JÁ É LONGE DEMAIS – CONTO INÉDITO DE DANI LANGER
Nadir olha o marido, sua barba ruiva com os fios que nunca saem do lugar. Anoitece e faz um bom tempo que o carro segue em linha reta. Ele não tira as mãos da direção e os olhos da estrada, e ela percebe que, embora ele saiba que não encontrarão tão cedo uma curva, deseja uma conversão que lhes levasse para qualquer lado que fosse. A mulher vira o rosto, a paisagem do sul deixa de ser animadora depois da quarta ou da quinta viagem, quem sabe depois do sexto ou sétimo ano de casamento. Ela esfrega as mãos sobre os joelhos, a saia se amontoa no colo feito um pedaço de pano sem sentido algum. “Que tal um mate?” Nadir pergunta. “É, um mate, isso sim!”
O carro diminui a velocidade, a erva incha na medida em que a água desliza controlada por Nadir. Entrega a cuia para o marido e abre o porta-luvas, a lâmpada do compartimento ilumina uma foto 3×4 colada na porta, pela parte de dentro. Passa os dedos sobre o rosto de uma menina de uns três anos. O marido lhe devolve o mate. Ele olha para o retrato por alguns segundos, e antes de voltar o rosto para estrada, vira-se para mulher que está de olhos fechados. “Se ela estivesse aqui, perguntaria se já estamos chegando”, Nadir abre os olhos logo depois de falar. O marido sorri, “e diria que o dia está esnoitecendo”. Eles se olham, ela percebe que desde de que entraram no carro, não haviam se encarado e por alguns minutos um riso baixo toma conta do interior do automóvel. De repente, ele volta a ficar sério, “pode parecer cruel, mas talvez não seja bom andarmos com uma foto dela”.
Nadir descola a fotografia com cuidado e a guarda dentro do sutiã, em seguida fecha o porta-luvas. O marido volta a guiar em silêncio, e ela volta ao seu perfil. Repara no contorno da orelha, igual ao da filha, o nariz levemente adunco, os lábios pouco contraídos. Não precisa muito para lembrar que em algum dia, num tempo que agora não faz a menor diferença, vê-lo dirigir, ser guiada por ele pelas estradas do norte e do sul, despertava-lhe o desejo de lhe acarinhar o rosto, deixar que os dedos desmanchassem os fios da barba, emprestar-lhe um aspecto mais humano.
Serve outro mate, e enquanto sorve o liquido amargo percebe, no final da reta, uma construção. “Parece um posto”, ele diz antes dela. “Vamos parar, preciso ir ao banheiro”. “Mas você não acha que…”. “Pelo amor de deus, não precisamos achar mais nada. Estamos longe. Já estamos longe demais”.
O posto parece mais um tipo de lugar fantasma. Além deles e dois frentistas, só a paisagem cada vez mais espalhada. Abastecem e estacionam. O dia se transformou em um quarto à meia-luz. Ao se afastar à procura do banheiro, Nadir ainda escuta o marido comentar sobre a foto da filha. Por perto, um cachorro velho se distrai, coçando o lombo. De longe, ela observa os movimentos do homem junto ao carro. A forma com que abre o porta-malas e pega uma garrafa térmica de café, servindo um pouco na própria tampa, para beber em um só gole. Embora de costas para ela, adivinha quando limpa, com o mesmo pano-de-prato, a boca, a barba e a tampa em que bebera. A medida em que caminha até a entrada do banheiro, sente-se como se estivesse a ponto de esvaziar por inteira.
Entra no cubículo e prende a respiração, em uma tentativa de abstrair o cheiro de mijo, óleo diesel, montanhas de papel higiênico. Pensa nos cabelos da filha, em esconder o rosto nos cabelos finos, quase ruivos da filha. Acocora para não encostar na louça da privada, segura a saia, ouve o barulho do jato de urina e pensa em pudim de leite e o crepitar do fogo na lareira.
Lava as mãos no fio de água que escorre da torneira de ferro. Sente o roçar do papel fotográfico junto ao seio, enquanto pela basculante vê alguns metros de pátio, e, no pátio, o marido que se afasta do carro. A luz do posto ilumina pouco ao redor. Estão em um mundo sem sombras. Ele mexe nos bolsos, depois acende um fósforo; o cachorro fuça pelo mato, desejando ser parte da escuridão.
Enquanto seca as mãos na própria saia, observa, uma última vez, o homem junto ao descampado. Anoiteceu completamente, e a ponta da brasa do cigarro na mão do homem se parece mais e mais com um vaga-lume.
Dani Langer é escritora, autora de No inferno é sempre assim e outras histórias longe do céu. É mestre em Escrita Criativa pela PUCRS.