FALAS À ESPERA DE ESCUTA – ANA LÚCIA LIBERATO TETTAMANZY
Raro é o brasileiro que, tendo passado por pelo menos um livro didático de história do Brasil, não conhece o célebre quadro “Primeira Missa no Brasil” (1861), do pintor Victor Meirelles. A cena retratada repercute algumas constantes na representação dos indígenas nos campos das artes, das letras e das ciências naturais desde os tempos da colônia e mesmo após. Inseridos como observadores da cena, em cima de árvores, atrás do altar ou nas suas margens, os ameríndios surgem como parte da natureza, elemento coadjuvante e decorativo. Sua força reside na beleza plástica de seus corpos e adereços, que, junto a céu, nuvens e plantas, funcionam quase que como uma moldura para a cena nomeada, no caso, a primeira missa. Sobre o altar, encimado pela enorme cruz, projetam-se as luzes mais intensas, destacadas ainda sobre a vestimenta branca dos padres oficiantes do rito. A cena inaugural nega subjetividade àqueles que se transformaram em massa inerme.
Desde a carta do escrivão-mor de Cabral, os relatos de viajantes e naturalistas, as missivas e os relatórios de padres, oficiais do Reino e cronistas, via de regra, descreveram por quase quatro séculos a paisagem e as gentes da terra como projeções de suas visões e (pré)conceitos. Povos imigrantes que vieram mais tarde (século XIX em diante) seriam considerados legítimos formadores da nacionalidade, em oposição aos nativos, insistentemente colocados como em vias de extinção ou a caminho de sua “integração” à sociedade brasileira (o preço para isso é bem conhecido, deixar de ser índio, apagar-se na abstração da “cidadania” e na vida na cidade).
[…] caso do contato cultural entre índios e brancos, o silenciamento produzido pelo Estado não incide apenas sobre o que o índio, enquanto sujeito, faz, mas sobre a própria existência do sujeito índio. E quando digo Estado, digo Estado brasileiro do branco. Estado que silencia a existência do índio enquanto sua parte e componente da cultura brasileira. Nesse Estado, o negro chega a ter uma participação. De segunda classe é verdade, mas tem uma participação, à margem, o índio é totalmente excluído. No que se refere à identidade cultural, o índio não entra nem como estrangeiro, nem sequer como antepassado (ORLANDI,1990, p.55).
Sintoma do trauma fundador do Brasil, os povos originários foram destituídos de voz porque, como explica a linguista Eni Orlandi a partir dos pressupostos da análise do discurso, só há discurso quando há interação entre locutores. No caso das situações de contato, quando só um fala, a experiência do outro e sua própria existência são negadas. Assim, quando uma parte da origem é silenciada e, como tal, violada, a identidade sofre danos que requerem reparação. Para restabelecer a ordem psíquica e simbólica deste lugar que veio a se chamar Brasil, precisa ser restaurada a origem fraturada, ou seja, nomear e narrar a genealogia que foi subtraída. E não faz muito tempo que esta restauração vem sendo produzida a partir dos sujeitos que foram arrancados de seus territórios e de si mesmos e que surgem então como protagonistas de criações e textualidades em que procuram dizer seu lugar no mundo. Resta serem escutados com a profundidade e o respeito devidos. Nesse volume encontramos uma amostra de um contingente de criadores e pensadores que só tem aumentado nos últimos trinta anos, na esteira da promulgação da Constituição de 1988.
O texto de Ailton Krenak, intelectual e liderança de larga trajetória, define para os povos originários o lugar de guardadores da floresta. Com isso, o autor insurge-se sobre a manifesta proposta do Estado brasileiro de, sob o argumento de “não serem mais índios”, transformar todos “em peões” nas cidades, subalternizados na engrenagem da espoliação da sua força de trabalho. Krenak denuncia a perda do modo integrado e pleno de viver por conta da permanente guerra de conquista:
[…] as raízes da história do Brasil estão fundadas na guerra de conquista do Estado se consolidando em cima dos nossos territórios, tomando os nossos lugares de riqueza e de fartura e nos reduzindo a lugares que são chamados de parques, reservas, aldeias ou terras indígenas. Isto já é uma redução absoluta do sentido de liberdade, de soberania e de qualidade de vida que o nosso povo sempre experimentou e viveu durante gerações e gerações.
