“ÁGUA PARADA”: O OLHAR DA MODERNIDADE NA FICÇÃO DE ALCIDES MAYA – LUCIANA MURARI
Esto que fue una vez, vuelve a ser, infinitamente;
los visibles ejércitos se fueron y queda un pobre duelo a cuchillo;
el sueño de uno es parte de la memoria de todos.
Jorge Luís Borges, Martín Fierro
Ao longo de décadas de atuação no meio político e intelectual do Rio Grande do Sul, Alcides Maya percorreu uma trajetória em que doutrinação ideológica, militância e jornalismo compuseram ambiciosos projetos de intervenção social de cunho modernizador, ainda que suas concepções acerca dos instrumentos e dos agentes da evolução social no estado e no país tenham se transformado de acordo com as vicissitudes de cada momento histórico.[1] A difusão de suas idéias políticas na imprensa assumiu um viés combativo e mesmo arrojado, passando do liberalismo spenceriano à defesa explícita do autoritarismo e da centralização. Entretanto, o jornalista e político Alcides Maya acabou por tornar-se menos célebre na historiografia cultural do Rio Grande do Sul do que o ficcionista Alcides Maya, criador de uma densa produção literária, escrita sob o signo da decadência e da força da tradição na Campanha gaúcha. Simultaneamente, tem sido observada uma aparente incoerência entre a militância jornalística do escritor, voltada para a formulação de projetos para o futuro a partir do aprimoramento das instituições políticas e do incentivo às forças produtivas, e uma literatura que tem como temas privilegiados a guerra, a morte, a decadência e a inadaptação. Buscamos neste artigo analisar aspectos de sua produção intelectual, mormente suas obras de ficção, apresentando alguns elementos que podem contribuir para que se conciliem estas duas linguagens do discurso de Maya. Intentamos assim compreender como o universalista e entusiástico autor de “Pelo Futuro” assumiu a persona literária do melancólico prosador regionalista de “Ruínas Vivas”, “Tapera” e “Alma Bárbara.”
Em “Água parada”, um de seus mais comentados contos, Alcides Maya recorda uma lagoa morta, presença algo bizarra na paisagem do pampa. Desprovida da vivacidade, do movimento e da integração com o ambiente natural característica de todas as demais, poderia parecer viva, mas “viva de segredos, não de formas – viva do que encerrava no fundo e do que evocava e do que sugeria”. A atração que exerciam suas águas profundas mostrava-se irresistível, à medida que nela “encerravam-se sugestões, evocações, segredos, mistérios e mistérios”, sobretudo por seu poder de refletir, em sua própria opacidade, tudo o que existia ao redor, conferindo aos diversos elementos da paisagem “expressão” e “unidade”. A voz que a descreve, eu melancólico e resignado, declara-se entretanto capaz de compreender o obscuro sentido daquelas águas que, estendendo-se aos limites da “Estância arruinada”, conservavam a memória da natureza e da gente daquele “abandonado trecho de pampas”. Afinal, a “visão intuitiva da sua beleza simbólica indecifrável” conferia à solitária lagoa do Jaguari o dom de despertar lembranças e nutrir desejos, o que compensava, aos olhos do observador, o que lhe faltava em encanto e movimento. (Maya, 1991, p. 46-47) O que se segue é uma longa lista de inquirições que impregnam de sentido a imagem da lagoa, transformando-a no espelho em que o próprio observador desvenda sua visão do passado, rememora as marcas de sua formação e define o espaço emblemático de sua origem:
Teria alma, esperanças, embora adormecidas? Sofria? Retardava-se por dedicação àquele verdejante retalho de escavadas coxilhas? Era um abraço de amor que a desatar-se prefere a resignada ventura de um fim repentino? Haveria acaso no seu bojo cor de espalto, mitos dormentes, antigas lendas de índios cismadores, tradições que foram fantasias, reminiscências de almejo e ímpeto, esquecidos sonhos de velhas raças moribundas? Lá embaixo, bem ao fundo, estremeceria ainda, na algidez de seus desejos torpentes, alguma iara sonolenta, das que outrora seduziam os guerreiros com os seus olhos cerúleos e as suas verdes madeixas? Que abismo, que dores, que tragédias, que fúrias contidas existiam, rolavam, agonizavam lá dentro?
Neste texto, a tradição cultural da Campanha gaúcha, doravante definida como um passado submerso que apenas o desejo e a fantasia poderiam trazer à tona, consagra-se como mito e como objeto de culto. A condição necessária para sua retomada é, entretanto, sua definitiva superação, não mais núcleo fértil e dinâmico da vivência cotidiana, mas agora estoque de referências culturais e identitárias desprovidas de efetividade. A lagoa morta é depositária de um legado que pertence ao passado, e que está doravante condenado a ele: quem o condena é o próprio observador, que reserva à tradição os signos da morte, do esquecimento, do mistério e do silêncio. O enigmático conto pode ser lido, portanto, como a revelação de um projeto literário, que retira do fundo obscuro da memória alusões fragmentadas aos objetos da cultura popular, ao mesmo tempo em que a engessa, ao traduzi-la em linguagem escrita – e, freqüentemente, erudita – e em metáforas de seu depauperamento e peremptória extinção. A percepção da perda é, certamente, de natureza subjetiva e ideal, pois a idéia de ruptura é estabelecida independentemente das incômodas permanências, o que reflete, sobretudo, o afastamento do observador, auto-imbuído da missão de estabelecer a mediação entre passado e presente, oral e escrito, rural e urbano, ou, em termos mais amplos, entre a tradição e a modernidade.
