DE ‘NOITE ALTA’, DE MAGDA LOGUERCIO CARVALHO
Pisciana
Gosto de ver os meus pés inchados
de um jeito que só eu sei saber.
Maduros como frutas frescas
macerados por meus passos
as veias um pouco tensas
os ossos querendo gritar cansaço
e a pele túrgida de meu esforço.
Belos em sua plena capacidade
em me conduzir
quase ganham vida própria.
Repousados depois da luta.
vejo e intuo minha vitalidade,
meus pés medem o nível de minha saúde.
Se estão murchos e opacos,
estou inerte, abandonada à sorte.
Se tenho vontade de comê-los,
estou viva;
pisciana de barbatanas duras
como a dor da caminhada.

Espectro
espectro de luz visível
homem, mulher, criança
bicho e pedra
planta liquida da aurora
um céu de cor gris
domingo dos santos de outrora
quantos dias se passaram desde ontem?
espectro das horas
lá fora o dia que chega
aqui somente a espera
e a eterna demora
lacunas sinápticas
o sentir de sempre
e a beleza do agora.

Memória
Imagens da memória
um mar revolto de águas claras
batendo na praia,
pés molhados pelas ondas na areia
trazem um querer de outrora
à vaga lembrança de agora.
Imagens da memória
árvores frondosas na aleia
passeio coberto de folhas
os estalidos secos sob os pés
trazem o sabor do ontem
à passagem coberta de hera.
Imagens da memória
o piso frio de mármore
entre corredores escuros
figuras nas paredes
e o estampido do salto do sapato
trazem cores aos olhos fechados
adormecidos na beleza do quadro.
Imagens da memória
o braço nu do moço roçando a pele
a impressão do corpo naquele abraço
eo gosto de boca na boca, beijo cálido
trazem a saudade de um encontro
perdido no tempo e malgrado
a memória se perde
mesmo em imagens vívidas
guardadas no passado.

Noite alta
Noite alta, madrugada,
a cidade viva
respira ofegante
no orvalho caído
nas pedras da rua.
Noite alta, ensimesmada
de mistérios loucos
de cores pálidas,
noite alta, enluarada.
Voam as horas, noite nua
a luz do sol cresce
noite alta, morta agora
na madrugada fria.

Ampulheta
há muitas gerações lembro do silêncio dos campos
de luzes de velas tremeluzindo aos ventos dos pampas
sou homem, sou mulher
fui criança, velha
morri mil mortes e renasci
venho mais uma vez sob o signo de minhas origens
trago nas veias o sangue ancestral de homens e mulheres
simples e honrados
trago em meu coração o grande amor ao homem e à natureza
carrego a desordem de mil vidas, de sofrimentos atávicos
olho-me e vejo na profundeza de meus olhos a dor de vidas passadas
tenho uma missão a cumprir
tenho nome e mente de mentes que não lembro
sob a luz azul de uma vela enxerguei-me velha, de outros tempos
jovem que já fui, meu corpo diz quem sou e não significa nada
carrego um passado todo o meu tempo
busco de todas as maneiras conhecer esta alma atormentada que me habita
busco a identidade perdida em ventanias e chuvas fustigando a terra
terra que cultivo e por onde andam, em perfeita harmonia, os bichos e onde dormem as pedras
vim em forma de água, banhar com minhas lágrimas de solidão e tristeza o chão por onde caminho
e nasce o mais puro pasto
não estou só neste momento
venho acompanhada de inúmeros mortos que carrego no sangue
meus traços são a mistura de homens e mulheres que amaram deus e a vida
anseio o encontro com a realidade material do corpo
traduzo meu espírito em carne, ossos e matéria
procuro dar forma às impressões do que vejo e sofro
busco meu complemento em corpo e alma
que pode ser o homem ou simplesmente a expressão de meus
sentimentos mais puros, o amor e a minha pura alegria de estar viva
abandono minhas armas, desarmo minhas mãos suadas de ansiedade e medo
torno-me então, apenas a filha
pai, mãe e família
deixo de ser vegetal, mineral e animal, tenho minha própria alma
o tempo congela-se neste momento sublime de iluminação pessoal e intransferível
a ampulheta indica que escoa, mas em meu coração cristaliza o sempre, o eterno.
Magda Loguercio Carvalho nasceu em 1961, em Lavras do Sul (RS). É engenharia metalúrgica e publicou Noite Alta em 2009, pela Ed. Movimento. Na internet, mantém o blogue Poesia Cotidiana e as páginas Poesia em Branco e Preto, Poemas inconstantes, Poemas derramados e Balada para sax e orquestra.
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