análises de molares fossilizados de neandertais provam que também esses nossos primos eram adeptos do regime carnívoro. Logo, graças a uma formidável autoconstrução pela dieta,  a mão, a mente e as circunstâncias não tardariam em deixar o gene FOXP2 e os neurônios-espelho confluírem no mais extraordinário evento evolutivo da condição humana: o surgimento da fala.

Para a maioria esmagadora dos cientistas especializados em evolução humana – de paleontólogos a geneticistas -,  constitui ponto incontroverso que a passagem a uma dieta também carnívora tenha contribuído decisivamente para o aperfeiçoamento da espécie humana em suas variantes sapiens sapiens e neandertal (Leonard e Robertson, 1994). E agora especula-se que o próprio advento das ferramentas de corte e trituração amaciante teriam sido muito mais relevantes do que se imaginava no processo precursor de ingestão da carne crua fracionada. Ou seja: na disseminação do carnivorismo, tudo indica que as lâminas tenham antecedido o próprio fogo como meio facilitador de acesso às gorduras e fibras musculares. Traços arqueológicos de auroques, bisontes, cervos e mamutes, bem como fragmentos de machados, facas e pontas de flechas e lanças confirmam essa extraordinária articulação entre a caça e a sobrevivência nos fluxos humanos disseminados pelo planeta há mais de 40.000 anos. Entretanto,  esses ares tão primitivos, mais próprios à aurora do homemparecem reatualizar-se de modo surpreendente no atavismo da rusticidade daquelas civilizações absolutamente modernas transladadas para as Américas em condições de estrita precariedade e escassez material. Seguramente por isso, os primeiros colonizadores aqui chegados tiveram de reativar tantas memórias da caça, combinando-as com as técnicas milenares de criação dos animais domésticos.

No século XVII, o gado bovino foi introduzido no sul do Brasil pelos jesuítas empenhados na fundação da Colônia de Sacramento e de diversas reduções catequéticas de indígenas (também conhecidas por missões). Reproduzindo-se descontroladamente em campos abertos, esses touros e vacas logo tornar-se-iam outra vez selvagens no bioma dos pampas latino-americanos, formando imensas vacarias em um período no qual as peles e o sebo eram objeto de comércio com a Europa, enquanto carnes e carcaças simplesmente restavam abandonadas a céu aberto. O resistente laço de couro trançado e a boleadeira apresentada aos europeus pelos indígenas do Prata foram instrumentos essenciais da preia desse gado xucro. E a redomesticação dessa animália estranha à fauna americana daria origem às primeiras técnicas de manejo dos nossos rebanhos de corte e leite, aperfeiçoando nessa labuta certos tipos sociais intimamente ligados ao universo da carne –  do mestiço gaúcho de chiripá e bota de garrão ao vaqueiro nordestino de perneiras e gibão, ambos conectados por sertanistas e pelas rotas comerciais das comitivas de boiadeiros e tropeiros que com seus muares riscavam o traçado de nossas primeiras estradas.

Considerando a introdução dos bovinos como uma verdadeira estratégia de ocupação expansionista, sob a perspectiva da história ambiental, José Augusto Pádua acredita que aproximadamente três milhões de cabeças de gado proliferavam-se pelas regiões da Bahia e de Pernambuco ao redor do século XVIII, isso enquanto a população do território colonial orbitava ao redor de escassas 300.000 pessoas. Espécie exótica e sem predadores naturais, o gado bovino somou-se então à cabra, ao cavalo, às ovelhas e à galinha para a construção de uma paisagem que tampouco conhecia o cajueiro e o coqueiro (Pádua, 2002 e 2010). À época, a pecuária nordestina fornecia carne para as cidades litorâneas e os engenhos mais afastados, além de abastecer tais estabelecimentos com a força de tração para suas moendas e arados. De Salvador até o rio São Francisco, os rebanhos mais ao Sul aproximaram-se das Minas Gerais que tanto demandavam proteína para seus pesados serviços. E já em direção ao Norte, os vaqueiros alcançaram o Piauí, atingindo os atuais estados da Paraíba, Maranhão, Rio Grande do Norte e Ceará. Em diversas ocasiões, Pádua tem feito contundentes críticas ao incremento da pecuária na direção da fronteira amazônica, responsabilizando o modelo agropecuário da matriz bovina associada à soja pela devastação ambiental da região Norte do país.

Os ofícios da carne seguem assim alimentando ritos e memórias míticas revisitados por insólitos cruzamentos entre a remota atividade nômade de caçadores-coletores e o estilo de vida sedentário de agricultores e pastores. Da caverna à querência, da oca ao galpão, do primitivo ao rústico, sempre que alguns homens sentarem ao redor de uma fogueira, cortando um pedaço de carne preparado sobre labaredas e tições, algo de estranhamente familiar e imemorial estará sendo celebrado.