A literatura de Alcides Maya não chegou a cumprir, entretanto, este programa, como admitiu o próprio escritor ao responder a um inquérito literário em 1925: “o que eu desejaria é que alguém, desta última camada mental [a nova geração] ou das futuras, fizesse a obra que não fiz: a obra-prima de observação, de sentimento e de beleza, a obra-prima de ideal, sobre motivos nossos, humanos e simultaneamente gauchescos.” (Maya, 1925)[2] Certamente, mais do que a representação de dramas universais no pano de fundo da tradição regional, sua ficção tem como base o próprio declínio do mitológico universo da Campanha, a partir de um momento em que se acelera o ritmo da transformação social e econômica da região, com a implantação do transporte ferroviário, das cercas de arame, de novas raças de gado, e de novas técnicas produtivas que reduzem a demanda de mão-de-obra. As transformações sociais seriam ainda mais decisivas a partir de 1888, quando a Abolição retira do charque seu principal mercado, e sobretudo de 1889, com a perda da hegemonia política das tradicionais elites sulinas. (Love, 1975) Isto valeu ao escritor uma persistente identificação com o que de mais retrógrado e pessimista poderia haver na cultura riograndense, o que se via ainda agravado pela censura a seu obsoleto estilo “barroco”[3]: “(…) entre alguns letrados oriundos das estâncias, o sentimento nostálgico eivou-se de conotações reacionárias e derrotistas perante as injunções do presente, caso típico de Alcides Maya.” (Gonzaga, 1980, p. 120)
Com seu olhar apocalíptico, “Água parada” endossaria perfeitamente esta avaliação. Acerca deste conto, o próprio escritor veio a declarar, algo bombasticamente: “Aquela água parada sou eu!” (Almeida, 1994, p. 218) Numa óbvia referência a Gustave Flaubert, que segundo a célebre boutade ter-se-ia auto-identificado com sua personagem Madame Bovary,[4] Maya prestava tributo a um de seus maiores ídolos, ainda que ele mesmo, com o perdão do trocadilho, não deixasse de lado uma perspectiva “bovarista”. No abismo entre a realidade e o imaginário, entre sonhos nunca realizados e uma recorrente insatisfação frente aos fatos, a “síndrome bovarista” ajuda a descrever, como observou Paes, manifestações culturais de fundo regional, uma vez que estas são marcadas por uma indisfarçável contradição entre o fascínio pelo refinamento urbano-cosmopolita ao qual não é mais possível renunciar e a posterior frustração que desperta a saudade do irremediavelmente perdido berço rural-provinciano. (1985, p. 250) Juntamente com o movimento contrário de retorno ao campo, a “síndrome pastoral”, essa perspectiva alimenta o imutável descontentamento de quem não pertence a nenhum dos dois mundos, o paraíso perdido que permanece como universo de referência para a construção da identidade e um fascinante mundo novo, a partir do qual se observa a vida no campo, com uma nostalgia que nem sempre consegue esconder um certo desconforto. A distância, entretanto, traduz na linguagem do exótico o mundo rural que havia sido durante longo tempo familiar, e que doravante passa a ser significado de acordo com uma perspectiva urbana, à qual o campo contrapõe-se como espaço da inocência, da imediatez, da naturalidade, da espontaneidade, e também do vazio, da violência, do ócio e do fatalismo.
Estas idéias permitem, já a princípio, observar a essência conflituosa do programa regionalista, dissolvendo a idealizada auto-imagem com que este tendeu a justificar sua ambiciosa empreitada. O discurso regionalista brasileiro será inevitavelmente o mesmo que fundamenta o conto “Água Parada”: a tradição rural estaria agonizante ou já morta à medida do devastador avanço da modernidade, que tenderia a promover a homogeneização dos valores e das referências culturais, cabendo à literatura empreender a tarefa, de fundo etnológico, de salvar do esquecimento o repertório da cultura popular, na riqueza de suas manifestações regionais e locais. O olhar que se lança em direção a este universo não se livra, portanto, da melancolia inspirada pelo sentimento de perda dos referentes de identificação do sujeito, à medida que o tom autobiográfico, claramente definido, por exemplo, em “Água Parada”, participa das pretensões de fundo histórico ou etnológico de seu projeto. De fato, como demonstrou Ricardo Kaliman, (1996, p. 125-126) inscrita na subjetividade e capaz de referir-se a diversos campos da ação humana, a idéia de identidade contribui para a modelagem intelectual da experiência e, a partir dos diálogos do sujeito com a contemporaneidade, para o entendimento das dinâmicas sociais e a integração da expressão literária à análise de processos vividos coletivamente.
