MORITURI TE SALUTANT – CONTO INÉDITO DE GUSTAVO MELO CZEKSTER

Cláudio, o engenheiro, passa uma hora na frente do espelho experimentando maquiagens, colares, pulseiras, anéis e, quando está satisfeito com o que enxerga, coloca os tênis sujos, as calças rasgadas e vira Cláudio, o punk. Rodrigo e Jaque passam na sua casa, os dois também vestidos de maneira cuidadosamente desleixada, e o grupo vai para a Osvaldo Aranha. É uma noite muito aguardada e especial: quando eles abandonam as suas facetas sociais e encontram-se com o espírito de revolta ao sistema que foram forçados a seguir para terem uma existência confortável, com todos os bens e vantagens proporcionadas pelo dinheiro. Ninguém nunca saberá a verdade: no dia a dia, eles são punks disfarçados que imitam cidadãos ordeiros e cumpridores da lei.

Estacionam o Audi bem longe do lugar da festa e atravessam as quadras silenciosas do Bom Fim, encontrando no caminho transeuntes distraídos levando cachorros para espargirem mijo nas árvores, adolescentes de celular na mão esperando o táxi, crianças contemplando com olhos arregalados aquele estranho cortejo que desliza pelas calçadas em um rasgo colorido dentro dessa realidade cinza chamada de mundo. Caminham em silêncio, olhando para os lados; esqueceram que os bandidos não costumam assaltar punks, conhecidos por não carregarem dinheiro, apesar do grupo estar com cartões de crédito platina e gold, além de uma quantidade significativa de dinheiro em notas mínimas e amassadas intencionalmente logo após o saque dos caixas eletrônicos, para dar maior consistência ao disfarce.

Na porta da casa noturna, uma roda de silhuetas vestidas como eles. Ainda estão distantes, mas a música encapsulada dentro das paredes lhes saúda com promessas roucas de rebeldia e inconformidade. Sem querer, os três punks aceleram o passo, ansiosos para mergulharem naquele ambiente de luta contra o sistema, de ofensa aos padrões socialmente constituídos, de discussões furiosas contra os grilhões que sufocam as pessoas. Depois voltarão para as suas vidas normais, mas, hoje, é noite de serem radicais. Cláudio coloca um Halls preto na boca e chupa, apressado, enquanto a casa noturna prolonga olhos luminosos de azul e vermelho na direção das ruas, procurando novos corpos para sorver em meio às suas pinturas desbotadas que conheceram dias melhores.

Era uma tarde modorrenta: colunas de vapor destacavam-se da relva quebradiça, um amarelo pálido onde outrora vicejara o verde. Até os mosquitos pareciam deslocar-se com lentidão por entre os cavalos a ruminar debaixo das raras árvores. O sol incinerava o mundo com seu olho de fogo, e foi neste momento que os dois homens surgiram na estrada. Caminhavam devagar, julgando-se protegidos pela sombra dos chapéus, mas o dia queimava até por baixo das roupas.

Quando estavam mais próximos da sede da estância de Dom Manuel Costa, foi possível ver os seus traços surgindo por entre o vapor translúcido que emanava do chão. Um deles não devia ter mais de quinze anos; o rosto não exibia barba, a pele frágil de quem não estava acostumado às lides campeiras. O outro era um velho amparado em uma haste de madeira, com um grande corte que corria do supercílio esquerdo, passando sobre os olhos e o nariz, para sumir quando adentrava no couro cabeludo; os olhos esbranquiçados ainda guardavam o rastro da lâmina que os percorrera.

A dupla aproximou-se da varanda e ambos depuseram seus chapéus em respeito. Pediram estadia por uma noite e Dom Manuel concordou, dizendo que seriam bem vindos entre os peões. Após agradecerem, os dois se afastaram na direção do galpão; de um lado do velho, estava a improvisada bengala e, do outro, o rapaz segurando seu cotovelo, desviando-o de buracos e de pedras inoportunas.

