DE ‘APENAS POR NÓS CHORAMOS’, DE ANNA MARIANO
METADES
O que arranha a vidraça
gato
de muitas vidas
campo
três vezes lavrado
não vem de longe
nasceu
de um grito em leito de susto
cresceu em mim modelado.
Há sempre nele um roteiro, papéis
um cristo no outeiro
madalenas esvaídas, un té no tempo perdido
julio cesar (até ele)
cardumes cartas espelhos
e mais cem mil companheiros.
Em sutil complô nos medimos
na sua mão os meu dedos
fazem gestos obscenos.
Somos apostas diversas num baralho sem coringas
o alarme no seu ventre é filho meu enterrado.
Sobre a mesa de domingo dividindo um mesmo prato
eu esfarelo o o pão, ele recolhe as migalhas.

INVASORA
Porque não podem suportar o Teu silêncio
erguem anjos de pedra, monumentos
meticulosos, enunciam as virtudes
dizem saudades que em vida não disseram.
Porque sabem que é fatal o esquecimento
em bronze firmam data, nome, sobrenome
aos mármores conferem escrituras
de palavras os vestem de eloquência.
Para fingir que a vida Te visita
e que é possível tolerar o Teu mistério
constroem muros de ferro trabalhado
fazem portões, definem Teus limites
criam mapas e numeram Tuas moradas
dispõem floreiras, levam flores que não chegam
para aplacar o assombro que Tu causas
quando saqueias as casas da cidade.

GOTAS
Quando o mar rugia e os rochedos
afiavam pontas pontiguadas
quando os pinheiros perdiam-se em neblina
e nos guiavam ainda os portulanos
quando tudo era só presságio
e nosso espanto era verdadeiro
no verde das agulhas, no apontar dos galhos
resistiam gotas, benfazejo orvalho.
Estavas lá, não as escutaste?
Estavam lá, não as percebeste?
Em nossos beijos cada vez menores
em nossas bocas cada vez mais puras
restavam gotas, último setembro.
Estavam lá, não as entendemos.
Desperdiçamos grandes tempestades
majestosos raios, todos os lampejos
inventamos torres, insulada ameia
perdemos tudo, até o mais pequeno.
Anna Mariano é nascida em Porto Alegre, formada em Direito pela UFRGS. Em 2006, abandonou a advocacia e publicou seu primeiro livro Olhos de Cadela, poemas ( L&PM), finalista do prêmio Açorianos de Literatura. Em 2011, foi finalista do Prêmio Fato Literário realização do Grupo RBS. Seu primeiro romance, Atado de Ervas (L&PM), foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura – Melhor Livro do Ano Autor Estreante. Em 2017 publicou Pra Amanhecer Ontem (L&PM) finalista do Prêmio da Associação Gaúcha dos Escritores, AGES, edição 20018.
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