Desde seus primeiros artigos publicados na imprensa, Alcides Maya havia já defendido a necessidade de produzir, através da literatura, uma espécie de crônica histórica ou sociológica do povo gaúcho, esboçando as linhas gerais de um pretensioso programa de remodelagem da cultura regional. O tom então adotado por ele era, naquele momento, mobilizador e até mesmo eufórico, em suas pretensões de apresentar à nova geração intelectual os rumos a serem seguidos em sua tarefa de remissão da vida intelectual do estado:
Imaginai no futuro, conservadas as qualidades peculiares à raça, e dispondo esta de um esplêndido cenário de legendas, onde se move todo um mundo de seletos personagens de bravura, de galhardia, de medievalismo bélico, com usos, vestuários, diversões, labores seus, de um delicioso pitoresco, de uma perfeita identificação com a natureza e uma expressiva originalidade, imaginai no futuro que opulenta literatura nós teremos, que dramas, que romances, que poesia, que trabalhos de revivescência histórica e crítica popular empreenderemos! (Maya, 1900, p. 104)
Podemos observar, neste aspecto, uma das notáveis inflexões experimentadas pelo discurso social de Alcides Maya. No texto acima, datado dos últimos anos do século XIX, o autor defendia a idéia de que o mestiço gaúcho sobreviveria, enquanto os demais tipos regionais brasileiros estariam condenados a ver dissolvidas suas características físicas, psíquicas e culturais. Isto porque, na visão do autor, o homem gaúcho seria o mais perfeito exemplar da mestiçagem americana: o mais forte, o mais glorioso, o mais original, graças à integração das peculiaridades dos povos ibéricos e indígenas, perfeitamente adaptadas ao meio físico do pampa e positivamente condicionadas pela sua história de lutas e feitos heróicos na defesa da fronteira meridional, “princípio de combatividade” que o escritor acreditou naquele momento poder ver, um dia, convertido em “produtividade espiritual”. Ou seja, propunha-se uma criação intelectual coletiva de valor literário e histórico que se alimentasse dos temas da formação gaúcha e promovesse a superação da mentalidade belicista, por meio de sua conversão na “energia psíquica” necessária à realização deste audacioso projeto de renovação. (Maya, 1979, p. 21) Superado no presente, este legado deveria converter-se em história e em mito originário, ou seja, deveria ser consagrado como marca do passado, constituindo a base para uma produção cultural capaz de estabelecer as idéias de origem e de herança, mas voltada para a definição de novas linhas de ação social, de participação política e de criação histórico-literária.
A imagem idealizada do gaúcho, observada acima, demonstra que, apesar das inovações incorporadas pelos cultores do gênero sob a influência dos naturalismos, a base romântica do movimento regionalista iniciado nos últimos anos do século XIX é inegável. Em artigo de 1936, o próprio Alcides Maya apontaria para este problema, ao escrever que “o regionalismo rio-grandense (…) é em essência um fenômeno romântico. E outra coisa não é… A escola naturalista, sob a influência francesa, principalmente, nada mais fez que mudar,– consoante a moda, os processos de composição literária.” (Maya, 2004, p. 176) Ao mesmo tempo, ao enunciar sua entusiástica afirmação do heróico legado histórico-cultural do pampa riograndense, Alcides Maya pagava seu tributo ao modelo alencariano, que definiu os valores a serem adotados pelo regionalismo gaúcho. Esta matriz, de origem romântica, teve longa duração na produção cultural do estado, em que pesem algumas mudanças pontuais, como demonstrou Chaves (2001, p. 35). O programa regionalista esboçado por José de Alencar nada tinha de especificamente regional, uma vez que repetia a representação do homem brasileiro tal como o próprio autor já havia estabelecido em “O Guarani”. Decerto, sua obra pretendeu compor um mosaico de tipos regionais que, embora criados de acordo com características locais que refletiam peculiaridades históricas e ambientais, originavam-se de um só arquétipo, uma vez que os regionalismos compunham um projeto que tinha como fim último a identificação do caráter nacional. O modelo regional não implicava, portanto, na criação da imagem de um país cindido pelas suas diferenças naturais e culturais internas e sim, de forma oposta, em uma representação baseada numa identidade comum capaz de englobar todas as peculiaridades em uma perspectiva totalizadora. (Chaves, 2001, p. 26)
