CANÇÃO DE AMOR PARA JOÃO GILBERTO NOLL – LUÍS ALBERTO BRANDÃO

Será que é preciso começar com um nome?
Será que é preciso haver um nome?
Será que esse nome é João?

“Ouvi uma música por aí.”
– lê-se em A céu aberto.

Começo com a impossibilidade de um começo. Começo tentando preservar a força do silêncio, a ele me manter agarrado, como a um pedaço de madeira no mar alto e revolto e instável e perigoso das palavras. Começo tentando não começar. Porque o que há antes do começo, de qualquer começo, é a plenitude do indecidível, plenitude que se rompe quando se começa − ainda que sofregamente, hesitantemente, como está acontecendo aqui e agora com este começo que se debate consigo mesmo, mas que acaba se afirmando, quase a contragosto, por meio de sua própria negação.

Quase a contragosto: a ênfase recai no quase, porque há também um gostar, um gostar intenso que dispara o impulso para que se abra mão do ideal de silêncio. Assim, o oco insensato das palavras vai se deixando preencher pela densidade amorosa, por uma espécie de fluido ao mesmo tempo viscoso e rarefeito, que se desenha e se dissemina em forma de canto. Cantar é uma forma de contornar, subverter, adiar, suspender, expandir o dizer. Ou cantar talvez seja inventar outras formas de dizer, que escapem à prevalência do dito atenuem a rigidez dos ditados, realimentem a palavra com a pujança ou a insanidade do silêncio. E cantar não tem começo. É um arrebatamento: os sons atravessam aquele que canta, contaminam-se dele e se espalham pelo ar; e aquele que canta é sempre muitos, pois o cantar é também o atravessamento de quem ouve, de quem se deixa levar – ou tocar − pela canção.

Isto aqui, que vocês estão ouvindo agora, na espessura deste presente, é uma canção. Uma canção de amor, como são de certo modo todas as canções, porque todas as canções têm como pauta algum tipo de desmesura. Mas esta aqui é mais do que uma canção de amor: é uma canção apaixonada, porque seu desejo é se confundir com a desmesura. É arriscar-se por inteiro. É ser o próprio arrebatamento.

[Quase começo – p.13-14]

Hoje é dia 20 de maio de 1999. É comecinho de noite, um pouco antes das sete. Estou caminhando em direção ao cruzamento da avenida Afonso Pena com as ruas Espírito Santo e Tamoios, no hipercentro de Belo Horizonte. Quando me aproximo do cruzamento, diviso na multidão um homem alto, de costas, parado, aguardando o semáforo, e, com uma espécie de frêmito, identifico: só pode ser, é sim, claro que é o homem a quem estou indo ouvir. Paro ao lado dele e, no embalo do espanto e de uma estranha euforia, com a voz quase se perdendo na barulheira da cidade, afirmo perguntando:

− Você é o João Gilberto Noll, não é?

Olhando-me fixamente, deixando vazar uma pontada de admiração pelo insólito da cena que literalmente solidifica-se aqui, bem no meio da cidade, no meio da rua, ele responde, com um misto de afirmação reticente e leve sombra de dúvida:

− Sou.

Caminhamos com passo rápido, e eu vou falando e falando meio atabalhoadamente: de minha paixão por sua obra; de como sempre incluo seus textos nas disciplinas que leciono; de que eu o havia visto em Belo Horizonte há algum tempo, no Teatro Francisco Nunes, na apresentação de uma coreografia inspirada no conto “O cego e a dançarina”; e que eu estivera bem perto dele, meio que rondando, indeciso, mas que faltara coragem para chegar e puxar conversa. Tudo isso, e mais, vou falando no espaço de tempo de um quarteirão até o prédio do Instituto Moreira Salles, na Praça Sete, ele misturando algum interesse em me ouvir, a preocupação com o horário, o ruído entorpecedor e ao mesmo tempo estimulante do horário de pico.

O nome do evento é “O escritor por ele mesmo” e consiste em leituras em voz alta feitas pelo próprio escritor, seguidas de conversas com o público. Começa então a experiência – marcante, singularíssima – de ouvi-lo ler a si mesmo, ao vivo e bem de perto. Ele reinventa trechos dos romances A céu aberto e Harmada com uma voz lenta, lenta quase no limite da exasperação, com uma voz monocórdica, como que pronunciada pela exaustão, como se fosse a voz do mais completo abandono. O silêncio da plateia tem algo de incômodo, ou mesmo de estarrecido.

No momento do debate, não resisto e faço perguntas insolentes. Pergunto, por exemplo: “Não há algo de demencial – ou de sacrificial, talvez – no tom que você adota em suas leituras, João”?

Ele ouve, sempre concentrado, e acolhe a pergunta, todas as perguntas, com um interesse vivaz, desdobra-as com gentileza, vai transformando os grãos provocativos em uma espécie de generosa e meio etérea comunhão de sonoridades e ideias.

Saio do encontro em estado de perturbação. Atravesso a Praça Sete, continuo atravessando o coração da cidade, coração flechado por um obelisco tímido, tão pouco monumental. Levo nas mãos o bloquinho com os rabiscos que fiz enquanto ouvia, levo o folheto do evento, onde anotei o telefone e o endereço do João em Porto Alegre, e que traz o texto “Por que escrevo”, em que ele diz: “Por isso, quando escrevo, a palavra tem aos meus ouvidos uma vibração mais musical que semântica. Uma coisa prestes a materializar uma ideia, mas que por enquanto ainda relampeja tão-só a sua verve física, como se fosse pura melodia, para num segundo momento então se inserir numa ordem narrativa – podendo, aí sim, irromper o encontro cabal dessa espécie de veia túrgida e insone da escrita com a suculenta vigília do leitor. Acreditem: por existir essa liturgia em tudo misturada à lascívia é que eu escrevo.”

Levo também, é claro, a voz do João. Nas mãos, sim, literalmente, dentro de um caixinha, registrada na fita cassete que distribuíram aos presentes no evento. Mas também em mim, hipnótica, litúrgica, extraindo máxima força da debilidade mais genuína, dando corpo e ritmo a uma obra tão desconcertantemente brilhante. Na travessia do centro da cidade, levo o João cantando, cantando dentro de mim.

[Voz – p. 17-19]

Luís Alberto Brandão é Brandão é escritor, pesquisador e professor titular da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Publicou os livros de ficção Manhã do Brasil (Scipione, 2010; finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Portugal Telecom de Literatura), Chuva de letras (Scipione, 2008; vencedor do Prêmio Nacional de Literatura João-de-Barro; finalista do Prêmio Jabuti; integrante do Programa Nacional Biblioteca da Escola), Tablados: livro de livros (7Letras, 2004) e Saber de pedra: o livro das estátuas (Autêntica, 1999; vencedor da Bolsa Vitae de Artes). Publicou os ensaios Teorias do espaço literário (Perspectiva, 2013; finalista do Prêmio Jabuti), Grafias da identidade: literatura contemporânea e imaginário nacional (Lamparina, 2005; finalista do Prêmio Jabuti), Rituais do discurso crítico (Memorial da América Latina, 2005) e Um olho de vidro: a narrativa de Sérgio Sant’Anna (Fale/UFMG, 2000; vencedor do Prêmio Nacional de Literatura Cidade de Belo Horizonte). É coautor de Sujeito, tempo e espaço ficcionais (Martins Fontes, 2001) e coorganizador da edição comemorativa dos 50 anos da RL – Revista Literária da UFMG (Fale/UFMG, 2016).

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