Denúncia semelhante é realizada pelo escritor Tiago Hakyi, que traduz, nos seus termos, o trauma da nacionalidade causado pelo silenciamento das matrizes indígenas (apontado anteriormente por Eni Orlandi):
A cultura dos povos indígenas, ao longo dos tempos, tem sido tratada com certo desdém – vivendo em um hiato de esquecimento abissal. […] O Brasil necessita se conhecer, é impossível pensar em nossa história sem levar em consideração os povos aqui existentes, sem louvar a ancestralidade presente primordial para o surgimento da nação brasileira.
Além da preocupação em construir mecanismos para sanar esse esquecimento sobre o país profundo, Hakyi destaca o uso das tecnologias na manutenção do legado da tradição e dos diálogos interculturais que esses povos há séculos vêm realizando. Ressalta, assim, a contemporaneidade desses sujeitos e de suas cosmologias. O já conhecido professor e autor de mais de 50 títulos, Daniel Munduruku, alerta, como fizera Ailton Krenak, para as novas formas de extermínio e captura dos originários, que se tornaram párias nas cidades junto a outros sujeitos e coletivos subalternizados:
Esses povos traziam consigo a Memória Ancestral. Entretanto, essa harmônica tranquilidade foi alcançada pelo braço forte dos invasores: caçadores de riquezas e de almas. Passaram por cima da memória e escreveram no corpo dos vencidos uma história de dor e sofrimento. Muitos dos atingidos pela gana destruidora tiveram que ocultar-se sob outras identidades para serem confundidos com os desvalidos da sorte e assim sobreviver. Esses se tornaram sem-terras, sem-teto, sem-história, semhumanidade. Tiveram que aceitar a dura realidade dos semmemória, gente das cidades que precisa guardar nos livros seu medo do esquecimento.
Interessante destacar, ainda sobre esse fragmento de Munduruku, a ideia de que a aceitação da escrita pode ser compreendida como a tentativa dos vencidos de enfrentar o medo do esquecimento, mais um efeito da violência dos colonizadores sobre os corpos e memórias não ocidentais. Já Olívio Jekupé propõe um sentido diferente para a opção pela escrita, pois a literatura surge para ele como arma: “A história que conto é de um líder indígena kaingang que foi assassinado brutalmente; os culpados nunca foram punidos. Por isso eu vejo a escrita como uma grande arma e nós indígenas devemos usar essa arma do branco em nosso favor”.
De modo semelhante, Ely Macuxi, professor, ativista e escritor, define as recentes escritas ameríndias como uma reinvenção justamente sobre o elemento coercitivo que se impôs há mais de cinco séculos sobre os povos originários:
Antes símbolo da colonização civilizatória, a escrita tornou-se um instrumento importante, na medida em que possibilitou aos povos indígenas estabelecerem diálogos e entendimentos com o poder público, por meio de produção de documentos reivindicatórios para a melhoria das políticas públicas hoje oferecidas – sobretudo na saúde e na educação, mas também na demarcação, homologação do território, segurança alimentar em nossas terras. Essa produção constitui-se numa literatura – poesia-práxis – usada para confrontar e reagir às ações regionais: grileiros, mineradores, pecuaristas invasores de seus territórios.
O autor formula um conceito original – o de poesia-práxis – para dar conta da dimensão política das ações e realizações desses povos. Além de alertar para a diversidade de experiências interétnicas e interculturais processadas por essas sociedades, Ely sugere um entendimento complexo da produção literária, em diálogo com outras linguagens e suportes:
Assim sendo, não podemos pensar a literatura indígena como única, falar de uma é falar de todas. Lembrando que os povos indígenas, ao seu modo e mundo, sempre escreveram e registraram suas histórias, presentes nos grafismos, desenhos, monumentos, instrumentos que remontam tempos imemoriais, presentes nas artes rupestres, nos vestígios arqueológicos, e que hoje são atualizadas em nossa cultura material e espiritual, ornamentos, nos rituais e danças.
Essa definição propõe as escritas não alfabéticas como antecedentes da letra ocidental, e mesmo coexistentes a ela. De modo semelhante, Cristino Wapichana expressa o caráter multimodal e a diversidade semiótica de sua produção, que transita por várias linguagens e campos das artes e da cultura.
