DE ‘CINE ABC’, DE ALEXANDRE BRITO
O TAIFEIRO
sob a lâmina das águas
dorme a carcaça do jovem taifeiro
nunca mais as fragatas
nunca mais os prostíbulos
as nódoas da manhã inquieta nunca mais
crispam-se as ondas
dançam as algas gritam os peixes
imperturbável o sono das profundezas
cai o sol
cai a noite sobre o cais
nunca mais o dia nunca mais nunca mais
dorme o jovem taifeiro em seu leito de areia
sob os lençóis negros de um oceano decepado

dezoito horas e quarenta minutos
de uma tarde infernal de verão
assombrada
minha sombra enlouquece
estica-se à deformidade
alcança a fachada das casas distantes
agarra o horizonte
esforço inútil
a penumbra não tarda
a noite engolirá a ambos
seremos uma só escuridão

Mário de Sá-Carneiro tinha 25, Van Gogh, 37.
Jack London aos 39. Anne Sexton aos 43.
Santos-Dumont chegou a 59 invernos. Hemingway a 60 verões.
Virginia Woolf viveu 58 anos. Sylvia Plath apenas 30.
Florbela esperou o dia do aniversário para morrer.
Gilles saltou de um prédio. Maiakovski deu um tiro no peito.
Iesiênin cortou os pulsos e Mishima ceifou o ventre.
Assis Valente, depois de escrever um bilhete a Ary Barroso. E um verso:
“Vou parar de escrever, pois estou chorando de saudade de todos e de tudo.”

O JOGO DAS MIL IMPERFEIÇÕES
o jogo começa sem regras.
um feixe de luz ruga adentro trespassa a pele de um segundo.
um silêncio depois, o silêncio árido. o interstício.
um não-lugar um não sei onde, onde nada ou quase nada desacontece.
o tempo sinuoso tem o passo lento dos camelos.
não faz evocações a deus algum.
ainda que o criador seja designado em árabe
por quatrocentos e noventa e nove nomes diferentes,
não faz diferença. ninguém é escutado nunca.
amigo dos corvos o espaço é um ser imberbe.
um passeio no deserto nunca é um passeio no deserto.
a sede não cessa com a morte. nem a morte com a salvação.
Bérberes, Beduínos, Tuaregues, bem o sabem, pois as
tempestades de areia não apagam o que com areia se escreve.
mil e uma noites de repouso numa tenda sob o céu à beira do Tigre,
quarenta banhos batismais à luz do dia nas águas do Jordão, não recompõem o descrente fatigado. um espelho que não reflete não é um espelho. quando ninguém sabe dizer com quantos corpos se faz um sementério, o mundo vertical vem abaixo. sangra em transe a noite possível.
alguém com pouco passado não tem o que dizer.
um poeta demora. ao contrário do profeta sabe a verdade provisória.
nasce sem saber. morre sem saber. e como quem nada sabe
esconde-se atrás das palavras. não para que o encontrem,
mas às palavras.
tamareiras ensombram o caminho a Bagdá.
o vento milenar sopra sobre a cidade três vezes santa.
dois meninos, órfãos, de etnias distintas,
dois olhos de um mesmo rosto sob o sol
estudam álgebra entre formigas e abelhas.
um sonho encravado na carne é o mundo.
Alexandre Brito, é músico e escritor. Poeta e compositor. Atua como produtor cultural e editor. Autor de Museu Desmiolado (Prêmio Os 30 Melhores Livros Infantis do Ano Revista Crescer, selecionado pela FNLIJ para o Catálogo Brasileiro da Feira Internacional do Livro Infantil e Juvenil de Bolonha/2012), Muito Esquisito, que recebeu o prêmio Cátedra Unesco de Leitura. Circo Mágico, Uakti-Uiara, Metalíngua, Zeros e Cine ABC. Escreve e compõe para gente pequena média e grande. Também é o atual presidente da AGES – Associação Gaúcha de Escritores.
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