GILDO DE FREITAS, O REI DOS TROVADORES – JUAREZ FONSECA
Numa entrevista para o jornal Tchê!, de Porto Alegre, publicada em julho de 1982, Gildo de Freitas disse que a trova é uma matemática de rimas: “Tem que fazer a conta ligeiro, e rimar”. Ele soube fazer isso como poucos e passou à história do Rio Grande do Sul como o maior trovador que já pisou este chão. Antes de Gildo só houve outro mito: Pedro Muniz Fagundes, o Pedro Canga, nascido na região da Campanha 130 anos antes e personagem de histórias da Revolução Farroupilha. Era um repentista conhecido, famoso no falar rimado – muitas de suas quadrinhas passaram para o folclore. É mencionado em vários livros de pesquisadores sobre os costumes gaúchos, como João Cezimbra Jacques e Simões Lopes Neto. Mas há um volume só sobre ele, O Embuçado do Erval – Mito e Poesia de Pedro Canga, publicado em 1968 pelo professor da UFRGS e historiador Guilhermino César.
Pedro fez sua fama nos campos de batalha, e tal fama assume contornos mais nítidos quando se sabe que ele lutava contra os rebeldes farrapos, animando as forças legalistas de João da Silva Tavares, não por acaso seu primo e amigo. Virou lenda. Contam que, certa vez, essas forças se encontraram com os farroupilhas de Antônio de Souza Neto, entre os quais estava outro primo de Pedro Canga, bom improvisador também. Passado um tempo, o ferrenho combate foi interrompido para que os dois primos adversários o decidissem na trova. Não importa se houve mesmo essa disputa ou quem venceu; importa é a lenda. Ela, e Pedro Canga, estão entre os primeiros registros da trova gaúcha, de peleia de improviso através da imaginação e da criatividade artística.
O canto de improviso existe desde os tempos bíblicos. O Rei Davi foi um improvisador, Salomão também. Assim como Homero, na Grécia. Em Portugal, na Idade Média, os desafios entre dois repentistas eram comuns e populares, atravessaram os tempos. Camões e Bocage foram grandes improvisadores. E daí até os portugueses que aportaram no Brasil, não pode haver mistério. Uma linha natural. Gregório de Matos Guerra (o “Boca do Inferno”) que o diga.
Registram-se em nosso País quatro cantos folclóricos de improviso, documentados de várias épocas do século passado para cá: o múltiplo repente do Nordeste; o mineiro-pau (ou maneiro-pau) dos boiadeiros de São Paulo, Minas Gerais, sul de Goiás; o partido-alto dos morros cariocas (bota África no meio); e as trovas do Rio Grande do Sul.
Com o passar do tempo, as influências de época, situação e região, o canto gaúcho de improviso teve várias interferências, em especial da Argentina, cuja força folclórica fez chegar até aqui a “payada” – que se tornaria relativamente popular, tendo como seu principal e mais influente nome o payador Jayme Caetano Braun, nascido na missioneira Bossoroca. As modalidades de improviso se multiplicaram através do “olarái”, que era uma cantiga de trabalho e mesclava improviso com versos conhecidos; da “queromana”, primitivamente uma dança, cuja melodia deu origem também a improvisos; das quadrinhas do “tira-teima” – no passado, a trova era feita em quadrinhas, como as de Pedro Canga.
Mesmo sabendo improvisar em qualquer modalidade, Gildo de Freitas conquistou o título de Rei dos Trovadores a partir de uma única, a que mais particulariza o repente gaúcho, que é a sextilha em redondilha maior. Rimas simples, setessilábicas, em versos de seis linhas, e acompanhamento peculiar: com a gaita (acordeão, cordeona), não apenas com o violão, como acontece em quase todo o mundo. E como a gaita tem normalmente apenas tom maior, a trova gaúcha é improvisada em tom maior, o que é outra peculiaridade, diferençando-a do repentismo brasileiro e da “payada”, feitos em tom menor. Também ao contrário de outras partes do Brasil e mesmo do Prata, a melodia que acompanha a trova no Rio Grande do Sul é invariável. Diz-se que é a “polca de cantar” (embora seja na verdade um chote mais lento), e como é tocada em Mi, o violão que acompanha a gaita precisa fazer uma pestana chamada “gavetão”. Daí a definição: “Mi maior de gavetão”. Tom alto, obriga os trovadores a fazer esforço, cantar em timbre agudo de voz.