Escrever, porque eu escrevo? Eu também sou músico e também estudei cinema, posso dirigir um filmezinho aí. Eu gosto da arte; antes de tudo, a arte me encanta, a arte me incomoda, a arte me move, me comove. Ela faz viver, me sentir pertencente ao mundo, pertencente à sociedade, me aproxima do criador. Então, escrever dessas artes é o que eu decidi para minha vida.
Afirma, portanto, sua necessidade de criar e destaca a importância de trazer uma visão que surge de dentro, não mais estereotipada e exótica:
É pra conhecimento da sociedade brasileira e quem sabe uma aproximação de fato em termos de respeito para com essas nações primárias. Para a gente, eu como autor, meu povo, que reflete o que eu faço lá, é primeiro autoestima, isso aumenta nossa autoestima, depois a gente tira aquela coisa do outro escrever pela gente, então é nosso próprio olhar, a nossa própria vivência, é nossa própria espiritualidade, nosso jeito de ser no mundo, de viver no mundo.
A geógrafa e escritora Márcia Kambeba enfatiza o caráter movente dessa produção literária, que transfere para a escrita os fundamentos coletivos:
Na literatura indígena, a escrita, assim como o canto, tem peso ancestral. Diferencia-se de outras literaturas por carregar um povo, história de vida, identidade, espiritualidade. Essa palavra está impregnada de simbologias e referências coletadas durante anos de convivência com os mais velhos, tidos como sábios e guardiões de saberes e repassados aos seus pela oralidade. Não quero dizer aqui que a prática da oralidade tenha se cristalizado no tempo. Essa prática ainda é usada, pois é parte integrante da cultura em movimento. À noite o indígena sonha com o que vai ser escrito ou com a música a ser cantada com os guerreiros da aldeia. Acredita-se que quem escreve recebe influências de espíritos ancestrais, dos encantados, por isso a literatura dos povos da floresta é percebida com um valor material e imaterial.
Kambeba ressalta nesse trecho os valores espirituais e rituais da literatura, atravessada pelo potencial cognitivo e simbólico dos sonhos e das orientações dos ancestrais. Contrariando as visões equivocadas sobre os povos indígenas, que os condenam ao passado e à incapacidade de mudança, revela a sintonia com as tecnologias, bem como a capacidade de diálogo desses novos agentes culturais e mediadores das suas tradições:
Hoje, temos indígenas que se utilizam das redes sociais, blogs e páginas de cunho literário que são visualizadas todos os dias. Nasce outra ferramenta, se bem usada, de divulgação do pensamento indígena. Aos poucos vai-se ganhando um público leitor nas redes virtuais para uma literatura virtual, com o mesmo peso que a literatura publicada em papel.
Por fim, Eliane Potiguara usa a potência simbólica e metafórica da narrativa para ilustrar a necessidade de fortalecer entre os povos suas diferenças, mas também sua capacidade de diálogo. Na figura da protagonista Cunhataí, defende a capacidade de liderança e a sabedoria das mulheres ao guiar e unir as comunidades: “pela primeira vez uma grande alegria inundou seu coração e espírito, possibilitando a felicidade da mulher indígena, pois todos haviam trabalhado por esse objetivo”.
A diversidade de recortes presente nos textos dessa coletânea é reveladora da potência desse lugar de fala; resta – e isso não é pouco – qualificar os lugares de escuta para essas vozes e criações que dizem respeito a todos que habitam o território que veio a ser nomeado como Brasil. Talvez a melhor forma de concluir essa apresentação seja destacando algumas das perguntas – ainda sem resposta – formuladas pelo instigante texto de Ely Macuxi. Embora se afirme convencido de que a literatura indígena “apresenta uma cultura indígena viva, perene, criadora, transformadora e impulsionadora para os novos desafios que o mundo hoje impõe aos povos indígenas”, o escritor retrocede à questão identitária, de fato básica para o começo da conversa:
Quem são essas pessoas, que estão longe e, ao mesmo tempo, perto de cada brasileiro? Quais os reais motivos que estão por trás dos preconceitos e das discriminações em relação a eles? Por que são negados em seus direitos e tratados de forma tão preconceituosa, se suas histórias remetem à ancestralidade de cada um dos brasileiros? O que é real, irreal ou hiper-real nesses versos e prosas sobre os povos indígenas que chegam ao mercado editorial brasileiro? Quem fala e do que se fala no contexto da Literatura Indígena? Qual a importância que a Literatura Indígena tem para a manutenção da cultura, da língua e da sociabilidade desses povos? Ou, ao contrário, pode ela se tornar mais uma estratégia de assimilação, pacificação das culturas tradicionais à assimilação e ao tutelamento promovidos pelo Estado nacional brasileiro?
