MINHAS PERNAS DESACOSTUMADAS AO SUCESSO ESQUECERAM DE PEDALAR – R. TAVARES

Era verão de 1993 e mais uma vez eu era a atração da rua Luiz Mércio Teixeira. Todos já sabiam, deviam estar acostumados, mas mesmo assim perto das cinco da tarde a gurizada parava de jogar taco e sentava no meio fio, em frente a Igreja do Sétimo dia não sei de quem, pra assistir meu suplício.

Todas as tardes, quando o sol já estava um pouco mais fraco, eu abandonava os quadrinhos e saía de casa com o mesmo objetivo. Ao lado, sempre estavam meus pais e meu irmão. Será que não estava na hora de eles desistirem daquilo? Eu colocava uma roupa velha, que pudesse sujar, umas joelheiras do time de vôlei do colégio e um capacete verde, que parecia da Segunda Guerra, e ia pro combate.

Com as mãos pequenas empurrava a Caloi branca com detalhes em vermelho, herança do irmão colorado, e seguia para a via sem calçamento. Não conseguia nem olhar pros guris da rua, tinha vergonha. As meninas, mais compreensíveis, seguiam suas brincadeiras de corda e assistiam meu vexame diário apenas com o canto dos olhos.

Naquele dia, com o céu pintado de rosa, daqueles em que as nuvens parecem ter se esparramado, como se tivessem passado uma vassoura de guanxuma para limpar o salão, eu senti que conseguiria. Levei a bicicleta pra rampa da garagem, posicionei de um jeito que o próprio declive me impulsionasse. Passei a perna direita por cima e me acomodei no banco, que fazia questão de deixar na posição mais baixa, com medo de me machucar.

Segurei firme os punhos emborrachados do guidom, até que as juntas dos dedos embranqueceram. Testei os freios e encarei meus inquisidores. Impulsionei-me, dei uma pedalada e deixei que a bicicleta ganhasse velocidade ao descer a lomba, senti quando a roda encostou no chão de terra e aproveitei aqueles momentos de glória. Podia adivinhar os meninos surpresos, as gurias pulando e deixando a corda cair, sentia o olhar deles todos presos na minha nuca.

No êxtase do equilíbrio, esqueci por completo que o impulso não duraria para sempre, as pernas desacostumadas com o sucesso esqueceram de pedalar e num primeiro buraco senti que a bicicleta perdia a estabilidade. O guidom passou a balançar desordenado e, com medo do pior, apertei as duas alavancas do freio. Podia adivinhar as risadas e apenas fechei os olhos antes de cair no chão – queria me enterrar num buraco, quebrar um braço, ou qualquer coisa mais grave.

Quando pensei que escutaria os deboches de sempre, foram os gritos que me abriram os olhos. Todos gritaram pare, cuidado, me encolhi ainda mais e só entendi o que estava acontecendo quando senti que o carro freou encostado à bicicleta. Pelo silêncio de todos, pensei que tinha morrido. Até que, em seguida, meus pais correram pra me abraçar, e o resto das crianças explodiu em aplausos e gritos de alívio. Meu espólio de guerra foram apenas uns arranhões no queixo e o gosto de terra na boca.

Daquele dia em diante, foi determinada a minha vitória e pude ficar lendo meus gibis até mais tarde.

Rodrigo Ungaretti Tavares nasceu em Bagé, em 1986. Reside atualmente em Porto Alegre e é autor de Andarilhos, Noite Escura, Contos Sangrentos e A tropeada. É também o idealizador e curador do FestFronteira Literária, festival de literatura que ocorre anualmente em sua cidade natal.  Ainda que a terra se abra, seu novo livro, será lançado em abril de 2020 pela Editora Taverna.

FICÇÃO

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