A sextilha, que já existia como forma declamatória, popularizou-se como expressão de repente principalmente a partir da década de 1930. Durante as comemorações do centenário da Revolução Farroupilha, em 1935, houve vários concursos de trovas, e o Mi maior de gavetão predominou quase absoluto, só cedendo alguns espaços mais recentemente, nos anos 1960, com a entrada em cena da “payada” e a popularização maior do improviso em ritmo de milonga – no qual Gildo de Freitas também era mestre e que passou a usar muito nos repentes em solo e nas canções, influenciando toda uma geração. Muitos o consideram o introdutor do improviso em ritmo de milonga no Rio Grande do Sul, absorvido em suas frequentes viagens e estadas pela região da Fronteira.
O repente mais ao estilo platino ganhou muitos adeptos por ser mais livre, tanto em termos de linha melódica como de estrutura do verso. Com ele, o improvisador escapa ao cerco hermético da sextilha de sete sílabas, de ter que defender um ataque e contra-atacar, tudo isso em seis versos. Na trova clássica, ele é obrigado a comprimir o pensamento. E aí se destaca a classe dos grandes, como Gildo.
A trova clássica tem suas regras, ou partes, bem definidas. O trovador começa com a saudação à plateia, seguida da saudação ao adversário, o “meu amigo e camarada”. Depois vem a trova de assunto, também chamada trova de competência, que abre espaço para o “puaço”, sem dúvida a parte que mais encanta o público. É quando os trovadores se transfiguram em galos de rinha, experimentando a força das “puas” um contra o outro e trocando muitas vezes os maiores insultos. Por um acordo tácito, só escapam das ofensas a mãe, a mulher e as filhas, mulheres muito próximas do trovador. Nem as irmãs escapam. A trova termina com a saudação de despedida à plateia, onde frequentemente, para mostrar que não é um ser agressivo, é até religioso, o trovador mete Nossa Senhora e Jesus Cristo no meio, eventualmente se desculpa por “algum exagero” e se despede prometendo voltar…
EU RECONHEÇO QUE SOU UM GROSSO
Me chamam de grosso e não tiro a razão
Eu reconheço a minha grossura
Mas sei tratar a qualquer cidadão
Até representa que tenho cultura
Eu aprendi na escola do mundo
Não foi falquejado em bancos colegiais
Eu não tive tempo de ser vagabundo
Porque quem trabalha vergonha não faz
Eu trabalhava, ajudava meus pais
Sempre levei a vida de peão
Porque no tempo que eu era rapaz
Qualquer serviço era uma diversão
Lidava no campo, cantava pros bichos
Porque pra cantar eu trouxe vocação
Por isso até hoje eu tenho por capricho
De conservar a minha tradição
(. . .)
Gildo de Freitas tornou-se grande não apenas porque era um brilhante trovador e repentista, mas também porque fez parte da maior geração de trovadores que o Rio Grande já teve, como o patriarca Inácio Cardoso, Tereco (para muitos, o que mais se aproximou de Gildo), Genésio Barreto, Durval Inácio da Silva, Alvari Silveira, Joãozinho Azevedo, Antoninho Silva, Luiz Müller, Garoto de Ouro e mais para cá Portela Delavi e Teixeirinha. Eles viveram o auge da trova e sua popularização através dos programas de auditório das rádios Gaúcha e Farroupilha, de Porto Alegre, em especial o programa Grande Rodeio Coringa, apresentado a partir de 1955. Infelizmente, fora Teixeirinha, poucas informações detalhadas restaram sobre os demais além da memória de quem viveu aquela época.

