LEMINGUES – LÍVIA ARAÚJO
Chegando em casa encontrei-a sentada à mesa, relaxada, tomando café. Como se me contasse sobre um fait divers visto na rua, me disse que tinha saído com um homem a esmo, achado sabe-se lá onde — o tinder? Ela me disse, na verdade, que ele esteve em nossa casa e que depois do encontro sentou-se àquela mesma mesa onde eu estava e expeliu algumas das mais abomináveis crenças políticas de nossa época.
Apesar disso, a experiência, aparentemente casual, tinha sido bem interessante. Eu não conseguia entender — era isso que ela queria? A ideia, em si, não era necessariamente ruim, mas me surpreendia. Eu esbocei um sorriso malicioso, mas hesitante, quase humilhado.
— Então… bem, então se você falar com ele de novo — eu disse, tentando me convencer de que o ser e o conteúdo poderiam ser dissociáveis, que se o corpo era desejável, a qualidade da alma poderia não ter importância. — Nós podemos sair todos juntos…
De repente seu semblante se fechou, como se o semblante aberto de antes, assim como o relato, fosse um pedaço de queijo só destinado a me prender em uma armadilha para bobos.
— Isso não te diz respeito. É algo que tive só para mim.
— Então para que me contar? Talvez eu devesse fazer o mesmo, procurar alguém.
— Se é isso que você quer, faça mesmo — ela disse, e se levantou. E saiu. A distância que ganhava de mim era de anos-luz. Acabou, então?
Nós tínhamos acabado de nos mudar para aquele apartamento, grande e antigo. Como ficaria a reforma que precisávamos fazer? Eu olhava para um tanque velho, úmido e cheio de musgo, escondido atrás de uma cortina de banheiro. Tudo parecia velho e apodrecido e minha tristeza era cada vez maior. Ela voltou com duas mulheres aparentemente sexagenárias, que pareciam corretoras de imóveis, que examinavam tudo, conversavam entre si, mas nunca comigo. Ela continuava ali, mas em outra galáxia visível a olho nu, mas inalcançável.
Então fui embora. Fui embora para, pouco depois, me juntar a um grupo de refugiados, cuja necessidade de refúgio não se podia ver nas roupas e na pele, mas na fragilidade do deslocamento. Chegamos à beira de uma enorme ponte, retrátil e levadiça. E a ponte não funcionava direito. Chegou a se projetar e a alcançar o outro lado de um vão enorme e mortal para, segundos depois, se retrair e se recolher, e então centenas de pessoas recuaram às pressas, para não cair no vão. Conseguimos, ao menos, que a ponte fosse desativada e não oferecesse o risco do engano. Assim, fomos cuidadosamente descendo ao vão, esperando que, de alguma forma, descer, em vez de cair, não nos matasse.
Lívia Araújo é jornalista e atua como repórter de política no Jornal do Comércio. Iniciou na literatura em 2003, escrevendo contos breves e prosa poética no blog festamovel.wordpress.com.
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