A tendência regionalista espelhava, assim, uma espécie de política de incorporação dos particularismos locais e regionais a uma proposta estética e cultural nacionalista, tornando-se assim o espaço por excelência para a manifestação das peculiaridades que passavam a compor, doravante, a multicolorida paisagem brasileira. A linguagem regionalista permitia a integração entre as partes e o todo, estabelecendo parâmetros estéticos, lingüísticos e ideológicos notadamente recorrentes nas manifestações do gênero. Muitas de suas manifestações guiavam-se pelo próprio receituário de criação das identidades nacionais, tal como este se definiu a partir da Europa do século XVIII, em seus vários elementos: tipo humano, paisagem representativa, modelos de comportamento, história comum, heróis capazes de encarnar qualidades peculiares, língua nacional e/ou suas peculiares inflexões, trajes e pratos típicos, narrativas pitorescas ou exemplares.[5] (Thiesse, 1999, 2005)
No caso do regionalismo brasileiro da fase realista, a convergência com os desígnios nacionalistas é nítida, à medida que o gênero era tido por seus cultores como o único verdadeiramente representativo da cultura do país, sobretudo porque a abordagem naturalista tendia a criar uma imediata identificação entre o homem e a terra, ao endossar a imagem, científica e metafórica, da moldagem do humano pelo meio físico-natural. Em analogia com o movimento francês também surgido no final do século XIX, podemos dizer que o regionalismo brasileiro tornou-se um campo agregador que simultaneamente evidenciava as diferenças e as neutralizava, remetendo-as a referentes comuns. A preservação das idiossincrasias locais é convertida em um projeto único oposto a veleidades separatistas, no qual as diferentes regiões desempenhariam papéis complementares, dentro de uma lógica conciliadora que pode acabar por dissimular diferenças sociais realmente efetivas. A diversidade converte-se, portanto, em uma forma de acessar o nacional, ao mesmo tempo em que a revelação da diferença acaba por definir um exotismo interno que, se por um lado fortalece a noção de atraso, por outro remete às origens e ancora a instabilidade da vida moderna num tempo idealizado em que as fontes da identidade nacional estariam intocadas, permitindo a recuperação do sentimento de continuidade. (Thiesse, 1991, p. 255-256; 16)
No caso brasileiro, como projeto de âmbito nacional, e de essência nacionalista, o regionalismo conferia espaço para a aceitação e a promoção dos letrados “provincianos” na literatura do país, compreendida como aquela que lograva aceitação no seu centro político-cultural, onde se concentravam o mercado editorial mais expressivo, as maiores oportunidades na imprensa, as instâncias de prestígio, convivência e reconhecimento mútuo dos homens de letras, os espaços de sociabilidade, afora as instituições públicas que poderiam oferecer espaço para a colocação profissional dos intelectuais. Decerto, ao adotar a temática regionalista, Alcides Maya inseria-se no ambiente literário da capital e incorporava-se a um programa que, como vimos acima, possuía relevância e alcance nacionais. Sua condição de homem da “província” garantiria à sua obra um determinado espaço, pois a originalidade do gauchismo permitia que ele fosse encaixado no mosaico das regiões que compunham a cultura nacional, atendendo simultaneamente aos propósitos do escritor de se fazer incluir no ambiente letrado do Rio de Janeiro.
Compreende-se, portanto, que Maya tenha incorporado diversos elementos estéticos e temáticos comuns a diversas obras do regionalismo brasileiro, como por exemplo o gosto pelas imagens da ruína, o descritivismo paisagístico e o apuro formal. De fato, o negativismo tantas vezes questionado nas obras ficcionais de Alcides Maya define tanto o autor gaúcho quanto a maior parte da literatura regional da fase realista-naturalista no Brasil. Precocemente introduzido no mundo jornalístico, em 1896, o escritor estreou em ficção um tanto tardiamente, em 1910, alguns anos depois de já haver traçado as linhas gerais de um projeto voltado, como vimos acima, para a renovação política e cultural do estado. Não acreditamos que este intervalo temporal explique o descolamento entre o jornalista e o autor de ficção, mesmo porque, ao nosso ver, há nítidas linhas de continuidade entre ambos, em que pese este aparente contraste entre o Alcides Maya que escreveu “Pelo futuro” e o que se lançou na ficção com “Ruínas vivas” e “Tapera”. O pessimismo e a obsessão pela decadência na representação do Rio Grande republicano pela literatura ficcional de Maya não são incoerentes com seu projeto de renovação da cultura do estado. Pelo contrário, participam dele à medida que promovem a “negativação” de valores tradicionais tidos como prejudiciais ao progresso.
