MARGANI – CONTO INÉDITO DE SINE NOMINE

Margani era um pedaço de mau caminho! Colega de banco, despertava paixões em todo quadro funcional, incluindo gerentes, diretores e clientes ricos. 

Morena à meia cuia, com um cabelo que se derramava dorso a baixo como uma cachoeira de piche. Os olhos, duas bolitas rasgadas de cor incerta. Um tom exótico de mel, com expressões que iam do mormaço à selvageria, mercê do momento. Era por onde começavam a sucumbir suas vítimas. E a boca… Lábios de pedir beijo, daqueles que permanentemente ensaiam a última vogal. Um bico de selfie mesmo dormindo.  

Eu falaria sobre seu corpo, mas temo exagerar. Só não posso deixar de referir, que isso tudo se distribuía em pouco mais de 1,60m. Margani crescia na frente dos homens. Na frente, por baixo, por cima…

Dos babões que a cercavam, poucos tinham liberdades. Eu era um ungido. Por quê? Ora, porque não insistia, explícita ou veladamente, em levá-la para a cama. Era o que ela pensava e por mim estava tudo bem. Até que uma borracheira em uma festa do banco resolveu as coisas entre nós. Na verdade, ficamos um feriadão confinados resolvendo as coisas.

Alguns dias depois, porém, ela sumiu. Sumiu total, como por encanto.

As coisas custaram um pouco a se ajustar. Fiquei com um sentimento amargo de perda, e com a certeza de que aquele feriadão de torrar colchões fora um prêmio de consolação pelo amigo legal que eu tinha sido. Sofri. A extensão das minhas dores tem seu limiar nas sextas-feiras, mas daquela vez seria diferente.

Dois anos se passaram. Eu tinha me arranjado aqui e ali com Alice, Verônica e nem me lembro com quem mais, mas não esquecia Margani. Uma noite, sentado em um piano-bar, me deparei com ela. Estava acompanhada pelo papai. Papai com açúcar, e era uma versão especial de Margani.  

Cruzamos os olhos despercebidamente como estranhos. Ela levantou-se para ir ao toalete a passo lerdo, mostrando o tamanho da minha perda. Alguns minutos depois o garçom chegou com um cartãozinho e um recado “me liga”. Dei-me por satisfeito e fui embora. Por certo ligaria.

– Margani?

– Oi, querido. Preciso vê-lo. Anote o endereço.

Era perto, mas demorei dois dias para chegar e ser recebido pela nudez dela. Sim, havia uma toalha por cima, mas só notei depois.

– Sente. Vou me vestir.

Quase retruquei por impulso…

– João, eu sei que devo explicações, mas as coisas se precipitaram e tive de tomar decisões com urgência. Precisei escolher entre ser bancária ou rica. Não vacilei.

– Saí com um diretor do banco algumas vezes. Fizemos uma viagem, quando ele pediu exclusividade. Fez ofertas… Eu, algumas exigências… Resumindo, passei de bancária, moradora de república a amante, com cartão ilimitado e um apartamento.

– Explorei a ficha médica dele e comecei a cozinhá-lo em fogo brando. Como estava demorando a “nos deixar”, dei um jeito de sermos surpreendidos por sua filha. Um escândalo sufocado, e ele teve de ancorar seu barco. Fiquei livre, com este apartamento e a grana indenizatória. Silêncio custa caro.

– É o que escolhi.  Agora tenho três “namorados”. Todos “exclusivos”, com mais de 60 anos, casados, ricos e cardiopatas. É assim que vou juntar o suficiente para viver bem e sair de cena, o que não deve tardar. Percebe?

Percebi. Em relação aos pré-requisitos, eu não era rico nem tinha 60 anos. Mas, talvez por causa dela, não era casado e provavelmente tenha contraído uma cardiopatia.

II

Meus olhos vagueavam indefinidamente pelos tapetes e livros expostos na estante, evitando, aflito, pousar naquela nudez tão adivinhada. Pasmo e desolado como se em torno desabasse o mundo.