Na enorme caixa de ferramentas conservada em museus e oficinas da criação humana, a faca comparece como um dos mais remotos e permanentes utensílios. Prótese que supre a fragilidade das unhas (garras) pela dureza lacerante de algo mais forte que os próprios dentes (presas), ela tornou-se um prolongamento quase natural de nossa mão. Do paleolítico aos nossos dias, as facas são produzidas a partir dos mais diversos materiais: sílex, osso, bambu, madeira, marfim, obsidiana, bronze, ferro, prata, vidro ou aço. Recentemente passou-se inclusive a fabricá-las de uma duríssima cerâmica, infensa aos mais delicados detectores de metais. Além do cuteleiro forjador, poucos conhecem tão bem o mistério das facas quanto um amolador e um homem da produção e do comércio de carnes. Convém então esclarecer que a palavra carniceiro, no poema que se lerá abaixo, não pretende recriminar algum homicida (embora essa leitura seja também possível*),mas antes apontar, segundo a melhor dicção de seu marcador platino, aquele perito na dissecação da anatomia animal da carnicería, vocábulo que tanto no castelhano como no português da fronteira Sul significa algo bastante próximo aos nossos atuais açougues, palavra de origem árabe formada a partir de as-sūq(mercado, feira ou bazar). 

Entre as inúmeras culturas que se nutrem da proteína animal, o comércio de peças espostejadas progressivamente distanciou-se da sangrenta cena do abate. O que de início era apenas necessidade sanitária, com as delicadezas e higienismos da vida urbana assumiu uma conotação de repulsa às imagens de suplício, esfola, evisceração, retalhamento e desossa das reses. A sistemática ocultação  da matança e dos disjecta membra já sugere a muitas crianças que a alcatra de seus bifes materialize-se diretamente no gancho dos açougues, assim como a carne moída dos hambúrgueres de seus lanches brote em bandejas de isopor nos supermercados. Tudo aí apenas vagamente lembra o boi morto aos olhos civilizados de frigoríficos cujas logomarcas com frequência são concebidas a partir de alegres personagens animais (um bom exemplo é a indústria de laticínios La vache qui rit).  A repugnância à morte das bestas travestiu-se de assepsia para que a carne, logo vendida a peso, continuasse assegurando o deleite das iguarias que com ela são preparadas. Prato principal por excelência de inúmeras dietas onívoras, a seu lado quase tudo converte-se em entrada ou mero acompanhamento**: o legume, o arroz, a farofa, os tubérculos, as saladas, os pães, as sopas. Na indústria da carne, costuma-se dizer que do boi só não se aproveita o berro. Contudo, no mundo do gado vigora uma escrupulosa distinção de nobreza e qualidade entre seus lugares anatômicos e cortes correspondentes, todos eles dispostos a partir do meridiano que divide o traseiro do dianteiro e sempre refletindo uma rígida hierarquia de preços e merecimentos: do macio e suculento filé mignon do steak internacional ao matambre (mata hambre: mata fome), a duríssima capa cárnea situada entre o couro e os costilhares da rês, via de regra deixada aos peões de estância, juntamente com as vísceras (bofes da parilla) e as patas de mocotó (osso buco) destinados à ração das escravarias em caldos e outros cozidos.

Cada vez mais cara por seu elevado custo de produção (que envolve imensos passivos ambientais, amplos espaços de criação e às vezes até o engajamento de trabalho escravo), a carne de boi chega às raias do preço proibitivo em diversos países, majorando-se ainda mais no caso dos abates religiosos certificados como kosher (judaico) e halal (muçulmano). Mesmo assim, ainda sobrevivem algumas sociedades historicamente muito próximas ao gado bovino, e que o consomem fartamente desde uma tradição remontada à sua captura em estado selvagem e ao preparo diretamente em fogo de chão. É bem este o caso do churrasco gaúcho, muito frequentemente acompanhado de farinha de mandioca, testemunho inegável da influência indígena.  Todavia, a própria palavra churrasco guarda uma interessante controvérsia sobre sua origem e sentido. Há quem creia tratar-se de um vocábulo onomatopeico, formado pelo ruído crepitante da gordura a gotejar sobre as brasas, indicando um “quemar o tostar ligera y superficialmente algo”, segundo o Dicionário da Real Academia Espanhola. Acredito, porém, ser mais plausível a hipótese que sustenta ser a origem da palavra churrasco o verbo castelhano socarrar, de raiz pré-romana. No ano de 1495, o dicionário castelhano Nebrija já registrava esse verbo que evoluiria do andaluz e do leonês berceano para o atual churrascar: assar ou chamuscar sobre o fogo. E, segundo o filólogo catalão Joan Coromines, em seu Diccionario crítico etimológico de la lengua castellana, a palavra socarrar possivelmente provenha do basco sukarra, composta por su (fogo) e karra (chama), trazendo para esse substantivo tão corrente no português e no espanhol uma insólita raiz, estranha à família dos idiomas indo-europeus.