Um breve retrospecto da atuação de Alcides Maya no jornalismo permite observar suas tendências políticas progressistas. Em sua precoce estréia no meio intelectual gaúcho, Alcides Maya observava o momento de crise por que passava o Rio Grande do Sul, ainda sob o trauma da guerra federalista, reafirmando a crença em sua remissão e no papel a ele reservado no contexto brasileiro, e evocando o dia, “tão distanciado ainda da realidade que parece sedutora miragem, [em que] o nosso caro Rio Grande ilustre seu nome e glorifique o seu espírito, comandando a vanguarda do Brasil!” (Maya, 1897, p. 113) Em seguida, a partir de uma perspectiva liberal inspirada pela leitura de Spencer e na defesa dos direitos de cidadania, empreende uma crítica ferrenha ao castilhismo, condenado como regime político ditatorial, nutrido pela politicagem e pelo militarismo, “a célula partidária e a lança pandilheira”, males crônicos do Rio Grande tradicional. (Maya, 1900, p. 185) Nos anos seguintes, observa-se já uma importante inflexão em seu discurso político, que declara admiração por Júlio de Castilhos, “o timoneiro hábil, o condutor sagaz”, por sua obra de organização do regime republicano no estado, ainda que persista na crítica ferrenha à liderança de Borges de Medeiros, a seu ver infensa aos “direitos de cidade” e identificada como um retrocesso do estado “à meia barbaria das épocas de caudilhagem.” (Maya, 1908) No entanto, crescentemente, o escritor passa a identificar o progressismo com a atuação do Partido Republicano, ao mesmo tempo em que define o federalismo como “sincero, tenaz e perigosíssimo para o destino do Rio Grande”, abandonando gradativamente sua trajetória de oposição. (Maya, 1913b) Radicado no Rio de Janeiro, a partir da ascendência de Pinheiro Machado vislumbra novamente a hegemonia política do Rio Grande do Sul “no sentido de direção espiritual da vida política do país,” e passa a colaborar com o partido da situação. (Maya, 1913a) A partir daí, a reviravolta em seu posicionamento político torna-se ainda mais clara, e ele se elege deputado federal pelo Partido Republicano Riograndense em 1918, ocupando o cargo por duas legislaturas. Coerentemente, alguns anos depois declara seu apoio à Revolução de 1930. (Maya, 1930)
A prosa de ficção de Alcides Maya adotaria códigos próprios, mas não perdeu sua coerência com esta trajetória. Se um dia o amor à guerra possuíra sentido heróico – daí sua importância como tema histórico e literário –, sua permanência naquele momento de renovação dos horizontes mentais do estado passava a significar apenas a manifestação de uma herança funesta e auto-destrutiva. O tom nostálgico e sombrio adotado pelo escritor aponta para uma percepção de que o passado, heróico na lenda, mas inglório na contemporaneidade, não havia sido de fato superado. Ao contrário da crença, anteriormente declarada, na conservação das “qualidades peculiares da raça”, um dos temas mais intensamente explorados por sua prosa de ficção será a irremediável condenação do tipo gaúcho à decadência, tema maior do romance “Ruínas Vivas” (1910) e de seus dois livros de contos, “Tapera” (1911) e “Alma Bárbara” (1922). Em “Água Parada”, publicado neste último, ao fazer referência aos “esquecidos sonhos de velhas raças moribundas”, o autor explicita sua verdadeira fixação pelo tema, deixando claro que o que escrevia era uma espécie de epitáfio da “raça” gaúcha, tanto no sentido propriamente orgânico, quanto que diz respeito a seus caracteres sociais e culturais. Observe-se que estes dois aspectos são análogos e perfeitamente simétricos no contexto da idéia de “raça”, tal como esta era corrente durante o período de vigência dos naturalismos científicos no Brasil. Uma vez que se considerava uma perfeita analogia entre o domínio do natural e do humano, a conotação biológica do termo tornava-se inseparável do seu sentido cultural, pois a uma “raça” apenas era permitido um desenvolvimento moral que estivesse em perfeita consonância com sua estrutura físico-biológica. (Murari, 2007, c. 2) É possível, portanto, compreender o termo, bastante incômodo aos críticos e leitores atuais, como correlato simultâneo das idéias de etnia e de cultura. Atuando como jornalista, em artigo reproduzido em “Através da Imprensa”, e intitulado “Raça moribunda”, o escritor havia já discorrido longamente sobre o tema, decretando a inevitável decadência dos povos latinos:
Os interesses supremos da espécie, de onde promanam em definitivo, as mais proveitosas normais morais, exigem o sacrifício dos que se tornam inúteis, a derrota dos que se deixam invadir pela fraqueza, o desbarato dos que tudo ameaçam pela corrupção orgânica, o completo destroço, o esfacelo irreparável dos decadentes.” (Maya, 1900, p. 108-109)
Inspirado em Spencer, Maya defende que a vida social obedece, assim como a vida biológica, a um conjunto das leis fatais da evolução que prevêem o inevitável declínio das coletividades. Apesar de poder produzir obras de arte de real valor, uma era de decadência refletiria, necessariamente, o abatimento físico e moral de um povo. Ainda que censurando o utilitarismo dos tempos burgueses, o escritor pondera que a decadência é parte da dinâmica geral do progresso humano, o que torna justificável e, dentro dos limites, positiva, a perspectiva finalista subjacente ao evolucionismo. Uma vez desempenhado seu papel histórico, mesmo o mais brilhante dos povos estaria fadado a dar espaço para outro capaz de tornar-se a nova vanguarda, impor valores ousados e empreender iniciativas inéditas capazes de dar continuidade ao avanço da experiência humana. Por isto, acreditamos que a adoção das românticas imagens da ruína não pode ser tomada, na obra de Alcides Maya, como uma tradução da descrença no futuro, e nem mesmo como uma forma de culto regressista ao pretérito paraíso perdido rural, uma vez que prevalece a idéia de que sociedades em decadência “não devem servir de estorvo à marcha daquelas que surgem para os triunfos da força e do espírito, para as vitórias da ciência e da arte, para os nobres cometimentos, as iniciativas enérgicas e as fecundas ousadias do gênio.” (Maya, 1900, p. 108)