Avança e indaga sobre os sentidos sociais e políticos da escrita e da escolarização para esses povos:
Escola para quê e para quem? […] Pode a escrita suprimir ou até extinguir a língua tradicional? Qual a função social e política da escrita na afirmação e na manutenção das línguas tradicionais? Como ela pode deixar de ser um instrumento de colonização e de integração para ser um espaço de debates e de troca de conhecimentos e de aprendizagens que favoreçam a língua e a cultura indígena como um todo?
Segue ponderando acerca dos sentidos da formação profissional e superior dos indígenas:
Qual é a direção da canoa? E em qual canoa estamos embarcando? Um indígena escritor ou um escritor indígena? Que serventia, perguntava o cacique de Seattle, em um trecho da famosa carta enviada ao governo americano em 1855 (EUA), terá um guerreiro letrado, um índio escritor, sociólogo ou antropólogo, se ele não sabe mais caçar, pescar, fazer ritual, identificar e proteger os parentes? […] Então, para que serve a educação, para manter ou afastar os indígenas de seus territórios? O que está errado, afinal?
Arrisca algumas respostas quando, por exemplo, defende as apropriações realizadas pelas escritas indígenas:
a escrita tem se mostrado de grande utilidade nos contextos indígenas, uma ferramenta que deixou de ser um instrumento de dominação e controle e que hoje é instrumento de afirmação, divulgação e defesa dos povos indígenas – um instrumento de divulgação das riquezas culturais, das narrativas, dos mitos, das imagens, dos simbolismos que destacam a estética, o belo, os grafismos que orientam nossa condição de povos diferenciados, com línguas e territórios, filosofias e ciências, embora certos setores da literatura brasileira ainda precisem permitir acesso e permanência da literatura indígena em suas academias e fóruns.
Aponta ainda riscos e traz dúvidas sobre a autoria e a ética de alguns produtores, definidos como
puçungas e buchudos, que, sem nenhum critério e respeito, se apropriam indevidamente desses conhecimentos, fingindo-se de inocentes e inofensivas ovelhas… São os tracoar – seres de fome insaciável, seres que têm o poder de misturar tudo e confundir as pessoas, levando-as a acreditar que o que se diz e escreve são pura verdade.
De fato, é sabido que não foram saqueados apenas os recursos naturais; as apropriações e roubos também foram intensos nos âmbitos imateriais e simbólicos, de modo que Ely segue em sua inquietação:
Assim, creio que não seja nenhum absurdo perguntar a respeito da autoria, dos direitos e da propriedade destas histórias indígenas: quem realmente está escrevendo sobre a cultura indígena? A quem devem ser pagos os direitos autorais das histórias indígenas? […] A “literatura Indígena” tem contribuído ou não para reforçar preconceitos e discriminações aos indígenas?
O escritor conclui de modo assertivo:
Assim sendo, é preciso dizer que os assédios sobre os Povos Indígenas não são somente sobre suas terras (minérios), seus campos (pastos naturais), rios (água doce) e florestas (madeiras), conhecimentos tradicionais (farmácia viva, microbiologias); se estendem também aos imaginários, aos conhecimentos ancestrais, tempos imemoriais, símbolos, mitos, línguas, filosofias e ciências, histórias, enredos, rituais, ritmos, cantos e poesias, sofisticadamente elaboradas há milhares de anos, expressões de sociabilidade vivenciadas e celebradas diariamente em seus rituais de celebração da vida.
Isso posto, o que nos cabe como educadores, intelectuais e interessados nessas escritas e repertórios é empenhar nosso capital cultural e simbólico em alianças com os povos originários contra os tracoar e os agentes neocoloniais que insistem em atacar seu direito à existência e à diferença. Dessa maneira, talvez recuperemos para essas terras uma ordem (cosmologia) em que os outros voltem a ser a solução e deixem de ser o problema.
Referência
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra à vista: discurso do confronto: velho e novo mundo. São Paulo: Cortez/ Campinas: Ed. da UNICAMP, 1990.
Ana Lúcia Liberato Tettamanzy é doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente, é professora associada da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Reproduzido com a autorização da autora.
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