Celebração primordial
Na hora mais escura da noite
Quando não há mais medo
Nem esperança pela luz
Tomei teu corpo
Como se cada partícula da tua pele
Me pertencesse
e teu ritmo cardíaco
ocupasse o som de todas as coisas
e ficamos assim, a aproveitar a festa
do espírito e da carne
materiais dispersos e complementares
que nos constróem
mantenho-me acordada
para contemplar teu corpo
onde cada desenho
é o pedaço de algum tempo distante
se eu dormir e sonhar
tuas longas pestanas
vão captar meus sonhos
cotejar meus desejos
entre oliveiras e flores
ficarei presa nas fitas
nas cores da tua voz
no brilho que ressoa enquanto descansas
por que é infinito o celebrar primordial
do que plantaste na terra do meu corpo
uma colheita constante e farta
que rompe jovem e casta a cada minuto

Quântico dos quânticos
Quem disse que te amo?
O que aprecio com demasiada atenção
(e deleite)
É o movimento do teu corpo
Gosto da ínfima tremura
Dos teus músculos
Quando te desprendes por qualquer gesto
Cotidiano e voluntário
Teu andar messiânico sobre as águas
E o estalar dos teus tendões
Quando, num meneio de inquietude
Te esticas para pegar algo, me comovem
Teus braços tão cheios de ti
Pernas longas, suspeitosamente exódicas
Fazem pensar
A respeito do que és ou onde desejas chegar
Talvez apenas te movimentes
Para não deixar o ar estagnado
Ou a tua cinesia seja algo normal
Afinal, somos animais em deslocamento
Por observar a tua dinâmica silenciosa
E absolutamente comum às leis da física
(ciência repleta de entremesses e aproximações filosóficas)
Chego a algumas conclusões
Percebo, de forma nítida,
Que não vês o diabo no meio do caminho
A oferecer o conhecimento de tudo
Ou a barganhar tua alma
Não vês a mim
Não vês nada
Além do teu limitado campo óptico
E a tua percepção nada sensorial
Afinal, és qualquer coisa de
imóvel frente ao universo
Inerte ao desejo de amar e
insatisfatório como fluxo sentimental
Desvio meus olhos para o mundo
Já não te posso ver mais
Ao contrário do teu movimento
Contínua é a dinâmica do tempo

Similaridades
Que eu sou a que no mundo anda perdida
Isso já sabes com demasiado conhecimento
Ou que sou amiga da morte e da solidão
Também são coisas que toda a gente percebe
E na volúpia da imensa noite
Amei-te sem medir o tempo, o espaço, o medo
E do abandono irmã atenciosa
Fiquei a prestar contas a poesia
A cada verso escrito, não rimo, não conto sílabas
Apenas procuro a palavra coberta de ouro que reluz
A beira do abismo que são os teus braços
Meu coração, catedral de carne, eco e desejo
Abre-se ao mínimo suspiro
Chave mestra de abrir e fechar vontades
Já não te espera mais com a casa em flor
Os livros abertos e a cama feita
És sombra de olaias tristes
Vagar de nuvem que sobre a planície,
Que cobre a montanha, o lodo, o charco
E fere a rosa, o tempo, a memória.

Trópico
A sombra de folha verde
é verde também
sobre a tua pele,
tornando fria a superfície quente.
É como se todos os corpos
absorvessem o sol,
tentando alcançar sua luz
sem ferimento ou queimadura.
E os buliçosos insetos
buscassem no suor das frutas
toda doçura possível,
úmida e pegajosa.
Cada gota de líquido,
sangue de animal, lágrima de flor,
semente de um sonho qualquer
torna-se taça de ouro, pulsão e fome.
Já não sei as horas.
Perdi o céu entre as folhagens.
Besouros e grilos sossegaram,
só escuto o roçar das abelhas nas férteis plantas.
Algum animal espreita nosso sono.
Talvez sejamos seu medo ou diversão,
mistério de cheiros e sal cristalizado
na saliva que deixou rastros e caminhos.
Se eu despertar do torpor
irei perder toda a eternidade
escondida na floresta,
nas patas de formigas, nas asas dos lepidópteros.
Serei apenas alguém
que viveu no calor de dias tórridos,
e desejou o chão fresco e a água
para se deitar e saciar a vida.
Gabriela Silva nasceu em São Paulo em 1978. É doutora em Teoria da Literatura, pesquisadora e professora de Literatura Portuguesa do século XX e XXI. É autora de Ainda é céu, livro de poemas, publicado pela Patuá, em 2015.