Busquei qualquer frase que aliviasse o silêncio, uma pergunta talvez. Quem sabe a interrogação que me atormentava, por que o chamado de ir até sua casa? A razão de me receber com uma intimidade de amante, logo eu, tão aquém do que ela pretendia dos homens que a frequentavam. Explicar o sumiço? Não, Margani, não me deves explicação alguma, nem de como amealhaste fortuna em troca de teus encantos. Tentava pinçar a frase exata do turbilhão dos meus pensamentos que rompesse aquela instalada mudez.

Ela sorriu molemente, cruzando as pernas que tanto me forneceram inspirações e a voz rouca me tirou da angústia daqueles pesados instantes:

– Quero te fazer um pedido!

Levantou-se, caminhou até o grande armário antigo com duas imensas portas de madeira.  De costas pra mim, abre a toalha e a amarra novamente, divertindo-se por certo com meus desejos. A porta abre rangendo, expondo prateleiras forradas de broderí. Na ponta dos pés, puxa a grande caixa de papelão. Senta novamente na poltrona com a caixa nos joelhos.

– Preciso que me prometas que nunca vai contar pra ninguém!

– O quê? 

– Promete.

– Prometo.

III

Margani abriu a caixa. Dentro, uma miscelânea de objetos: uma boneca, um chocalho de bebê, um vestido branco de criança (talvez de primeira comunhão), um piano minúsculo, em porcelana, um maço de cartas atadas com fita de cetim azul, um rosário de cristal, um envelope pardo, um diário com fechadura, uma chave antiga e muitas outras coisas que não cheguei a perceber o que eram.

− Aqui dentro – ela me disse, segurando o envelope − eu guardo as minhas certezas. As coisas são apenas coisas, não trazem em si nenhum sentido, somos nós que lhes damos uma história.  Cada um desses objetos, a cada um deles eu atrelei uma certeza. Por isso eu os guardo aqui, dentro dessa caixa. Um descuido e eles se perdem em outra vida, ganham um novo dono, uma nova história. Esse piano de porcelana, ganhei da minha madrinha quando me apresentei em público pela primeira vez, num recital. Tinha dez anos e meu sonho era tornar-me concertista. Não consegui, é claro, mas ele representa a certeza de que fui menina e tive sonhos. Essas cartas, são cartas de amor trocadas entre minha mãe e meu pai, eu emprestei a elas a certeza de que o amor é possível. A cada desamor que me acontece, eu as releio, durmo com elas sob o travesseiro e logo estou pronta para começar de novo.

Nada daquilo que eu via e ouvia combinava com a imagem que eu tinha de Margani, seus três namorados, seu desejo irrefreável de ser rica. Para aumentar meu embaraço, a toalha havia resvalado de seus ombros e deixava à vista os seios magníficos de mamilos grandes, um tom mais escuro do que a pele. Eu que sempre a desejara, que sonhara com ela e me masturbara, senti-me de repente envergonhado pela nudez não do seu corpo, a nudez da alma que ela me expunha sem pudor. Depois de olhar aquela caixa, não podia mais pensar em Margani como um objeto do meu desejo. Era obrigado a olhá-la como uma mulher: beleza e feiura, qualidades e defeitos. 

− De tudo aqui, porém, nada existe nesta caixa mais secreto do que o que está nesse envelope − ela disse, colocando o envelope no colo e, feito uma menina, cobrindo pudicamente os seios com a toalha.

Aquele gesto casto me excitou mais do que qualquer requebro dos seus quadris, qualquer oscilação de seus lábios de beijos. Naquele momento, não me envergonho de dizer, me apaixonei por Margani. Ela pareceu ler meu pensamento.