Controvérsia semelhante à do churrasco incide sobre o termo inglês barbecue. Especula-se que sua mais remota origem provenha do maia baalbak kaab, com o sentido de “carne coberta com terra”. Essa palavra, por intermédio dos indígenas mexicanos, teria gerado o barbacoa, termo difundido pelos índios taínos do caribe para designar uma carne assada em um buraco com brasas, à época de Colombo. A barbacoa lentamente passaria então aos idiomas espanhol, português, francês e inglês. Porém, há quem sustente que o barbecue provenha do dialeto calabrês, designando o aparato de espetos e grelhas usado para se assar cabritos desde a “barba hasta la coa [cola]”, ou ainda do francês canadense “de la barbe a la queue”, do século XVII. De qualquer modo, a palavra barbecue constitui hoje um anglicismo, e sua referência transporta-nos diretamente aos programas de gastronomia da televisão à cabo, onde se assistem elaboradas competições de assadores norte-americanos preparando carnes fortemente condimentadas com pimentas e pápricas. Ademais, o nome barbecue também dissemina-se pelo uso do molho BBQ, um xarope de milho aromatizado artificialmente com fumaça química e empregado em larga escala em restaurantes como os da rede australiana Outback, especializada em carnes processadas por amaciamento à base de papaína injetável combinada com degradação controlada por resfriamento (maturação).

Na América Latina, subsistem inúmeras modalidades de churrasco. Com a carne enterrada em um buraco recoberto de brasas era o churrasco dos guaranis, por certo influenciado pela barbacoa. Há também entre os gaúchos o matambre salgado com o suor equino recolhido diretamente da carona, o forro dos arreios que ficava encharcado ao tocar diretamente o lombo transpirante do cavalo. E além do prático e corriqueiro espeto de pau, levado sobre o lume ou fincado no chão, difundiram-se entre as  vacarias as grelhas de madeira, provavelmente originadas do moquém tupi, que dariam origem à parilla uruguaia ou argentina, depois preparada sobre trempes e gradis de metal. As carnes e os peixes moqueados eram, além de lentamente cozidos, defumados, alcançando-se assim uma prolongada conservação, motivo pelo qual Câmara Cascudo chama o moquém de “avô do churrasco”(Cascudo, 1967:23). Durante os nove meses em que permaneceu sob o poder do tupinambás, em 1549, Hans Staden testemunhou o uso do moquém inclusive em rituais de antropofagia (Staden, 1835). Ademais, importa assinalar que, no espaço platino hispanohablante, o churrasco é igualmente conhecido por asado, como no caso desse espetacular asado en el cuero no qual um gaucho uruguaio executa, do abate à cocção, todo o ritual de um evento comunitário de exo-cozinha (Lévi-Strauss)  voltado a oferecer um farto banquete a convidados.

Em seu modelo proposto para a antropologia da alimentação, Claude Lévi-Straus discute diversos mitos implicados na tríade cru-cozido-podre. Sobre os Pacomehi do México, por exemplo, afirma que eles interpretam o assado como um “compromisso entre o cru e o queimado” e que “após o incêndio universal,  o que não tinha sido queimado tornou-se branco e o que tinha sido queimado, preto. E o que foi apenas chamuscado, tornou-se vermelho” (Lévi-Straus, 1965). Recordando que Aristóteles já intuíra a diferença fundamental entre alimentos assados e fervidos, Lévi-Strauss sustenta que os primeiros permanecem em relação bem mais direta com a natureza, uma vez que os segundos demandam a dupla mediação da água e do recipiente para o seu preparo. Segundo o antropólogo francês, o assado então corresponderia ao convexo dos acontecimentos comunitários mais voltados à distensão dos laços sociais, enquanto a concavidade das cerâmicas e demais recipientes destinados à fervura gastronômica conviria mais àquela endo-cozinha familiar de laços há muito estabelecidos. Mas ninguém necessita ser altamente versado nos arcanos etnolinguísticos do estruturalismo para cedo reconhecer que um bom churrasco é, via de regra, muito mais uma festa do que uma trivial refeição realizada no recinto doméstico.

Chame-se churrasco, assado ou barbecue, a verdade é que o preparo da carne sobre o calor de fogo e brasas só muito recentemente distanciou-se dos bastidores de uma morte bovina tantas vezes agônica, sendo realizado em churrasqueiras construídas como fornos abertos, com carvão empacotado e peças compradas em um varejo abastecido por moderníssimos frigoríficos, nos quais o tiro, a estocada ou a marretada (capazes de gerar longos sofrimentos) são substituídos pelo atordoamento por pistolas de ar comprimido e diversos cuidados veterinários de redução do estresse animal do assim chamado “abate humanitário”. Além disso, atualmente, em grandes churrascarias comerciais sequer é estranha a troca do carvão e da lenha por assadeiras elétricas ou a gás de cozinha, que demandam muito menos manutenção (inclusive das chaminés) e promovem cozimentos mais controláveis, baratos e homogêneos. Graças a tudo isso, o espanto com a opulência cadavérica de uma rês abatida passaria a ferir cada vez mais a suscetibilidade dos partidários do veganismo e de inúmeras outras dietas contemporâneas com pretensões a autênticos sistemas morais.