Gildo marcou porque era exímio na rima, porque seu humor e ironia conquistavam imediatamente as plateias, porque desde pequeno adquiriu uma vasta experiência de mundo. E, afinal, porque nasceu para cantar. Duas das mais simples e, por causa disso, melhores definições sobre seu talento, são dadas por Teixeirinha e Formiguinha, os trovadores que mais intimamente conviveram com ele, na condição de parceiros. Teixeirinha:
– Ele trouxe do berço o dom da trova, era caprichoso no verso, sabia se apresentar pruma plateia. Não era muito acusador, não insistia nas puas, levava o adversário mais aliviado porque tinha muita ideia, muita sabedoria e muita simpatia.
Formiguinha, que por curiosidade nasceu exatos dez anos depois de Gildo no mesmo Passo d’Areia, em Porto Alegre:
– Ele sabia o que dizia, e dizia em versos bonitos, raramente cantava verso decorado. E o verso dele tinha mais perfeição que o dos outros, fazia um verso cheio, tinha o dom da rima que Deus lhe deu.
Sintetizando: os mais próximos parceiros procuram explicações até sobrenaturais para definir Gildo de Freitas como um artista de exceção. Estudiosos, por mais que pesquisassem e fizessem citações, buscassem causas e motivos, não chegariam a definições mais claras.
Gildo notabilizou-se como trovador, mas conquistou os públicos maiores, e foi ainda mais abrangente, quando começou a gravar seus versos, vestindo-os com os ritmos regionais do Rio Grande do Sul (chote, valsa, polca, rancheira, vanera) e a absorção que fez da milonga. De raros poetas/compositores se pode dizer que tenham, ao nível mais popular, regional e universal possível, abarcado tantos assuntos. E Gildo de Freitas poucas vezes partia para a ficção. É notável o caráter autobiográfico e múltiplo de sua obra. O tal de “livro aberto”.
Para dar uma rápida ideia, veja-se alguns dos assuntos ou personagens que podem ser encontrados em suas músicas: animais (cachorro, gato, bois, pássaros, muito sobre o cavalo), a natureza através das árvores, a família, vida de campo, filosofia campeira, objetos usados pelo gaúcho, revolução, brigas/desentendimentos/discussões (muito), lugares, homenagens a cidades, ciganos, a morte, o céu e o inferno, religião, misticismo, o sobrenatural (fantasmas, vozes do além, sonhos, pressentimentos), pessoas reais ou imaginárias, traições conjugais, bailes (muito), cabarés, “mulheres da vida”, pecado e arrependimento, justiça e injustiça, o trabalho e o trabalhador, o violão e a gaita, casos de amor (muitos, na primeira, na segunda e na terceira pessoas), paixões proibidas ou impossíveis, a poesia com memória do passado (muito), doenças, vícios, jogos de azar, a vida, a música, amigos, a moral, preocupação social (ajuda aos mais fracos e sofredores), valentia, paz, o destino, dramas do cotidiano. E por aí vai. Gildo falou de tudo, não deixou nem de comentar o fenômeno dos hippies – na música Baile dos Cabeludos, em que põe Teixeirinha a dançar com um deles, por engano…
Falava por ele e, como todo poeta natural e profundo, assumia também sentimentos coletivos, falando pelas dores e paixões dos outros. Gostava bastante, é bom destacar, de fazer melodramas, como o da mãe que abandona o lar deixando pai e filho pequeno, e o filho cresce na esperança de um dia ver a mãe, e um dia desiludido se mata enforcado – no mesmo dia em que a mãe, arrependida e louca de saudade, resolve voltar e, ao receber a notícia, “perde a mentalidade”. Gildo costumava dar alma a animais e objetos e tinha, com grande frequência, tiradas antológicas, como esta: “O Diabo desafiou Deus e Deus deu rédea pra ele, só pra ver onde ele ia”.
