ERA UMA CAIXA DE MADEIRA – EMIR ROSSONI

Era uma caixa de madeira que ele mesmo havia construído. Era madeira bruta, com dobradiças de câmera de pneu na parte posterior e uma tampa com lasca de couro a encaixar num pequeno prego torcido. Cabia em seu colo.

Era uma caixa envernizada. Obra-prima aos meus olhos. Talvez assim a percebesse por ser velha, ter a idade que parecia ter meu avô. Hoje, penso que era uma obra-prima porque tudo que eu queria para minha vida podia ser guardado nela.

Era uma caixa que deslumbrava ainda mais quando meu avô a abria. Havia algumas divisões lá dentro. Construídas com a mesma madeira. Envernizadas pelo mesmo verniz. Eram poucas as divisões. Mas eu percebia uma aventura em cada uma delas.

Era uma caixa que continha anzóis de quatro ou cinco tipos. Para mim, toda a variedade de anzóis existentes no mundo estava ali. Poderia haver qualquer espécie de catástrofe global, acidente automobilístico ou enrosco de anzol em pedra. Ali haveria um material que, usado pelas mãos hábeis de meu avô, resolveria o problema em instantes. Havia chumbadas. Havia linhas de náilon e até linhas de cobre. Eu não sabia que cobre era cobre. Mas percebia que era uma linha especial, feita de metal brilhante e certamente serviria para pescar peixes enormes.

Quando meu avô chegava a nossa casa, abria o porta-malas do Chevette e colocava a caixa de madeira envernizada ao alcance dos meus olhos eu sabia que teria horas inesquecíveis pela frente. Depois de aberta, ela revelava um universo onde os pés eram molhados de rio e onde o olfato sentia cheiro refrescante de mato. Era sabor de fruta esquisita colhida no pé. Com tudo aquilo, eu não me importava muito com os peixes.

Então meu avô parou de aparecer. Levaram-no para Porto Alegre. Ficou quase um mês. Até que o trouxeram de volta. Mas ele nunca mais chegou com sua caixa. Até o dia que o vi, ele mesmo, dentro de uma caixa enorme, de madeira, cor verniz. Estava imóvel. Mas quando me aproximei, pude sentir o cheiro refrescante do mato. Foi a última vez que o vi.

O Chevette permaneceu parado na garagem. Ninguém mais entrou nele. Encheu-se de poeira. Mas numa ocasião, quando ninguém estava olhando, abri o porta-malas. Era só apertar um botão. Difícil foi acompanhar, com meu braço curto, a porta subindo. Porém, valeu o esforço. Lá no canto do porta-malas, do mesmo jeito, estava a caixa de madeira do meu avô. Fechada, com as dobradiças de borracha de câmera de pneu e um monte de aventuras dentro. Olhei-a por um tempo, detalhe por detalhe, reparei inclusive nas imperfeições da madeira. E fechei o porta-malas sem tocar em nada, pois tudo que lá havia era do meu avô. Conservar a caixa do jeito que ele deixara significava que sua presença continuaria ali, do jeito que sempre fora. E, assim, voltei para brincar com meus primos, decidido a construir, quando crescesse, uma caixa igualzinha àquela para guardar minha vida lá dentro.

Emir Rossoni é agricultor e Mestre em Escrita Criativa. Autor de “Domanda Nísio”, livro vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura em 2018, e de “Caixa de Guardar Vontades”, livro vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura, vencedor do Prêmio Guarulhos de Literatura de Livro do Ano, além de finalista do Prêmio AGES e do Prêmio Minuano. Em 2019 foi Segundo Lugar na Categoria Escritor do Ano no Prêmio Guarulhos de Literatura. Também recebeu o Prêmio CEPE de Literatura pelo livro “Erros, Errantes e Afins”, a ser lançado em 2020. Ministra há 4 anos a oficina literária “As duas histórias do conto” e o curso “Escrevendo sem Inspiração”.

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CRÔNICA

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