As multimilenares relações entre humanos e rebanhos assumiram as mais insólitas formas entre as civilizações. Nesse sentido, Philippe Descola é certeiro ao asseverar que “a revolução neolítica do Oriente Médio não é um roteiro universal cujos efeitos ideais e materiais e condições de aparição seriam transponíveis tais e quais ao resto do mundo.” (Descola, 2005: 83). Entre os antigos gregos, o gado bovino fornecia as valiosas oferendas sacrificiais do holocausto e da hecatombe. E sabe-se que, entre eles, apenas a carne oriunda do sacrifício de um boi de trabalho ou ainda aquela obtida em uma caçada poderia ser consumida. Pelo sistema trinário dessa cozinha do sacrifício, homens e deuses eram reaproximados ao manter-se os animais mais vinculados ao grupo humano, próximos da condição de bárbaros e escravos (Descola, 2005: 85). Assim, em boa parte do espaço mediterrâneo – e podemos aqui recordar a longa tradição da tauromaquia dos minoicos – a antinomia entre o selvagem e o doméstico nutria-se desse contraste entre a caça e a criação, conquanto, já no mundo romano, as coisas se passassem de forma um pouco distinta.

No seu admirável Le vocabulaire des institutions indo-européennes, Émile Benveniste percorre as associações entre o gado e a riqueza humana desde uma perspectiva estruturalista. Ao recordar que peku é o nome indo-europeu de gado, grei ou rebanho, afirma que a raiz pek talvez seja derivada da pelagem lanosa a ser tosqueada dos ovinos, por certo a superfície mais evidente e contável de qualquer besta de criação. De fato, peku deriva do proto-indo-europeu peḱu, tendo por cognato o sânscrito पशु (páśu) que evolui para gasu e daí para o nosso gado. Entretanto, no mundo latino, quais seriam as afinidades mais profundas entre o radical pecus e os significados presentes nos termos pecúnia e peculium? Segundo Benveniste, tais relações não são assim tão diretas como uma atribuição etimológica mais intuitiva faria acreditar. As ideias de riqueza e fortuna em bens, ou suas expressões financeiras e outras formas de representação do valor, paulatinamente se complexificaram e se distanciaram dos rebanhos pela própria abstração ínsita ao valor-moeda, a tal ponto de não ser mais possível encontrar-se alguma atestação mais evidente do vínculo entre termos como pecúlio e pecúnia na sufixação de pecus. Daí conclui o linguista francês que o indo-europeu pekus designou primariamente gado e só de modo muito tardio a pecunia, coisa a que leva a crer a nossa pecuária por paranomásia e, com certa frequência, a associação entre a pujança do mundo econômico e palavras derivadas de pecus, como peculato e especulação. E tal como ainda se fala em “cabeça de gado”, é importante lembrar que o termo capital (fatal, mortal, como em “pena capital”) nasce como adjetivo derivado da raiz latina caput: cabeça, seja da sua ideia de principalidade (o “cabeça do casal” ou a capital de um país), seja da própria decapitação (a perda da vida). Ademais, somente após o Renascimento é que o termo capital deixaria de ser um adjetivo para se estabilizar em seu estatuto de substantivo, designando doravante a riqueza em dinheiro ou bens de um proprietário.

Outra questão relevante sobre os rebanhos diz respeito ao sexo nomeador de seus espécimes. Sociedades de criadores sistematicamente distinguem as nomenclaturas de suas animálias por uma predominância alternativa entre machos e fêmeas. Assim, na nossa língua, cavalosbois e camelos opõe-se ao feminino das cabras e ovelhas do minoris pecudes, o chamado gado miúdo. Como exceção à predominância da nomenclatura de fêmeas para estes animais de menor porte, restariam os suínos que, embora menores, são classificados desde o indo-europeu entre sus e porcus, isto é, respectivamente entre os selvagens caçados (javali, cachaço, cerdo) e os porcos domesticados para abate em varas e chiqueiros. Contudo, tal distinção na cultura porcina só passaria a adquirir sentido desde o momento em que os europeus começaram a criar esses animais para consumo, uma vez que indianos e iranianos parecem jamais ter domesticado porcos em suas antiguidades, enquanto gregos e romanos o faziam com frequência largamente atestada. Nas palavras do próprio Benveniste: “Existiria uma distinção indo-europeia muito importante do ponto de vista da civilização material dos Indo-Europeus, porque sus é comum ao conjunto dos dialetos, do indo-iraniano ao irlandês, enquanto porcus é restrito à esfera europeia do indo-europeu e não figura no indo-iraniano. Tal discordância significaria então que os Indo-Europeus não conheciam o porco doméstico e que a domesticação do animal teria começado somente após a ruptura da unidade indo-europeia, quando uma parte dos povos se estabeleceu na Europa.” (Benveniste, 1966:24-25, tradução minha). Além disso, é de se notar que essa distinção subsiste até hoje em diferenças como a que faz o inglês entre porc (o animal considerado pela carne de predominância alimentar) e pig (o suíno considerado em suas demais características e irradiações metaforizantes, dentre as quais se destacam a sanitária, da chafurdação na lama, a alimentar, ligada aos restos da lavagem, e até a sexual, do pênis em formato helicoidal).