Muitas das músicas, especialmente as milongas, tinham melodias praticamente invariáveis. Mas com letras tão diferentes, que isso passa quase despercebido. E um tema que aparece muitas vezes, as mulheres, serve para se ver também como ele estabeleceu sua escala de valores, nesse sentido. Sempre fazia comentários à margem das músicas, como em Sistema dos Pagos, onde põe na roda o produtor paulista dos seus primeiros discos: “Puxei o meu pai, Palmeira, sempre gostei de mulher… A gente sem mulher não vale nada”. Mas, na música Gaúcho Cantador, indica que não era qualquer mulher e mostra sua moral particular:
Eu fui a um baile no meu pingo marchador
E por eu ser cantador levei o meu violão
E uma casada que estava no salão
Armou o laço pra me pialar o coração
Aí comenta, declamando:
Eu saí fora, não caí naquela armada
Namorar mulher casada eu acho tempo perdido
Eu penso em mim, por ser gaúcho casado
Precisa ser respeitado nosso nome de marido
Não quis saber do assédio da linda morena, em defesa do bom nome dos maridos, porque: “O que não quero pra mim, pros outros também não quero”. A moral era particular, porque valia só pra ele, Gildo. A mulher dele, Dona Carminha, estava em casa cuidando dos filhos. Mas tudo isso vai se ver daqui para a frente, detalhe por detalhe. Esta introdução não passa disso, uma introdução, procurando despertar curiosidades. Por exemplo: Teixeirinha disse que Gildo não costumava ser impiedoso com os adversários. Mas isso é uma meia verdade, porque às vezes ele sabia sê-lo, e não poupava. Uma das vítimas foi o próprio Teixeirinha, durante a antológica “briga” através dos discos que ambos travaram durante anos:
Certas bobagens que andas dizendo
É pura inveja do Gildo de Freitas
Eu tenho a cara de homem sincero
E uso ela conforme foi feita
E a tua cara é de uma forma elástica
Já fez até uma operação plástica
E mesmo assim a cara não se ajeita
E terminando, para começar, vale dizer que a genialidade de Gildo de Freitas não se restringiu a seu cotidiano e à sua mera percepção e/ou criação de realidades. Naturalista, não morreu sem combater o progresso científico que, em sua visão empírica e muitas vezes surreal, estava sendo o responsável pelo desacerto do mundo. Os “foguetes” mandados ao espaço por Estados Unidos e União Soviética estavam “furando os olhos da natureza” e prejudicando a paz. Protestando contra a corrida espacial, protestava contra a guerra.
SONHO DE GROSSO
Esta noite eu tive um sonho
Que eu andava no espaço
Que arriba das nuvens brancas
Tem uma capa de aço
E Cristo estava sentado
Me disse vê que fracasso
Lá na terra hai um desejo
De pensarem que a lua é queijo
E cada um quer um pedaço
E falando:
Me desculpem, cientistas
A lua ninguém conquista
Vocês todos estão errados
Não deixou, também, de protestar contra o progressivo empobrecimento do povo brasileiro, na música Sinais dos Tempos, proibida em 1970 pela censura do general Emílio Garrastazu Médici:
Preço não se liga mais
Nem quem compra, nem quem vende
Uns tão ricos, outros na pua
Uns morando em palacetes
Outros dormindo na rua
Juarez Fonseca nasceu em 1946, em Canguçu. É jornalista profissional desde 1969, tendo passado pela Folha da Tarde e na Zero Hora de 1970 a 1996, Foi editor no Jornal da Universidade, colunista da revista Aplauso e do jornal ABC Domingo, antes de retornar a Zero Hora em 2013, como colunista. Escreveu além deste, Ora Bolas, sobre Mario Quintana e Neugebauer, Uma HIstória. O texto aqui reproduzido, Em tom (maior) de introdução, é a introdução do autor ao livro gentilmente cedido para reprodução à Sepé.
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Sendo um apreciador das músicas de Gildo de Freitas. li com muito interesse e prazer o texto desta postagem. Um belo trabalho! Parabéns ao nosso grande jornalista, ilustre canguçuense Juarez Fonseca.
Mas o que mais aprecio é a valorização das coisas do passado, sejam sobre músicas, futebol, a vida antiga dos municípios, os carros antigos, os acontecimentos da política, as guerras e revoluções, nossos antepassados etc.
Povo sem memória, sem raízes e que não se interessa por história, é pouco patriota e acaba não valorizando os bens maiores do hoje!
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