− Guardo tudo isso para mim, não para os outros. Não te mostro para que gostes de mim. Aprendi a conviver com o desprezo, é muito mais fácil do que conviver com o amor, não há expectativas nem cobranças. Está tudo ali, à flor da pele. Gosto de viver assim: na superfície. Se eu desaparecer agora, não me importo que encontrem essa caixa, ninguém irá adivinhar o que cada uma dessas coisas representa pra mim, serão apenas objetos. Mas o que está nesse envelope me revela. Ele não pode cair em mãos estranhas.

IV (final)

A impressão era de que ela estava prestes a sumir de novo e me escolhera como fiel depositário de seus segredos. Por que eu? Não havia nada entre nós além daquele feriado. E até botar meus pés naquele apartamento, Margani era apenas uma fêmea a aguçar meus instintos. Mas, ao cruzar a porta, no entanto tornei-me um minúsculo inseto preso em suas teias. E não queria me libertar. Se naquele momento ela tivesse me proposto uma fuga, eu teria aceitado de pronto. Ou qualquer outra loucura. Casar, morar junto, tudo que nos mantivesse próximos.

Margani optou pelo afastamento.

Guardou o envelope dobrado no bolso interno do meu casaco e conduziu-me à saída. Na ponta dos pés, alcançou-me um beijo rápido e entrevi em seus olhos um brilho úmido que tentou enxugar com o dorso da mão. Empurrou-me para fora com delicadeza e passou a chave na porta. Não havia dúvidas. Era uma despedida. 

Quando o elevador chegou, dei passagem a um senhor baixo, um tanto gordo e bem vestido. E, a julgar pelos dois seguranças carrancudos que o acompanhavam, tratava-se de alguém importante. Talvez um dos amantes ricos dela, por isso a pressa em me por pra fora.

O que Margani era capaz por dinheiro, ela mesma confessara, mas após nossa conversa ficou evidente que algo a preocupava. Talvez estivesse sofrendo chantagem ou fosse ela própria a chantagista. E a resposta estava em meu bolso.

Quando cheguei à rua, faltava pouco para as dezoito horas. Virei a esquina e entrei no primeiro café que encontrei. Escolhi uma mesa de fundo, pedi um expresso duplo e, enquanto aguardava, apanhei o envelope. Lacrado.

− Açúcar, senhor?

− Não, obrigado.

Bebi num só gole a água que acompanhava o café e quando ergui os olhos, dois homens estavam parados à minha frente. Havia neles algo de familiar.

Acordei, olhei em volta. Macas por todo o lado e um cheiro azedo que me embrulhava o estômago. Uma desconhecida ajeitava meu travesseiro.

− Onde estou?

− Na emergência do Santa Helena.

Passei a noite em observação e, ao sair, devolveram-me apenas as chaves. Todo o resto tinha sumido. Carteira, cartões, documentos e até o relógio de pulso que fora de meu avô, com o vidro trincado, e de valor puramente sentimental. 

Já em casa, tentei refazer os acontecimentos. Desde o copo d’água no café até a emergência, apenas escuridão. Liguei para Arthur, um colega do banco, e pedi para que viesse com urgência. Enquanto o esperava, veio-me a lembrança dos bolsos sendo revistados. Sim, fora mesmo um assalto. E quanto mais pensava, menos me convencia. Faltava alguma peça naquele jogo. Então lembrei do envelope que Margani me havia confiado.

Naquele mesmo instante, Arthur tocou a campainha .

− Olha isto – disse, jogando-me um jornal nos braços.

A foto de Margani estampava a página policial. A matéria trazia poucos detalhes, apenas que fora encontrada por meio de denúncia anônima, no final da tarde anterior. A polícia ainda não tinha o retrato falado do suspeito, mas, segundo o depoimento do porteiro, o homem havia subido ao apartamento da vítima por volta das quinze horas e descido pouco antes das dezoito. Fora isso, um relógio de pulso com o vidro trincado, esquecido ao lado do corpo.

Sine Nomine é pseudônimo que reúne detrás de si os escritores Anna Mariano, Jair Portela, Marga Cerdón e Valéria Surreaux.

FICÇÃO

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