DE ‘MIDIASERÁVEL’, DE DELALVES COSTA

Made in Brazil

O catador pão-dormido então acordou
envolto ao frio e vento
sob notícias do jornal.
O café matinal é farto:
folhados, quinhentos-queijos café
expresso londrino pães
leite suíço (vacas azuis)
e sucos do laranjal tipo export.
Made in Brazil, a fome à farta
mesa tupiniquim: suor
de sol a sol bordado com petróleo
e estampa canavieira.
Enquanto isso, brasil
(de ruas viadutos calçadas)
vaga à revelia empurrando
recicru i fasso linpesa,
a língua-urgência de quem quer comer.

A casa na árvore

Depois de a gente crescer, a casa da árvore
não tem mais lugar. De poema
já não adormece, ficou lá atrás
aquela criança que de galho em galho
(ao saltar do corpo) o mundo inventa
a fim de trapacear o tempo
– esta tal roda ininterrupta
que morde a carne e amarela o papel.
Depois que a gente cresce, vão-se
as estações com o assopro do vento.
Embora a árvore ostente novas folhas
e envergue mais frondosa
(de sementes, rodeada),
intacto permanece o lugar. No pulso
é igual o relógio, no peito o mesmo gesto.
Vazia de poesia, agora pequena casa
a salvaguardar o invento.

O Invento

O ritmo na soleira do poema
me inventa…
A formiga bebe a goteira
na ranhura,
arrasta o rio
pelo silêncio,
acorda a página e me define.

Desfronteiramento

I

homemporâneo, o
apátrida, indolente a ferro
e fogo, o corpo fis-
gado forjado, ner-
vo-ossos filetados
parvos pisoteiam-
se ferem carne em transe
na lâmina, abocanham-se
em fuga sangram
ódios hematomas
enquanto negam-
se: à margem ser-
ve-se ao passo que se atre-
ve a estar não letal

II

vês, nos é veneno
o midiaserável (o enclave)
do norte é capital
visceral qual lâmi-
na periferia, a voz
(subjugada) à flor da terra
a decolonizar-se

III

subalterno, jaz
dor ancestral, ethos forte
a margear verbo farpado
sádica geografia a cicatriz
o conflito. Aliás, invisível
é a fronteira que o habita.
Apesar percebe-
se fecundo (sol)
a penetrar densas fendas
a pele aflora qual outono
em súbito inverno; parto
que se aquieta não nasce
é docilizada flor
a sangrar ilusão pela raiz

IV

eis o mito de origem, fala
sem erupção cáli-
ce (epistemicídio)
à garganta um cemitério
contudo entre ossos ner-
vos escrevivência
vós, certidão desvozeada
rumo à sobrevida

V

pra fertilizar azul,
insurgência. Atearam fogo
na chuva, nos que
bebem nau e sede
labareda na carne
(arde) lar-cicatriz
onde falar é morrer, luta-
se pela vértebra hasteada
(apesar) território
e tessitura nos pés
lar além-fronteira
que vento espalha
apesar do muro da farpa
o f/ato é atropelo

VI

fala outra, asfixia
pra alimentar o silêncio
eis o midiaserável
à língua enforca-
se enquanto mata
(e morre) pra ser nobre
export type meat

VII

e assim, narra-
se outra narrativa, e nela
a semântica pariu a praia
e o reflexo ali se quebrou
após a missa. No espelho
(in natura) o nu não reza
nem se govern-
a penas caravel-
as de lá nuances frias, cá
o antropofágico afago cá
abrindo mão da semente
(adonaram-se da árvore)
fixaram a cruz
virou outro, o remetente

VIII

desfronteiramento: basta
basta a invenções
à fala que sepulta-
va rios silêncios é oceano
abissais ilíadas, a ruptura
o insurgir que ata
eis o extemporâneo, osso
nervo e existência.

Delalves Costa (13 de dezembro, 1981 – Osório, RS), escritor e poeta com vários livros editados, e publicações em coletâneas e em plataformas literárias impressas e digitais no Brasil, Portugal e Moçambique (Mbenga, Athena, Pé de Moleque Livros, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Literatura & fechadura, InComunidade, Bibliofiliacotidiana). É sócio-fundador e membro honorário da Academia dos Escritores do Litoral Norte (AELN/RS) e sócio da Associação Gaúcha de Escritores (AGES). Publicações recentes: extemporâneo (Coralina, 2019), Midiaserável (Patuá, 2020) e Óculos de princesa (Papo Abissal, 2020, infantil); capítulos em livros acadêmicos e artigos científicos em revistas, livros, e esporadicamente, ensaios na destacada revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa/Literatura. Em 2019, foi um dos 60 autores selecionados para o Projeto Autor Presente, do Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul. Mestre em Educação (Uergs). Graduação em Letras Português e Literatura Portuguesa (Unicnec). É professor de Língua Portuguesa, Literatura, Metodologia de pesquisa e Linguagens Aplicadas na rede pública estadual de ensino do RS. Pesquisador e palestrante nos seguintes Campos de estudo: literatura contemporânea; literatura locus-regional; direito à literatura e à leitura; diálogos entre literatura, história e culturas locus-regionais; educação, diretos humanos e fundamentais e decolonialidade; currículo intercultural e protagonismos educativos.

POESIA

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