DE ‘PROSA PEQUENA’, DE AMILCAR BETTEGA

DE NOITE NA FLORESTA

Era um sonho e lá dentro fazia frio e noite. Eu caminhava, havia muito tempo que eu caminhava na noite do meu sonho. Cruzava uma floresta de eucaliptos, o que deixava a noite ainda mais escura e fria. Havia o cheiro do eucalipto e do húmus (ou uma sensação desconhecida e difícil de caracterizar, porque dentro do sonho, mas que me remetia a uma sensação olfativa), e estes dois cheiros, eucalipto e húmus, se misturavam e me davam como resumo a certeza de que eu atravessava uma floresta de noite, a noite quando ela está mais escura.

Não sei se você já caminhou à noite, sozinho, no meio de uma floresta. Pode ser no meio do campo também. Mas desde que não haja luz, nenhuma a não ser a da lua e a das estrelas, se elas estiverem por lá. Para quem vive na cidade, aí está uma experiência difícil de realizar. Se este é o caso, use a imaginação, este galho sempre disponível quando o real vacila.

Pois então imagine este nosso personagem que atravessa uma floresta de eucaliptos à noite: ele está cansado e tem fome, caminha assim meio às cegas, sentindo o frio úmido que se levanta da terra permanentemente privada da luz do sol. Ele ouve o som dos seus passos amassando as folhas mortas no chão. A terra úmida, mais a camada de folhas mortas, tudo isto lhe transmite a sensação de que caminha sobre um colchonete. E o som dos seus passos sobre as folhas. Chap-chap, chap-chap, chap-chap. É o único som que ouve. Após várias e várias horas, o único som que ele ouve. Por vezes, embalado por este ritmo constante, chap-chap, metido em pensamentos, ele esbarra em alguma árvore, sente na palma da mão a textura da casca que reveste o tronco, desvia e segue andando. Chap-chap, chap-chap, chap-chap.

Mas seus olhos estão habituados à escuridão, e suas pupilas bastante dilatadas captam e registram algumas formas no meio da noite, sobretudo as dos troncos das árvores, eretos, estáticos, que ele deixa para trás à medida que avança. Chap-chap, chap-chap, chap-chap. Há também os animais noturnos, e esses são os vultos difusos que às vezes ele percebe cruzar a alguns metros à frente; é quando se dá conta de que outros sons se misturam ao som dos seus passos: os galhos que se dobram à passagem destes vultos, as disparadas rápidas de algum réptil ou de um pequeno roedor sobre o colchão de folhas secas, o concerto interminável dos pássaros da noite que parecem se dizer uns aos outros que ele está ali, o nosso homem, sozinho, cruzando a floresta no meio da noite mais escura.

Não é medo o que ele sente. Ao contrário, deste ambiente onde tudo é aproximativo e difuso, vem-lhe um tremendo sentimento de paz, de tranquilo isolamento, e no seu pensamento brotam ideias que jamais tinham sequer se aproximado de seu espírito, algumas conexões que só agora, ali, no meio da floresta escura, lhe parecem de uma evidência cristalina.

Há a fome, claro, e o cansaço, a sensação de que o corpo já vem meio amortecido, seus braços formigam e nas suas pernas se acumulam restos do caminho percorrido como se fossem quilos de metros, toneladas de quilômetros de distância vencida.

Então, quando tudo parece uma eterna travessia no escuro, quando o som ritmado dos passos sobre as folhas no chão mistura-se ao canto dos pássaros noturnos e encontra o tom monocórdico da repetição, e quando este movimento repetitivo tende à cristalização, então lá, ao longe, ele percebe a frágil luz que aparece.

E que depois desaparece e torna a aparecer, repetidas vezes, atrás dos troncos das árvores à medida que ele avança.

Ele acelera o passo, esbarra nas árvores, tropeça, mas avança, e vê crescer a luz à medida que se aproxima disto que em breve vai distinguir-se em meio à escuridão: uma cabana, uma pequena cabana com sua janelinha iluminada.

Mais alguns passos e ele já está diante da porta. Bate à porta, ninguém responde. Empurra a porta, ela se abre fácil e lentamente. Há uma lareira e há fogo na lareira. Uma mesa rústica de madeira: há um prato sobre a mesa, um farto pedaço de pão e uma garrafa de vinho.

Tudo ali é acolhimento, tudo é abraço ao caminhante cansado e faminto que atravessava as sombras de um sonho.