Embora inicialmente considerasse o caso gaúcho, como vimos acima, uma ressalva na trajetória descendente das etnias mestiças brasileiras, na representação literária do universo gauchesco o tema do fim da “raça” é recorrente. Sua formulação mais conhecida está em “Ruínas Vivas”, que expressa no dramático destino de Miguelito, jovem com alma de velho, obcecado pela guerra e incapaz de encontrar seu lugar: “lá, como tudo ao redor, como nele próprio, só havia restos,– de velhas crenças, de velhas construções, de velhas raças…” Ainda que, ao evocar o passado, o escritor não deixe de exprimir a romântica nostalgia do tempo pleno da tradição e da origem familiar, o saudosismo está comumente inserido, na obra de Maya, na voz de personagens condenados à marginalidade por sua resistência obstinada à mudança. É o caso do Moisés carreteiro de “Para o sul”, “um dos de antanho, a sobreviver teimoso à sua geração, vera efígie dos fortes guascas outrora dominantes no pago morto.” O pano de fundo da narrativa é a inauguração do transporte de gado em pé pela ferrovia, motivo de festa na estação e novo símbolo de uma profunda transformação social já em curso.[6] O escritor imagina o velho a perceber-se que o fim chegava não apenas para si mesmo, mas para toda aquela região onde vivia. À medida que, na definição do autor, o sentimento de perda é “impessoalizado” o personagem adquire a inusitada percepção histórica da “tragédia de um fim coletivo.” Note-se que, neste que é um dos mais melancólicos contos de Alcides Maya, o olhar distanciado do observador tem a sensação de tristeza potencializada pelo seu vivo contraste com a ruidosa alegria da celebração popular, contraste necessário à visão de mundo do escritor. Novamente, é negado qualquer espaço para o ancião naquele “velho pago transformado em florescente vila”, e só resta a ele fugir para um lugar ainda não alcançado pelo progresso. (Maya, 2003, p. 107, 104)
Assim como a exclusão daqueles que se prendem ao passado, a tradição como estorvo é um dos objetos privilegiados da escrita ficcional de Alcides Maya. No conto “Monarcas”, o protagonista Neco Alves foge a todos os estereótipos do gaúcho, e representa uma modificação das percepções que revoga algumas das mais significativas características da mentalidade do guasca. O próprio personagem parece não reconhecer a si próprio, ao observar, subitamente, uma até então insuspeitada capacidade de observar a beleza das paisagens e das formas de vida ao seu redor, abandonando o comportamento ensimesmado e indiferente que habitualmente o definia, como a todos os seus “iguais”. O escritor faz de Neco Alves uma tradução do telurismo tão próprio ao gênero regionalista, postulando uma perfeita contigüidade física e moral entre o indivíduo e o meio. Seu apego à terra, com a qual se confundia, acabava por infundir nele uma automática rejeição a todas as formas de transformação social características de seu tempo, e que teriam vindo “perturbar a soledade e a paz do seu torrão”, o que é marcado pela desconfiança em relação a um dos máximos símbolos da modernidade industrial: o trem de ferro. (Maya, 1991, p. 55) A resistência à mudança é decisiva para o encaminhamento da narrativa, o que demonstra uma abordagem da condição moderna como transformação das sensibilidades e, simultaneamente, como renovação dos processos produtivos.
Um dos elementos mais curiosos deste conto é a autoconsciência de seu protagonista, que não é um gaúcho típico, mas deseja sê-lo, uma vez que incorpora a “ufania gauchesca” e busca reproduzir a força e a impassibilidade que dele se espera. Conforme vimos, sua intenção é frustrada, pois “dispunha de um coração sensível”, o que nos remete a uma percepção mediatizada da identidade gaúcha, que neste momento não é vista como a manifestação de um modo de vida e de pensamento com o qual o sujeito sente-se identificado, mas como um repertório de normas impositivas onde o indivíduo é enquadrado. “Gaúcho é com gaúcho que se pecha”, conclui ao definir seu respeito pelos animais – argumento que, curiosamente, mobiliza o próprio orgulho campeiro para dar vazão a uma delicadeza de sentimentos que nada tem de modelar. O personagem vê-se a todo tempo cindido entre os ditames de sua subjetividade e algo que é percebido como um dever ou, na definição do escritor, entre o que pensava, que não o diferia dos demais, e o que sentia, isto sim verdadeiro e característico. (Maya, 1991, p. 58) A tradição toma a forma, neste conto, de um estereótipo incorporado com um orgulho desmedido: na presença de alguém de fora “esmerava-se em gauchismo, excedia-se ‘de a cavalo’, chegava a exagerar um pouco, atrevido, provocante, as linhas da sua atitude”. Em presença de um castelhano, sobretudo, parece decidido cumprir a risca a cartilha dos costumes, pois “sabia ser esse o inimigo tradicional dos seus pagos.” (Maya, 1991, p. 61) É bastante curioso que os traços identitários do gauchismo sejam, neste momento, definidos pelo escritor como uma forma de logro ou, no mínimo, como a adoção consciente de uma norma de comportamento dotada de prestígio simbólico, mas já desprovida de espontaneidade, como imagem que se deseja transmitir mesmo à contracorrente do real. Certamente, as formas da cultura popular regionalista, como os chamados “cantos de monarquia” que fundaram a tradição gauchesca, baseiam-se na criação de um tipo idealizado que encarna valores tidos como positivos pelo grupo que o produz e o alimenta, e que dependem, para tal, da adesão coletiva – e não de seu suposto “realismo”. A peculiaridade da literatura de Maya, neste e em outros momentos, está na denúncia do que seria uma sorte de manipulação dos dados da identidade coletiva, o que é explicitado pelas idéias de “esmero”, “excesso”, “exagero”.