O mundo era feito de raiva e de declarações cuspidas contra as paredes em forma de música; no caminho, estavam as pessoas. Os corpos ondulavam e pulavam na pista de dança, às vezes trocando empurrões e socos, todos submetidos à melodia impregnada de fúria, com acordes agudos, baterias pulsantes, palavras vociferadas em meio a uma torrente de palavrões.

Cláudio afastou-se por momentos da pista de dança; o corpo estava agradavelmente dolorido, enquanto o suor descia por entre seu couro cabeludo. A maquiagem continuava intacta; tinha pesquisado muito para encontrar um produto mais resistente e que não se desfazia tão fácil, valera a pena cada centavo investido. Sentia-se vivo e repleto de energia; a música entrava pelos seus poros sussurrando-lhe que era imortal, que era invencível, que era o senhor do mundo. Ao seu redor, via grupos gritando entre si, enquanto algumas pessoas se entorpeciam e outras se esfregavam com volúpia. Estava em Sodoma, um local sem leis, sem hierarquias, em que até mesmo Deus olhava para o lado, ciumento por não ter sido convidado.

O olhar vagava por entre seu território quando percebeu, em um canto, perto de uma pilastra, a menina com quem tinha ficado no mês passado (Maria Fernanda, loira, olhos verdes-clichê, cara de lagartixa, um aparelho de dentes que fizera questão de esfregar com a sua língua). Na frente dela, estava um cara, um obstáculo de casaco rasgado ostentando o símbolo do Misfits, e ele tentava engoli-la pela boca: a língua dele estava passeando entre o aparelho de dentes que pertencia à Cláudio e, assim, com passos decididos, famintos, ele se aproximou do casal para pegar de volta aquilo que lhe pertencia.

A noite chegou, trazendo alívio para o dia em que o sol declarara guerra aos homens. Os peões voltaram do campo, barulhentos, agitados, ansiosos por uma bebida, talvez um pouco de música, com certeza algum descanso. No canto do lugar, a dupla de recém-chegados mantinha-se à distância dos desconhecidos, que trocavam gritos e risadas; o rapaz servia o velho, colocando comida na sua boca, servindo-lhe água, limpando-lhe o rosto.

A vida no campo era dura e, depois de tanto sol na cabeça, os homens precisavam relaxar. Era como se o calor tivesse ingressado em partes outrora congeladas pelo minuano, trazendo à vida antigos sentimentos, rancores deixados no passado. Todos ali se conheciam, menos a dupla de desconhecidos que chegara à tarde; concentraram-se neles, prestando atenção na subserviência com que o menino se comportava em relação ao velho. Muitos deles ali não tiveram pais a lhes criarem; todos receberam a criação selvagem dos campos, as aulas ásperas da natureza, os ensinamentos brutais distribuídos pelos safanões dos homens e mulheres mais fortes. Poucos dos peões tiveram o privilégio de uma família e, entre eles, ainda menos foram os verdadeiramente amados. O mundo das lides campeiras transformara-os em pessoas amargas, duras, que viam qualquer mínima gentileza como fraqueza, que entendiam somente a honra e a masculinidade como valores a serem respeitados.

O rapaz servia o velho com amor, cuidando dele quase como se fosse uma filha, e isso era ofensivo para pessoas como o Bugre Matias, um homem magro que carregava a morte de outras quinze pessoas dentro da sua sombra, com cicatrizes que atravessavam o corpo xucro como se fossem as linhas de uma mão. Sentado no canto, o Bugre Matias olhava a dupla com seus minúsculos olhos de cascavel, esfregando as mãos precocemente envelhecidas. Os demais peões conversavam entre si e uma que outra risada mais debochada escapava do grupo, tendo o rapaz como alvo. Ele fingia ignorar as piadas; o velho, contudo, sofria em silêncio, cada risada entrando no seu corpo como um punhal, a mão apertando o braço do filho com força.

