RAÍZES NA FRONTEIRA – NEI CARVALHO DUCLÓS

Só recentemente descobri os nomes e as atividades de meus ancestrais, graças a uma pesquisa feita pela minha mulher Ida Duclós, que encerrou assim um longo período de indiferença de minha parte em relação a um assunto de tamanha importância. Costumo atribuir esse desligamento ao fato de meus pais terem ficado órfãos de pai muito cedo e jamais tocavam com profundidade o que se passou com eles e antes deles. Mas a responsabilidade é toda minha. Ligado e ao mesmo tempo afastado das minhas raízes, exerço minhas contradições ambulantes.

De toda a diversidade pesquisada das duas famílias que se uniram em casamento em 1939, seleciono o que mais se aproxima desta revista, que homenageia um herói ancestral do Rio Grande. Não que haja heroísmo no que vou contar, mas tem uma boa história.

Soube que meu trisavô materno Manuel de Carvalho, português de nascimento, foi o dono das sesmarias que somavam um vasto latifúndio na fronteira oeste do Continente de São Pedro. Teve muitos filhos e demais descendentes e seu patrimônio acabou se dispersando e se unindo a outras famílias. Mas quando ele ainda estava com poder de mando sobre suas terras intermináveis, precisou entrar em acordo com os farrapos, enviando seu filho mais velho, primogênito, para negociar com o ministro da Fazenda da República do Piratini, o mineiro Domingos José de Almeida, oferecendo para o movimento gado, armas, terras, peões que viraram soldados e dinheiro. Cedeu para a República uma boa porção de terra que abrigou a fundação da Vila de Santana, mais tarde cidade de Uruguaiana, onde nasci e me criei, filho de dona Rosa Molinari Carvalho Duclós.

Entendi então porque a elite rural do município tinha tanta consideração para com minha mãe. Ela já era benquista pelo trabalho que fazia como visitadora pública no Centro de Saúde – onde conheceu meu pai, um fiscal de saúde que abandonou o cargo para ser empreendedor da fronteira. Mas havia um carinho, um apreço, muito além da amizade. É que dona Rosa era então despossuída de uma porção que lhe caberia das terras dos ancestrais – perdeu o pai muito cedo, de tuberculose – mas ainda fazia parte daquele grupo da aristocracia agrária, mesmo sem ter nada que a identificasse como tal, a não ser o porte firme e a voz decidida e mansa, que conquistava amizades por todo lugar.

Foi assim também que descobri porque alguns colegas que conheciam a história me chamavam injustamente de recalcado por ser trabalhista, pois a família estava já sem as terras. Se eu soubesse na época que sou estancieiro de raiz graças ao velho Manuel de Carvalho, minha reação seria outra. Não chegaria ao ponto de oferece uma fazenda imaginária, a Fazenda Azul, como fez o emérito doutor Chagas e Silva, para ajudar as despesas da Legalidade de Brizola – sendo que o governador em armas agradeceu publicamente pela rádio, o que provocou uma onda geral de gargalhadas na cidade. Mas pelo menos poderia dizer que eu tinha berço, mais legítimo do que muitos – todos lacerdistas – que vieram depois.

Claro que importa apenas essa história que eu desconhecia e que veio à tona tardiamente graças à socióloga com quem eu casei. Talvez essa revelação possa contribuir para a história de Uruguaiana. Lugar de onde jamais me mudei, apesar de ser migrante em vários estados do Brasil. Estou lá, na beira do rio, junto aos ancestrais que fizeram de um lugar deserto uma pátria.

Nei Carvalho Duclós (Uruguaiana, 29 de outubro de 1948) é um jornalista, poeta e escritor brasileiro. Tem 17 livros (entre ebooks e impressos) lançados de crônicas, contos, poesias, romance e ensaios. Além de inúmeros textos publicados na imprensa brasileira, sites e blogs e redes sociais. Citações em vários trabalhos acadêmicos, de graduação, mestrado e doutorado. Poemas e contos traduzidos para o italiano pela revista virtual Sagarana, editada em Lucca, e poemas traduzidos para o inglês para a revista Rattapallax, editada em Nova York.

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