O drama de “Monarcas” é que o paradigma acaba, progressivamente, por mostrar-se um fardo tão pesado quanto aquele carregado pelo Miguelito de “Ruínas Vivas”, mistificado por idéias grandiosas de uma vida heróica na guerra, como se o mito invadisse a realidade, sufocando-a. A narrativa conduz ao extremo o embate silencioso de Neco Alves contra a tradição ao encenar seu enfrentamento direto com o “monarca das coxilhas.” Manduca Estrada, este sim, é a encarnação do estereótipo, personagem simultaneamente lendário e histórico que “parecia talhado em granito”, celebrizado por seus feitos e inconformado com o fim do ciclo guerreiro no Rio Grande do Sul. O encontro do “defensor dos pagos” com aquele que representava a “glória dos pagos” não poderia ser senão conflituoso, pois traduz, na linguagem do escritor, o embate entre a tradição petrificada e as possibilidades, ainda que claudicantes, de mudança. No entanto, a narrativa caminha de forma pouco convencional a partir do momento em que os dois se descobrem inimigos de sangue, em função de uma disputa de família cujas origens são desconhecidas, mas que não deixa a Neco outra alternativa que não o bater-se em duelo, cioso das obrigações a ele impostas pela norma social e, sobretudo, por seu próprio desejo de estar à altura do mito. Perdedor por duas vezes, não sucumbe aos golpes do inimigo, mas à falência de sua própria imagem, no momento em que se rompe o liame que o conectava a seus ascendentes: “as derrotas sofridas não eram somente dele: atingiam os antepassados, feriam na honra da família de seu pai. Este soubera repelir e humilhar o inimigo. Retalhara-lhe a cara… Ele não, não, ele não.” A auto-imolação de Neco Alves, incapaz de pacificar seu próprio pensamento frente às derrotas sofridas, metaforiza uma ameaça nada sutil: a incapacidade de superar a tradição representaria a perda de qualquer possibilidade de futuro, e aí sim, a morte. Observando tudo em volta, pela última vez, ele ainda imagina “o que poderia ter sido”, o que demonstra novamente uma irredutível dualidade entre o desejo de viver e a consciência excessivamente rígida que o prendia às convenções. O fecho do conto, que emula o estilo narrativo das fábulas, é simultaneamente irônico e moralizador: “Foi assim que findou a forte e linda estirpe gaúcha dos velhos Alves, campanhistas audazes, defensores de fronteira…” (Maya, 1991, p. 66-67) [7]
Do mesmo modo, a condenação dos traços belicistas da cultura riograndense é um tema recorrente na produção do autor, e embora algumas de suas narrativas mais expressivas explorem os reais horrores da guerra, mais característica de sua obra é a condenação da mentalidade guerreira e de seu impacto negativo sobre as possibilidades de progresso social no estado, tema também recorrente em sua produção jornalística.[8] Por outro lado, o escritor insere este aspecto da cultura gaúcha em uma análise de cunho social, associando-o à condição de marginalidade em que recaíam os jovens desprovidos de recursos, pois “antes da guerra, sabiam-se repelidos, ‘demais’ eram como ‘restos’ apenas tolerados, no torrão natal”, como no conto “No pago”. Para aqueles que tomavam o exército como “o primeiro ninho seu doméstico”, a luta era o único espaço de inserção social e reconhecimento público, ainda que, de forma assumidamente determinista – o que novamente remete à idéia de “raça”,– os jovens párias reunidos pela vida das armas sejam definidos como “soldados natos”, que encontram nos acampamentos “perfeito equilíbrio moral.” (Maya, 2003, p. 110-111)
Desde seus primeiros artigos, o autor estabeleceu o belicismo como fulcro de sua crítica política, utilizando-o como um dos principais argumentos de sua crítica ao regime castilhista no Rio Grande do Sul, pois em sua visão “até hoje temos visto a epopéia do obscurantismo tracejada na frontaria dos quartéis.” A solução para tal seria, em sua visão, a generalização do ensino público, instrumento de progresso que garantiria a inserção dos jovens pobres na sociedade e a consolidação das instituições. A “republicanização” da alma popular daria ao regime o apoio necessário à consecução de reformas modernizadoras, à medida que um regime político avançado só teria sentido em uma sociedade igualmente avançada e guiada pelos princípios do civismo e da democracia. (Maya, 1896, p. 1) Neste sentido, a defesa de um programa modernizador, a seu ver incompatível com os valores da tradição gauchesca, apresenta-se como uma constante da produção intelectual de Alcides Maya, tanto no jornalismo quanto na ficção, coerentemente com uma proposta formulada em uma de suas primeiras obras:
Se aqueles que surgem agora para as lutas da vida e da pátria, não quiserem combater o veneno que vem do passado, dos tempos coloniais, da escravidão negra, das podridões monárquicas, veneno auxiliado em sua ação corrosiva por um milhão de esbulhos na fase republicana; então o Brasil tornar-se-á seguramente a China da América, marchando a passos largos pela estrada da apatia, do retrocesso e da dissolução!