A definição védica de pasu compreende animais quadrúpedes e bípedes: pasu vira. Originariamente, os próprios humanos incluíam-se na riqueza mobiliária da sociedade pastoril indiana, cujos textos mais recuados reportam ritos sacrificiais nos quais o homem é arrolado entre cavalos, bois, cabras e ovelhas (em especial o Satapatha Brahmana, do primeiro milênio a.C.). Ao longo desse mesmo período, textos avésticos reiteram a ideia de pasu vira: o zoroastrismo igualmente menciona rebanhos humanos, muito embora, em iraniano moderno, o significado de pasu se tenha restringido especificamente ao carneiro (Cf. Benveniste, 1966:35). As larguíssimas extensões analogizantes daí oriundas, aprimoradas ainda pelas noções de pastoreio e cuidado, darão ensejo às mais antigas representações dos agrupamentos humanos submetidos a uma direção político-religiosa nas interseções das culturas judaico-cristãs e greco-latinas. Logo, muito mais do que a horda ou o bando,  foi sem dúvidas o rebanho uma das mais antigas compreensões da natureza comunitária do convívio entre os homens, abastecendo ainda primitivamente a experiência desse agrupamento com as noções de igualdade, liderança, autoproteção e interesse compartilhado pela subsistência.

Com efeito, no final da República romana operou-se uma sensível mudança no tocante à valorização do apresamento de animais na ingens silva (Descola, 2005:85). Nos três volumes do seu tratado De re rustica (Das coisas do campo), Marcus Terentius Varro (116-27 a.C.) dedica todo o segundo tomo aos rebanhos de diversas espécies, sustentando ser a criação controlada preferível à caça. Verdadeiro manual de agricultura e pecuária da antiguidade, o livro de Varro trata minuciosamente de sacrifícios, alimentação, crescimento, pelagens, desmame, moléstias, calendários reprodutivos,  abate, preços e até das fórmulas jurídicas aplicáveis à proteção do comércio de rebanhos (Varro, 1843). Obra seguramente conhecida pelos jesuítas que vieram para a América, De re rustica assinala a larga proeminência da matriz romana em nossa indústria de carne. E não seria nenhum abuso interpretativo enxergar, mais de quinze séculos depois de Varro, as tensões entre a caça e a criação da antiguidade, entre o gado selvagem e o doméstico, repetindo-se por aqui, nas vacarias do Novo Mundo.

Além do gado vacum, as vacarias também multiplicavam milhares de mulas e cavalos em prados abertos. Desde a década de 1620, os jesuítas das reduções indígenas foram responsáveis por uma extraordinária intervenção modificadora das paisagens do pampa, um espaço permanentemente conflagrado pelas disputas entre as monarquias ibéricas. Com milhares de cabeças, a grande Vacaria do Mar, que ia da Lagoa dos Patos aos rios Negro e Jacuí, acabaria abandonada pelos religiosos cristãos acossados por saqueadores portugueses e espanhóis auxiliados por índios charruas e minuanos. Eles então formariam, nos campos de cima da serra,  a imensa Vacaria dos Pinhais (Baqueria de los Piñales), dispersada em direção à região Nordeste do atual Rio Grande do Sul, então habitada pelos índios Kaingangues, grandes consumidores de pinhões. O padre jesuíta Roque Gonzáles assim a descreve no século XVII: “Planícies se estendem a perder de vista, descortinando paisagens variadas e rasgando horizontes de dilatada amplidão; alternam com vales risonhos, enquanto lá no alto das serras negreja o verde-escuro pinhal, de copas arredondadas, imponentes no silêncio quase religioso, à luz abafada, onde erguem os braços ao céu, como que em súplica muda, mil candelabros gigantes, formados pelas esguias e possantes araucárias.” (Teschauer, 1909).

Para a maioria dos leitores urbanos será bastante difícil imaginar esses imensos rebanhos bovinos sendo caçados em coxilhas sem fim por incursões de indígenas e colonizadores europeus. Mas uma relíquia cinematográfica recentemente descoberta, realizada em 1927 pelo piloto bávaro Gunther Plüschow, explorador da Terra do Fogo, pode trazer alguma ideia de tais práticas. Filmado em Blumenau, mais de dois séculos após a dispersão da Vacaria dos Pinhais, vemos aí, entre araucárias e rodas de chimarrão, índios xoklengs (botocudos) capturando um novilho a flechadas e em seguida o assando, tudo sob os olhares curiosos dos imigrantes alemães cujos bugreiros foram responsáveis pelo genocídio desta mesma etnia.