E há quanto tempo ele carregou este sonho consigo, em algum recôndito impenetrável do seu cérebro e atado à memória por um fio pronto a romper-se para sempre? E quantos outros sonhos ainda existirão ali, em outro recôndito contíguo àquele, e que morrerão com ele sem que jamais lhe ocorra outra vez este fio quase miraculosamente tensionado?, sem que jamais lhe ocorra essa porta  e isso de abrir a porta de casa já tarde da noite após uma jornada de trabalho e perceber que tudo lá dentro é silêncio e acolhimento, tudo dorme um sono recente e que sobre a mesa da cozinha o esperam um prato e uma garrafa de vinho?

E sob o som de uma voz familiar que vem do quarto, o vinho parece vibrar no interior da garrafa.


OLHOS DE METAL

Um vento gelado assoviava nas ruas desertas. Que cidade era aquela? Ele apertou a gola do casaco o máximo que pôde e continuou a andar. Mas não conseguia dar cinco passos sem que seus olhos baixassem outra vez para se fixarem à calçada. Porém, sabia que para entrar numa cidade é preciso olhar. Olhar é se abrir. Então forçava os olhos nas fachadas das casas, buscando a cidade. Mas sem se dar conta, cinco passos adiante, tinha-os de novo baixos, rentes às pedras como se elas fossem ímãs e seus olhos puro metal.

Gostou dessa ideia: olhos feitos de metal, duas esferas pesadas, frias como as de um rolamento em aço e cromo. Achou que aquilo casava bem com o que sentia. E continuou a caminhar. Caminhava de noite, com seus olhos de metal, à procura de um nome para aquela cidade. Não exatamente um nome. Não qual, mas que cidade era aquela? E a cada vez que repetia a pergunta, automaticamente levantava os olhos e os forçava na escuridão das ruas estreitas e com jeito de abandonadas.

De tempos em tempos cruzava um poste de luz amarelada, deixava-se ficar sob o facho de luz, como para se aquecer um pouco. Como se a luz o aquecesse. Ou pudesse aquecê-lo. Ele sabia que tudo aquilo era impressão. Ideias que ele se inventava para ajudá-lo a continuar. Como se, parece que, impressão de. Era assim que ele se acalmava, sob o facho de luz amarelada, como que se aquecendo.

Então prosseguia. As ruas eram todas escuras e varadas pelo vento gelado. De certa maneira, estava sempre na mesma rua e passando diante das mesmas fachadas, não importava quantas vezes dobrasse esquinas ou qual direção tomasse.

Que cidade, afinal, era aquela? E levantou os olhos.

E seus olhos, ainda que terrivelmente pesados, conseguiram alcançar a sacada de um segundo ou terceiro andar do prédio em frente, de onde vinha uma luz fraca, possivelmente de um abajur não muito longe da porta, que estava entreaberta. Diferente da luz dos postes sob a qual parava para (como) se aquecer um pouco, aquela luz da janela, apesar de fraca, era mais viva, e tornava viva também a fachada daquele prédio que, de repente, ficou tão diferente dos outros.

Ele se pôs sob a sacada, não só os olhos voltados para cima, que aliás pesavam mais do que nunca, mas também a cabeça, o que lhe exigia um grande esforço dos músculos do pescoço. E gritou: “Ei, você aí dentro! Você pode me dizer que cidade é essa?”. Ninguém respondeu. Ele insistiu. Ninguém apareceu. Foi então que fechou os olhos, sentindo no lado interno das pálpebras o frio do aço exposto ao vento gelado. Estava cansado demais de tanto andar pelas ruas. Buscou abrigo na penumbra sob o umbral de uma porta em frente ao prédio e sentou-se abraçando as pernas dobradas, a testa apoiada entre os joelhos.

Talvez tenha dormido.

O certo é que era nessa posição que ele seria visto pela jovem que pouco depois de ter ouvido alguém lá fora (ou teria sido impressão?) saiu à sacada, enrolada em um roupão e erguendo a gola em torno do pescoço para proteger-se do frio.

Era nessa posição que ele poderia ter sido visto.

Mas ela olhou para baixo, para os lados, forçou as vistas no escuro, não viu ninguém e tornou a entrar.

Cinco ou seis minutos mais tarde, a luz se apagou.


CONDUZINDO

Olhou para o filho que dormia no banco ao lado e pisou o acelerador. O carro foi ganhando velocidade gradualmente na estrada quase deserta. Viajavam há mais de quatro horas, e agora podia dizer que começava a sentir o cansaço. Era inverno, a noite tinha caído de súbito, a calefação produzia um pequeno, mas constante zumbido e tornava o interior do automóvel morno e aconchegante.