Tenhamos a nobre coragem da expressão livre da verdade!
Para a cura dos países verminados, só o ferro em brasa da sátira, do anátema e da crítica… (Maya, 1898, p. 38)
Neste sentido, como observou Marlene Medaglia Almeida, o passado é ambivalente na obra do escritor, simultaneamente um objeto a ser cultivado pela produção intelectual e uma etapa superada da vida do estado, a ser vencida pela ação modernizadora. De fato, em direção ao universo tradicional da Campanha o que sobra, observou a autora, é um olhar atormentado e mesmo irônico em face das persistências do passado, perspectiva que, como uma forma de “negação do mito”, nada tem de saudosista, embora, acreditamos, não afastasse o sentimento afetuoso da saudade da infância, dos laços familiares, da terra natal. (1994, p. 216-7, 252) Talvez por isto a dimensão privilegiada na escrita do autor seja o descompasso entre o tempo paralisado do universo gauchesco e o tempo célere da modernidade. Na imaginação romanesca de Maya, isto não raro resultava na morte patética, no exílio ou na marginalização dos bravos filhos dos antigos heróis pampeanos, presos às forças atávicas que os limitavam aos modos de vida tradicionais, impotentes frente às forças irresistíveis que representavam a dinamização da vida social. Vista pelas lentes de um projeto de mudança, esta devastação representava, simplesmente, o tão desejado advento de novas sensibilidades, a libertação do indivíduo do peso de “obrigações de casta”, a possibilidade de converter em história e em arte a memória da guerra ainda viva naquelas “almas bárbaras”. Este programa, acreditamos, era a tradução literária de sua ação política.
NOTAS
[1] Este artigo foi elaborado a partir de pesquisa de pós-doutorado financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e realizada junto à Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, sob a supervisão do Prof. Dr. René E. Gertz.
[2] A persistente tensão, quando não incoerência explícita, entre o programa regionalista, expresso em declarações e manifestos, e as obras efetivamente produzidas é uma constante no gênero, como foi observado por Chiappini. (1994, p. 668) Isto reflete sua ambigüidade frente à realidade social “obsoleta” que se pretende, programaticamente, retratar e cultivar.
[3] A respeito da escrita barroca em Alcides Maya, ver Masina (1998).
[4] Sobre o caráter apócrifo da conhecida sentença de Flaubert “Madame Bovary, c’est moi!” ver Jayot (2006).
[5] Ressalte-se, entretanto, que em termos conceituais, “nacionalismo” e “regionalismo” não podem ser confundidos, nem tampouco opostos de forma linear, sob a pena de ignorar suas especificidades ideológicas e sua capacidade de agregar demandas de ordem política ou cultural que podem ou não convergir. (Thiesse, 1991, p. 10-11)
[6] É inevitável a comparação deste conto com “Banzo”, de Coelho Neto, novela em que um velho escravo relembra o passado como um tempo perfeito, lamentando a desaparição de seu universo de referências frente ao avanço da modernidade. (Coelho Neto, 1912)
[7] Similarmente, no conto “Estrangeira” o protagonista, “filho de guerrilheiros antigos”, sente-se tão perturbado pelo amor de uma ex-prostituta que se suicida ao perdê-la. “Separava-os um passado de séculos”, define o escritor, que cria um contraste vigoroso entre o universo de referência da amante, a região de colonização estrangeira da Serra gaúcha, descrita como espaço de alegria, dinamismo e abundância, e a decadente região da Campanha, onde ela vivera com aquele homem “sem crença, sem medo, sem lei.” O desfecho é também neste caso escrito com uma ironia que explicita a derrota da tradição gauchesca: “pela primeira vez, dera-se voluntariamente a morte de um dos fortes filhos da velha raça impassível….” (Maya, 2003, p. 121, 124, 126)
[8] Sobre o significado ideológico e político do anti-militarismo na obra de Alcides Maya, a partir da influência de Herbert Spencer, ver Murari, 2006.
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Luciana Murari é doutora em História Social (Universidade de São Paulo, 2002). Professora da Escola de Humanidades e do Programa de Pós-graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bolsista de Produtividade em Pesquisa (CNPq). Este artigo foi publicado originalmente na revista Estudos Ibero-Americanos, sob uma licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado. Reproduzido com a autorização da autora.
MURARI, LUCIANA “Água parada”: o olhar da modernidade na ficção de Alcides Maya. Estudos Ibero-Americanos [on-line]. 2008, XXXIV(2), 150-167. ISSN: 0101-4064. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=134612633010