Mas esses novos sertões das Vacarias dos Pinhais tampouco tardariam em se tornarem objeto da cobiça de outras províncias e até de nações estrangeiras, como é o caso de São Paulo e da Inglaterra. Já não bastavam a extração do couro e da graxa dos bovinos. Em meados do século XVIII, com a concessão, pela Coroa portuguesa, de sesmarias na Província de São Pedro do Rio Grande, toda a lida pecuária tornava-se muito mais complexa. Castração, doma, cercados, currais, contagens sistemáticas de cabeças, marcação a fogo, seleção de matrizes, ordenhas e queijarias foram gradualmente substituindo a preia do gado alçado, dando lugar a rebanhos selecionados entregues à mercancia dos tropeiros. No século XIX, o surgimento de diversos pontos de arremate de bovinos de criação, no Uruguai e no Brasil, impulsionaria uma pujante indústria do charque na cidade de Pelotas, voltada a alimentar os cativos que trabalhavam nas Minas Gerais. Simões Lopes Neto estima que, até o início do século XX, tenham sido abatidas e salgadas nas charqueadas gaúchas impressionantes 45 milhões de cabeças de gado. Enquanto isso, em 1881, Dom Pedro II, acompanhado de extensa comitiva de políticos, diplomatas e membros da família imperial, inaugurava pessoalmente, no Rio de Janeiro, o moderníssimo Matadouro de Santa Cruz. Destinado a abastecer de carne fresca toda a capital e resolver sérios problemas de salubridade causados por instalações anteriores, esse abatedouro contava com a sofisticada logística de um ramal ferroviário próprio e até com um gerador de energia elétrica, trazendo grande prestígio tecnológico para a indústria da carne bovina, desenvolvendo o comércio local e permanecendo em atividade até as primeiras décadas do século XX.

O encolhimento das propriedades urbanas e a progressiva retirada das bestas de corte e carga do panorama citadino transformariam os bichos mais corriqueiros da vida rural em verdadeiras atrações, tornando-os inclusive objeto de uma afeição outrora reservada exclusivamente à familiaridade protetiva das criaturas domésticas. No seu penúltimo livro, Opus 10, de 1951, Manuel Bandeira publica o célebre poema Boi morto.  Rolando sem vida nas águas de uma enchente,  esse boi não consumido manifesta variados graus de um explícito assombro. Metáfora maior de uma submersão existencial “entre destroços do presente”, os versos memorialísticos de Bandeira, redigidos em pleno Rio de Janeiro, evocam seu Recife natal e o rio Capiberibe da infância do poeta, nascido em 1886. Fascinado pelo arrojo metropolitano dos arranha céus da então capital do Brasil, Bandeira alude a um “boi espantosamentesem forma ou sentido”, erigindo a potente imagem de um desperdício traduzido no absurdo brutal daquele imenso ser movente e inanimado, levado de arrasto pelas forças da natureza. O animal do poema, portanto, não chega a figurar o boi abatido, cuja enorme carcaça suspensa por vezes assume ares de uma oferta sacrificial embaraçosamente similar à cena da crucificação e mesmo à da eucaristia, onde se trata de comer e celebrar um corpo. Mas a meditação artística e até religiosa da vida e do sacrifício dos animais de rebanho está longe de constituir qualquer novidade temática. O antiquíssimo imaginário cristão do agnus dei, do pastor e da vida comunitária dos ovinos transmuta-se em canções antológicas, que veiculam uma potente crítica social e política ao gregarismo dócil de uma passividade bovina, como em Admirável gado novo, de Zé Ramalho, e Disparada, de Geraldo Vandré.

Em outro sentido, o poeta  Dirceu Villa há pouco deu a público o poema O cutelo. Tratando de cenas suínas com uma peculiar articulação entre os registros onírico e descritivo, esses versos foram publicados pela revista Modo de Usar & Co em uma seleta que pode ser visitada aqui. Observe-se, no entanto, que o tom espantado e virtualmente empático do autor já contrasta com a comezinha indiferença de alguns homens que trabalham quotidianamente na cadeia produtiva dessa mesma carne de porco, como se pode ver nesse hilário vídeo. Outro exemplo dessa recente exploração temática é o do professor e tradutor Érico Nogueira, da Unifesp, que tem em seu Poesia Bovina (2014) um longo poema intitulado Charcutaria, mobilizando com grande destreza inúmeros elementos colhidos na esfera sugestiva dos embutidos, desde a sexualidade até o político. Eis alguns versos de Charcutaria: “Sem meter na tripa a biscate esperta / chupando tudo do mole vovô / seu esposo; argh! pastor bastião / do macho costume a abrir outro rego / na Rego; a sensibilíssima páti, / defensora-mor de bagre e macaco e / galinha, três abortinhos nas costas / – sem meter edil, auditor, Brasília, / a fossa da Terra de Santa Cruz […]” (Nogueira, 2014).

No mundo das artes plásticas, carcaças de reses serviram como modelos de natureza morta para pintores extraordinários como Rembrandt (O boi esfolado), Chaïm Soutine (Boeuf écorché) e Francis Bacon (Figure with meat). E parece subsistir, no gesto pictural desses artistas tão distintos, um mesmo impulso celebratório, uma homenagem da mão que empunha o pincel à honra daquela outra que maneja a faca em gestos escultóricos, capazes de percorrer dos movimentos mais drásticos aos mais precisos, daqueles do machado e do martelo aos do cinzel e do buril. Entretanto, qualquer faca aí só opera a contento se estiver muitíssimo bem amolada, tal como um bisturi. E tal estado de perfeição funcional é tão indispensável que João Cabral de Melo Neto chegou a praticar uma espécie de redução fenomenológica desse utensílio ao esplendor do seu gume no poema Uma faca só lâmina. A permanente demanda pelo reparo de fios cegos e pontas rombudas estimulou mundo afora uma atividade altamente especializada: a dos afiadores ambulantes, homens que itineram com esmeris a manivela e pedal, cintas de couro e chairas, anunciando seus préstimos pelas ruas com flautas, guizos e apitos. Assim, para iluminar as leituras a seguir, dentre as representações do amolador, recomendo duas em especial: uma de Goya (El afilador) e outra capturada no Rio de Janeiro por essa belíssima fotografia de Marc Ferrez. A potente imagem de um boi pendurado, que ilustra o poema Ofícios da Carne (Arame Falado, 2012), é intitulada Le boucher russe, e provém do site Lettres de Moscou, que lamentavelmente não credita sua autoria.  Já os poemas Olho de Boi O linguiceiro são inéditos em livro, sendo o primeiro introduzido por um trecho do filme O Vendedor de linguiça, de 1962, no qual Mazzaropi canta um poema de Pedro Paulo Mariano (o restante das informações sobre a obra audiovisual constam na descrição do próprio vídeo).

