4 POEMAS INÉDITOS DE GABRIELA SILVA
Celebração primordial
Na hora mais escura da noite
Quando não há mais medo
Nem esperança pela luz
Tomei teu corpo
Como se cada partícula da tua pele
Me pertencesse
e teu ritmo cardíaco
ocupasse o som de todas as coisas
e ficamos assim, a aproveitar a festa
do espírito e da carne
materiais dispersos e complementares
que nos constróem
mantenho-me acordada
para contemplar teu corpo
onde cada desenho
é o pedaço de algum tempo distante
se eu dormir e sonhar
tuas longas pestanas
vão captar meus sonhos
cotejar meus desejos
entre oliveiras e flores
ficarei presa nas fitas
nas cores da tua voz
no brilho que ressoa enquanto descansas
por que é infinito o celebrar primordial
do que plantaste na terra do meu corpo
uma colheita constante e farta
que rompe jovem e casta a cada minuto

Quântico dos quânticos
Quem disse que te amo?
O que aprecio com demasiada atenção
(e deleite)
É o movimento do teu corpo
Gosto da ínfima tremura
Dos teus músculos
Quando te desprendes por qualquer gesto
Cotidiano e voluntário
Teu andar messiânico sobre as águas
E o estalar dos teus tendões
Quando, num meneio de inquietude
Te esticas para pegar algo, me comovem
Teus braços tão cheios de ti
Pernas longas, suspeitosamente exódicas
Fazem pensar
A respeito do que és ou onde desejas chegar
Talvez apenas te movimentes
Para não deixar o ar estagnado
Ou a tua cinesia seja algo normal
Afinal, somos animais em deslocamento
Por observar a tua dinâmica silenciosa
E absolutamente comum às leis da física
(ciência repleta de entremesses e aproximações filosóficas)
Chego a algumas conclusões
Percebo, de forma nítida,
Que não vês o diabo no meio do caminho
A oferecer o conhecimento de tudo
Ou a barganhar tua alma
Não vês a mim
Não vês nada
Além do teu limitado campo óptico
E a tua percepção nada sensorial
Afinal, és qualquer coisa de
imóvel frente ao universo
Inerte ao desejo de amar e
insatisfatório como fluxo sentimental
Desvio meus olhos para o mundo
Já não te posso ver mais
Ao contrário do teu movimento
Contínua é a dinâmica do tempo

Similaridades
Que eu sou a que no mundo anda perdida
Isso já sabes com demasiado conhecimento
Ou que sou amiga da morte e da solidão
Também são coisas que toda a gente percebe
E na volúpia da imensa noite
Amei-te sem medir o tempo, o espaço, o medo
E do abandono irmã atenciosa
Fiquei a prestar contas a poesia
A cada verso escrito, não rimo, não conto sílabas
Apenas procuro a palavra coberta de ouro que reluz
A beira do abismo que são os teus braços
Meu coração, catedral de carne, eco e desejo
Abre-se ao mínimo suspiro
Chave mestra de abrir e fechar vontades
Já não te espera mais com a casa em flor
Os livros abertos e a cama feita
És sombra de olaias tristes
Vagar de nuvem que sobre a planície,
Que cobre a montanha, o lodo, o charco
E fere a rosa, o tempo, a memória.

Trópico
A sombra de folha verde
é verde também
sobre a tua pele,
tornando fria a superfície quente.
É como se todos os corpos
absorvessem o sol,
tentando alcançar sua luz
sem ferimento ou queimadura.
E os buliçosos insetos
buscassem no suor das frutas
toda doçura possível,
úmida e pegajosa.
Cada gota de líquido,
sangue de animal, lágrima de flor,
semente de um sonho qualquer
torna-se taça de ouro, pulsão e fome.
Já não sei as horas.
Perdi o céu entre as folhagens.
Besouros e grilos sossegaram,
só escuto o roçar das abelhas nas férteis plantas.
Algum animal espreita nosso sono.
Talvez sejamos seu medo ou diversão,
mistério de cheiros e sal cristalizado
na saliva que deixou rastros e caminhos.
Se eu despertar do torpor
irei perder toda a eternidade
escondida na floresta,
nas patas de formigas, nas asas dos lepidópteros.
Serei apenas alguém
que viveu no calor de dias tórridos,
e desejou o chão fresco e a água
para se deitar e saciar a vida.
Gabriela Silva nasceu em São Paulo em 1978. É doutora em Teoria da Literatura, pesquisadora e professora de Literatura Portuguesa do século XX e XXI. É autora de Ainda é céu, livro de poemas, publicado pela Patuá, em 2015.