Cláudio bate no ombro da jaqueta do Misfits: larga ela, cara, larga. Por segundos a boca nojenta se despega de Maria Fernanda, não enche, caralho, vai pra puta que pariu. A música se mistura com o trio, insinuando impulsividades. Cláudio segura o braço do outro e o afasta com um repelão: eu mandei tu largar fora, porra! Maria Fernanda ergue os olhos perdidos na sua direção, sorrindo de forma idiota, e canta uma música infantil que ressoa em meio ao salão com a assustadora nitidez dos desvairados. Com olhos injetados, o jovem encara Cláudio de forma direta: braços com marcas roxas, nariz em carne viva, bafo mentolado e enjoativo; heroína, cocaína e maconha, o pacote completo. Maria Fernanda ri, imbecilizada, dona Chica-ca-ca admirou-se-se. Cláudio recua um passo e coloca o dedo em riste diante do piercing no nariz do Misfits: vai embora, cara, a guria é minha! Olha Maria Fernanda e, por um breve segundo, tem dúvida se vale mesmo a pena: os bicos marrons dos seios espiando por entre a camisa apertada acabam o convencendo.

A passividade do jovem irrita o Bugre Matias mais do que imaginava. Não é assim que alguém de respeito se comporta, cuidando de outros homens. Não tem filhos – pelo menos não de forma voluntária, deve ter emprenhado alguma das mulherzinhas que pegou por aí –, mas sabe que nunca é tarde para ensinar um homem a ser digno, a ser macho. Ele vai até agradecer. Levanta-se e chega perto da dupla. O rapaz levanta seus olhos imberbes de maldade e ele rosna: guri de merda, tu é uma mulherzinha pra tratar o velho deste jeito? Para agora ou vamos lá no pátio e eu te mostro o que é ser homem de verdade.

O silêncio espalha-se dentro do galpão. Todos esperam os próximos movimentos, fingindo indiferença, mas atentos. O rapaz olha para os lados antes de encarar a forma ameaçadora que está na sua frente e só então responde:

– Venho de muito longe. Sou o único sobrevivente da família: o resto foi assassinado pelos castelhanos, com exceção do meu pai. Se morrer hoje, a nossa linhagem acabará, e meu pai, um homem cego, ficará sem o único braço que lhe conforta, sem ninguém para lhe cuidar. Sou o seu guia durante as noites que enchem a sua vida, a última alegria que Deus lhe deixou; em mim ele se apoia, se firma, descansa. Tudo o que lhe resta é morrer e, enquanto isto não ocorre, preciso da vida para servi-lo. Não fico envergonhado de pedir misericórdia, mas prefiro ser seu escravo a aceitar este duelo.

A última palavra mal tinha saído dos seus lábios e a cusparada certeira de Bugre Matias acertou-lhe o rosto, cobarde de merda! O homem olhou os outros ao redor e deu as costas lentamente. Na saída do galpão, sem se virar, murmurou, vou te esperar aqui fora, cobarde, e foi engolido pelo mormaço da noite.

As caixas de som continuam vomitando sons distorcidos. Misfits aproxima-se de Cláudio e encosta a boca no seu ouvido: sai fininho, seu merda, senão vou te esvaziar. Uma espetada na barriga: ele tem um canivete. Como entrou ali armado? Mas o gato-to-to não morreu-reu-reu. Empurra Misfits para longe e, quando fala, é com a voz grossa e alta que suplanta qualquer dúvida, a voz categórica: tô te esperando lá na rua, filho duma puta. Vira-se e vai na direção da porta. Com o canto do olho, percebe Rodrigo e Jaque distraídos, bebendo cerveja em meio a outros jovens vestidos como eles, e então sai para a rua, onde o vento discreto faz estremecerem as árvores do parque próximo.

Dentro do galpão, o silêncio se sentou entre os peões quase como se fosse uma presença física. Alguns mateavam, evitando virar-se para o rapaz. Outros mastigavam as respectivas comidas, olhando os próprios pés.