Dilatado de natureza e cultura, da caça à indústria, do vivo ao cozido e da preia ao frigorífico, o olho do boi segue engordando o homem que a si mesmo transforma ao tornar-se o senhor da multiplicação e dos destinos daqueles animais que o refletem e são por ele refletidos em seu corpo e espírito. Em largo e lacunar bosquejo, creio serem esses alguns elementos cruciais para um panorama antropológico, histórico e estético da questão da carne em nossa sociedade contemporânea. O mais é mito e arte,  o que seguramente não há de ser pouco, como se percebe, por exemplo, na exposição organizada pelo Rijksmuseum de Amsterdã com as obras viscerais do indiano Anish Kapoor postas em diálogo com a eterna mestria de Rembrandt. É deste artista contemporâneo a imagem que escolhi para abrir o presente ensaio.

NOTAS

* No item Eufemismos antigos e modernos, de seu Problémes de linguistique générale, Émile Benveniste esclarece que, na execução das penas capitais, o termo designante do carrasco para os romanos, o carnufex, fora aproveitado do nome dado pelos gregos ao açougueiro: κρεουρóς, proveniente de κρέας, a carne retalhada para fins comestíveis. Com grande chance de acerto, isso explicaria por que então o carnufex tenha se aproximado dos vernáculos carniceiro açougueiro na abominação daqueles delitos, acidentes ou episódios bélicos com grande número de mortes sangrentas: a carnificina. Um exemplo recente é o do nazista Klaus Barbie, cognominado de “açougueiro [ou carniceiro] de Lyon”. Contudo, esse sentido do κρεουρóς (açougueiro) dado ao carnifices latino (o imolador de carnes humanas) também já aparece precocemente na peça Agamenon, de Ésquilo, que se serve da acepção metaforizada de retalhar para algo além da simples decupagem animal: a prática de um crime de sangue, bem como a retribuição ou expiação de uma ofensa por sua vingança punitiva. Logo, parte da compreensão do próprio princípio retributivo de castigos e represálias no mundo helênico seria originada desse estilo violento dos suplícios como retalhação, uma vez que subsistiria, para os gregos, uma importante distinção entre ἀποκτείνω, assassinar, e καταχρσθαι, executar penas e/ou sacrifícios (Benveniste: 1966, 314).

** Em sentido contrário, Phillipe Descola recorda, entre os índios Achuar, da alta Amazônia, a grande prevalência da mandioca sobre os demais alimentos, inclusive as carnes de caça. Relatando em sua etnografia o consumo de um porco-do-mato preparado sobre um moquém, ele diz: “Então o dono da casa me convida a começar com a expressão padrão: ‘Coma a mandioca!’ […] A mandioca-doce é o alimento básico entre os Achuar, tão estritamente sinônimo de comida como é o pão na França e, mesmo que acompanhada de uma caça de qualidade, será sempre esta modesta raiz que seremos, por meio de lítotes, convidados a consumir.” (Descola, 2006: 67-68).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENVENISTE, Émile. Le vocabulaire des institutions indo-européennes. I : économie, parenté, société. Paris: Les Éditons de Minuit, 1969.

BENVENISTE, Émile. Problèmes de linguistique générale. Paris: Gallimard, 1966.

CASCUDO. Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil – 1º volume: cardápio indígena, dieta africana, ementa portuguesa. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.

DESCOLA, Phillipe. Par-delà nature et culture. Paris: Gallimard, 2005.

DESCOLA, Phillipe. As lanças do crepúsculo: relações Jivaro na Alta Amazônia. Tradução de Dorothée de Bruchard.São Paulo: Cosacnaify, 2006.

LEONARD, William e ROBERTSON, Marcia. Evolutionary Perspectives on Human Nutrition: The Influence of Brain and Body Size on Diet and Metabolism. in American Journal of Human Biology, Vol. 6, páginas 77- 88; Janeiro de 1994.

LÉVI-STRAUSS, Claude.   Le Triangle Culinaire. L’Arc, n° 26, 1965.

NOGUEIRA, Érico. Poesia Bovina. São Paulo: É Realizações, 2014.

PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: Pensamento Político e Critica Ambiental no Brasil Escravista – 1786/1888. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002

PÁDUA, José Augusto. “As Bases Teóricas da História Ambiental” [Theoretical Basis of Environmental History], Estudos Avançados, Vol. 24, n. 68, 2010.

STADEN, Hans. Véritable histoire et description d’un pays habité par des hommes sauvages, nus, féroces et anthropophages: situé dans le Nouveau monde nommé Amérique, avant et depuis la naissance de Jésus-Christ, jusqu’à l’année dernière. Paris.  A. Bertrand, 1837.

TESCHAUER, Antônio. Vida e obra de Venerável Roque Gonzáles de Santa Cruz, primeiro apóstolo do Rio Grande. Porto Alegre: Livraria Americana, 1909.

VARRO, Marcus Terentius. De re rustica: l’économie rurale. Paris: C.L.F. Panckouke Éditeur, 1843.

TRÊS POEMAS CARNÍVOROS

OFÍCIOS DA CARNE

o açulamento
de um bafejo
comiserava-se
de dulcíssimas canjicas
se no retábulo de pelúcia
um bafo fosse brisa:
na íris flamejante
uma linha em lâmina
sobre a bota branca
quando, sem surpresa
a paulada na cabeça
arriava as quatro patas
na rabiola dos revérberos
e trinando de espasmos
a vitela envolta em visgo
era uma cria semipronta
pendurada pelo umbigo

ali cada dente de aço
só confiava nele para afiar-se:
orgulho e amizade entre
o carniceiro e o amolador
que do esmeril à chaira
doravante retornava
a ofícios bem mais antigos
que tesouras domésticas
ou faquinhas de cozinha
para pânico dos vegetarianos
felizes com o caldo roxo
de suas beterrabas cozidas
e perguntando pelo fio
dos alicates de cutículas

adeus à tabuleta na calçada
(AFIA-SE NAIFAS E FACAS):
agora só o pugilato do abate
e uma picardia de galo de rinha
procurando por veios e juntas
separando as peças
para o enguiço da balança.

O LINGUICEIRO

dentre as vísceras, a delicadeza das tripas
a membrana, o invólucro das salsichas
a cápsula de carne onde outra (moída) se deposita
ou melhor dizendo: se soca, se compacta, se enfia
depois de condimentada por segredos & delícias

entretanto você já viu lavarem
intestinos de porco em uma tina?
não apenas por fora, em especial por dentro
(o bolo fecal e seus atributos nojentos)

aí problema sumamente complexo
é o de se chegar ao avesso da tripa
e sem jamais perfurá-la ou rompê-la
preservando-se sua tubulação
contínua e tão pouco espessa

(para as finas linguicinhas
usa-se o intestino de ovelhas
cuja dificuldade, se não maior
é praticamente a mesma
enquanto o calibre bovino
convém aos embutidos de mesa
copas, salames e outros êxtases)

na busca de se alcançar tais avessos
acode o proverbial pau de virar tripa
o dedo superlongo do proctologista
a vareta mágica do tripeiro
esse sacerdote das linguiças.

OLHO DE BOI

Toda a expressão deles mora nos olhos –
e perde-se a um simples baixar de cílios, a uma sombra.
Drummond, Um boi vê os homens

Árvores da paisagem calma,
Convosco – altas, tão marginais! –
Fica a alma, a atônita alma,
Atônita para jamais.
Que o corpo, esse vai com o boi morto.
Manuel Bandeira, Boi Morto

se fora do pasto só mamasse mamilos de mecânicos orifícios, sem jamais temer a peçonha do preclaro ofídio desapercebido: boi bom, boi vivo. festim e fulgor fátuo no bramir medonho do sumiço: sílabas do vaqueiro cedendo a outros (somenos) signos, a exemplo dos tais dígitos: boi morto, prejuízo. na fazenda modelo, a indumentária decimal nos madrigais de um velho monitor de âmbar: fascínio do postiço em cantoneira de chanfra a comandar ciclos entre o veraz e o ridículo. eis o caso do que mesmo falho é entretanto verossímil na ladainha escura propagando argúcias do mais lauto e tóxico pelo desfiar de seus opróbrios: o gado que são (e somos) perante si e o próximo em puros termos de rebanho e código. o corno mocho, o guampa torta, o chifre em lua, o aspa afiada. sim: há metáforas e há trapaças, se em cada folha muda e pálida oferta-se nova carcaça imolada em náusea. sob o sol tórrido, uma pilha de nervos estende sua plataforma de esterco: adubo estival no leite morno do bezerro, leiva de aluvião no couro vivo do bovino. refratando sombras de murta e mirtilo, ágata e gnaisse em lampejos vítreos: um olho de boi, te engolindo.


Marcus Fabiano Gonçalves nasceu no Rio Grande do Sul (Santana do Livramento, 1973). Radicado no Rio de Janeiro, é professor de Hermenêutica e Filosofia do Direito na Universidade Federal Fluminense. Em 2005 publicou O Resmundo das Calavras (WS Editor), obra finalista do Prêmio Jabuti. O autor também publica ensaios e inéditos no endereço: marcusfabiano.wordpress.com

ENSAIO NÃO-FICÇÃO POESIA

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