Pressionou um pouco mais o pé sobre o acelerador e o ponteiro do velocímetro deu um salto, como uma agulha imantada colocada bruscamente diante de um metal. À frente, apenas a escuridão já absoluta da noite, rasgada pela luz dos faróis. A cada curva, a cada declive da estrada, o facho cônico tirava do escuro um pequeno trecho da paisagem com uma lambida amarela do iodo. Árvores, cercas, algumas casas perdidas, tudo ia ficando para trás quase ao mesmo tempo que eram reveladas pelas sobras de luz que se desgarravam nas laterais da estrada. Ele tentou imaginar e compor um quadro mais amplo do tipo de paisagem que os cercava, mas desistiu ao perceber que era impossível, que estavam numa bolha de escuro e que iam em direção ao centro, perfurando camadas e camadas de escuro em direção ao centro.

Acelerou mais, o motor respondeu ainda com mais força. No interior do automóvel, apenas o zumbido e a mornidão aconchegante, um plácido ambiente que lhe trouxe a imagem perfeita do repouso, embora soubesse que alguém parado à beira da estrada (se existisse alguém parado à beira da estrada) pouco veria além de um bólido rasgando a noite a cento e quarenta quilômetros por hora.

Sentia-se protegido pela escuridão, mas ao mesmo tempo, e cada vez mais, como que engolido por ela. Pisou mais forte o acelerador, o ponteiro foi a cento e sessenta e a noite pareceu transformar-se definitivamente numa garganta que os engolia com avidez. Já não distinguia se eram árvores, cercas ou algumas casas perdidas o que passava ao lado, nas babas da luz. Tinha os olhos vidrados na grande língua de asfalto por onde os pneus deslizavam. Sabia que atingira a velocidade em que a partir dali já não tinha mais nenhum controle sobre o automóvel, e talvez por isso mesmo pressionou ainda com mais força o pé sobre o acelerador. Qualquer pedregulho no meio da estrada, algum animal insone que resolvesse atravessá-la, atraído ou assustado pelo ruído ou pelos faróis, algum pássaro noturno, um pneu que estourasse, qualquer coisa, àquela velocidade, seria tudo.

Mas o interior do carro estava morno e aconchegante, e à sua frente apenas a garganta da noite, e talvez árvores, talvez cercas, talvez algumas casas perdidas passassem ao lado sem que ele pudesse identificá-las, porque agora pisava o acelerador até o fundo e continuava forçando o pé contra a parede de metal do assoalho do carro, ainda que o ponteiro do velocímetro batesse no máximo, ainda que sentisse que o automóvel voava sobre o asfalto, ainda que soubesse que qualquer coisa, ali.

Enfim um ponto amarelo surgiu ao longe, na outra ponta do escuro. E com um toque mínimo, um quase nada sobre o volante, ele trouxe o carro para a pista da esquerda, sem tirar o pé do acelerador.

Era uma longa reta, plana, o ponteiro do velocímetro não mexia, grudado no máximo, e crescia o ponto amarelo à sua frente. Crescia rapidamente a luz dos faróis à sua frente. E cresceu tão rápido contra seus olhos que foi quase às cegas que ele levou o automóvel outra vez para a pista da direita, e ouviu, não mais do que por frações de segundo, o som de uma buzina crescer e, quase ao mesmo tempo, se perder outra vez atrás de si, no fundo da noite. A estrada continuava reta e plana e escura. O interior do carro era morno e havia o zumbido constante da calefação. Piscou os olhos de maneira lenta, chegou mesmo a fechá-los por um pequeno, infinitesimal instante, porque seu corpo sentia o cansaço, e o ar quente que soprava através das ventoinhas no painel fazia um zumbido constante e deixava o interior do automóvel morno, morno como uma cama sob as cobertas. Então ele fechou os olhos por um instante e só se deu conta de que o fizera quando, no instante seguinte, estacionava na garagem de sua casa e sua mulher lhe dava um beijo e dizia que os esperava bem mais tarde.

A luz da garagem pareceu-lhe forte demais e agredia seus olhos. Também os ouvidos ele sentia como que agredidos pela voz da mulher que abraçava o filho ainda sonolento e perguntava ao marido se ele estava com fome.

Amilcar Bettega nasceu em São Gabriel (RS), em 1964. É autor de O voo da trapezista (Prêmio Açorianos 1995), Deixe o quarto como está (Prêmio Açorianos e Menção especial do Prémio Casa de las Américas 2003), Os lados do círculo (Prêmio Portugal Telecom 2005) e Barreira (finalista do Prêmio São Paulo 2014). Foi escritor residente do International Writing Program da Universidade de lowa, nos Estados Unidos, em 2010. Seu trabalho está publicado em países como Portugal, Espanha, Itália, França, EUA, Luxemburgo, Suécia e Bulgária. Também atua como tradutor e professor de Escrita Criativa.

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FICÇÃO

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