O jovem foi esfregar os lábios do pai e ele afastou a sua mão com um gesto brusco, antes da voz trêmula preencher o galpão em meio aos sons dos sapos distantes:

– Choraste em presença da morte, diante de estranhos? O cobarde não descende do forte, então não podes descender de mim! Eu, que enfrentei um bando de castelhanos sozinho, não posso ter por filho um homem que prefira a escravidão no lugar da morte digna.

O rapaz manteve a cabeça abaixada. Os peões continuaram inertes, fazendo de conta que não estavam presenciando aquela cena.

– Cobarde! – o velho rugiu com voz rouca: – Que sejas rejeitado pela morte na guerra, e pelos humanos na paz! Que não encontres amor entre as mulheres, e muito menos amizade entre as pessoas! Condeno-te a passar a existência sem encontrares a doçura do dia, a meiguice da aurora, ou mesmo um descanso! – os grilos fizeram um silêncio assombrado no meio da noite enquanto o velho recuperava o fôlego: – Nenhum tronco ou pedra servirá de conforto para tua fronte! Que a teus passos a relva se torre, que os prados murchem, que a flor desfaleça! Que o regato limpo seja conspurcado pelos lábios indignos de onde deságua a covardia, que ele se torne um lago impuro repleto de vermes nojentos! – O jovem soluçou, as faces rubras, as mãos retorcendo-se: – Rezo para que passes fome, para que sejas miserável e sedento, para que nossos ancestrais jamais lhe falem nos sonhos! Sê maldito, e sozinho na terra, pois que a tanta vileza chegaste ao chorar diante da morte que, cobarde, meu filho não és!

O jovem engole em seco, sem coragem de erguer a cabeça, prostrado pela veemência do seu pai. Os peões acompanham a cena com olhares dissimulados. No pátio, a escuridão espera.

Na calçada, garoa cai sobre os carros. Faróis indiferentes percorrem a noite. Cláudio espera o jovem, rezando para que ele não apareça: está sem nenhuma arma, vai ser uma vítima fácil. Ao mesmo tempo, sabe que, se Misfits não aparecer, vai buscá-lo. Existem momentos em que a lucidez desaparece e tudo o que resta para um homem é a sua honra, essa veste velha e inconveniente que exige ser lavada com sangue. Lembra dos olhos de Maria Fernanda, do batom borrado lambido pela língua de lagartixa, atirei o pau no gato-to-to, os bicos dos seios, a minissaia curta.

Maria Fernanda não vale uma luta, nenhuma pessoa merece uma luta. Por três vezes pensa em desistir, deixar para lá aquela loucura, mas continua parado, à espera. Cada pessoa que sai do bar é um suplício, todas parecem ter o rosto de Misfits. Cláudio, o punk, espera, enquanto Cláudio, o engenheiro, reza para que a morte não saia e fique lá na pista de dança agarrando os peitos e a bunda de Maria Fernanda.

O jovem chora longas, silenciosas lágrimas. Em seguida, pega a faca que está na cintura do seu pai, beija-o na testa e sai para o pátio.

O velho continua sentado; suas rugas perdem-se entre as lambidas das chamas da fogueira. Os peões tentam adivinhar o que acontece fora do galpão, mas o vento intromete-se entre as tábuas, trazendo consigo o silêncio da noite.

Gustavo Melo Czekster é formado em Direito pela PUC-RS, mestre em Letras (Literatura Comparada) pela UFRGS e doutor em Escrita Criativa pela PUC-RS. É palestrante de temas ligados à literatura, resenhista de sites e ministrante de oficinas literárias. É escritor, autor de dois livros de contos: “O homem despedaçado” (2013) e “Não há amanhã” (2017). Com o segundo livro, foi vencedor do prêmio Açorianos 2017 (categoria Contos), do prêmio AGES de Literatura (categoria Contos e categoria Livro do Ano) e do prêmio Minuano de Literatura (categoria Contos), tendo sido finalista do Prêmio Jabuti 2018 (categoria Contos).

FICÇÃO

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