MAS NÃO ME LEMBRO O PORQUÊ – CONTO INÉDITO DE HITALLO DALSOTO

No bairro em que eu morava, vivia uma senhora tão misteriosa quanto bondosa. Dona Leda, como se chamava. Era habitual cruzar por ela nas calçadas ou no mercado. Ela sempre sorria e acenava, conhecendo a pessoa ou não. Essa senhora marcou minha vida de tal maneira que, talvez, um dia com a idade, seja possível que eu esqueça minha própria família, mas nunca esquecerei Dona Leda.

Quando criança sentia muito medo da figura alta e magra, curvando-se aos poucos sobre si mesma. O cabelo era algodão sobre a cabeça, nada assustador, se pensar bem. Porém, para uma menina de oito anos, a marca de queimadura no lado esquerdo do rosto era algo de causar pesadelos. Essa senhora carregava a cicatriz desde muito antes de eu nascer. A parte queimada era torcida e repuxada, derretida pelo fogo. Os mais velhos sabiam que Dona Leda havia conquistado aquela terrível cicatriz durante um acidente de carro. Não era segredo. Se perguntassem para ela, responderia que fora devido a um pacto com Satanás. Obviamente ninguém acreditava nos delírios divertidos da velha senhora; até seu senso de humor era famoso no bairro.

Apesar do pouco dinheiro com que minha família vivia, lembro com carinho de minha infância; lembro com tanto amor que somente dias ensolarados e quentes iluminam minhas memórias. Quando fiz treze anos, no início dos anos 1990, minha família passava por problemas financeiros, por isso comecei a trabalhar logo cedo. Eu deveria limpar a casa de todas as famílias que se propusessem a pagar. Trabalho que desempenhei com grande prazer e orgulho. Orgulho por ter meu próprio dinheiro e ajudar com as despesas, e prazer, pois todos me tratavam com respeito, como se eu fosse da família – me enchiam de mimos e doces após um dia de trabalho bem feito

Foi nessa época que comecei a frequentar a casa de Dona Leda. Já mais crescida o medo não existia, e tudo que eu nutria por aquela mulher era o respeito que se deve ter pela experiência dos mais velhos. Seja por caridade ou necessidade, ela passou a contratar os meus serviços duas vezes por semana. Nas quartas e sextas-feiras – nesse último dia, pois era importante deixar a casa arrumada para receber visitas aos fins de semana. Ela nunca recebia.

A casa de Dona Leda era a maior do bairro, na esquina da minha rua. Meu sonho era morar naquele lugar; lembro bem. Dois andares, branca, um jardim lindo e colorido de flores. Eu fui com muito prazer. A casa possuía móveis antigos e as paredes eram enfeitadas com quadros que eu não entendia, mas foi sobre uma mesa de canto que vislumbrei pela primeira vez a imagem de Doa Leda quando jovem. Era negra e alta, a mulher mais linda que eu tinha visto até então. Dona de uma postura invejável e, mesmo por fotos, notava-se que ela exalava carisma. Nas imagens em preto e branco, ela abraçava outros homens com alegria e mulheres com afetuosa amizade. Mas seu sorriso roubava a cena. Sorriso largo de uma face completa.

Não me cansava de olhar para as fotos. Todos os dias de faxina me perdia no passado daquela senhora. Ela não me enchia de mimos como os demais, porém era a melhor companhia que eu possuía; e eu a dela. Normalmente eu limpava a casa sozinha para os vizinhos, mas ela fazia questão de me ajudar. A primeiro momento me senti ofendida, ao meu ver ela não confiava no meu trabalho como os outros clientes. Logo percebi que era companhia por companhia, ela adorava conversar, embora fosse muito reservada. Me perguntava sobre a escola e minha família. Com uma piscadinha também questionava sobre namorados.

– … ou namoradas? Hoje em dia as coisas são mais fáceis – completou ela certa vez. – Na minha época era um sacrilégio dois homens ou duas mulheres demonstrarem amor e sexo… você já fala sobre sexo, minha flor?

Lembro que neguei com a cabeça constrangida, adorando a conversa. Minha mãe não falava sobre essas coisas comigo, então Dona Leda poderia falar sobre o que desejasse. Eu gostava da energia e falta de filtro dela para conversas.

– Eu tive muitos namorados, e talvez uma dessas meninas nas fotos pode ter sido um “deles” – ela sorriu como se verificando se podia confiar seus segredos. – Mas nunca fui de me prender aos homens, não seja você também!

Conforme sua confiança em mim aumentava, ela foi revelando um pouco mais de um passado que pertencera a mulher incrível que tinha sido. Contou que era neta de escravos e que se orgulhava da história dos negros. E conquistou tudo sozinha, conforme fazia questão de ressaltar.

– “A Poderosa Negra”, era como me chamavam – gaba-se ela. –Obviamente sofri racismo e passei por tudo isso, mas pisei em todo mundo que TENTOU pisar em mim. Faça isso também, minha flor, pise antes que pisem em você. Foi esse ditado que me fez conquistar tudo.

Descobri quase uma semana depois que, de fato, era verdade sobre o apelido. A Poderosa Negra. Fiquei sabendo por um vizinho tão idoso quando Leda. Ele passou por mim na calçada e, com sorriso bondoso, pediu que eu mandasse um grande beijo para a Poderosa Negra. Mesmo em minha ingenuidade percebi as segundas intenções dele. Mandei o recado mesmo assim.

– Iiiii, minha flor, esse é velha guarda que nem eu. Não lembro se alguma vez eu o levei para cama, mas lembro que ele sempre foi muito insistente. Bom sujeito.

– Ele chamou você de Poderosa Negra, por que desse apelido? – Arrisquei a pergunta entre uma espanada e outra nos vasos antigos e vazios.

– Porque eu era poderosa mesmo. Por que mais seria?

Eu continuei de costas.

– O que você quer ouvir, tenho alguns vinis aqui, tenho Koko Taylor, Bessie Smith, tem até um álbum do Bukka Withe, se quiser.

– Desculpe, não conheço esses cantores.

– COMO NÃO CONHECE? Que absurdo isso! – De repente mais uma voz na sala rompeu em canto, era uma canção antiga. – Vamos começar com o básico então, te apresento Lucille Bogan. Dizem que ela gravou essa música bêbada.

Hoje entendo que foi Dona Leda que definiu as músicas que eu ouviria o resto da minha vida.

– Satanás gosta disso também – comentou ela em murmúrio, ela percebeu preocupação no meu olhar. – O quê? Conheço o sujeito, nunca escondi o pacto que fiz com ele. Vocês que não acreditam.

Treze anos não é a idade para se entender sobre pactos. Eu entendi a palavra “Satanás” e, na época, eu acreditava que o nome dele não significava nada de bom, por isso me preocupei com Dona Leda. Mas essa mesma idade nos faz curiosos e meus lábios, por vontade própria, balbuciaram o “qual pacto?”.

– Não sei – ela respondeu distraída.

– Mas lembramos quando fazemos apostas, promessas e essas coisas, não é? – Desafiei a suposta mentira.

– Você não entendeu, minha flor, eu lembro de ter feito o pacto com Satanás, mas não me lembro o porquê. – Ela suspirou tentando lembrar. – Agora você deve estar me achando uma mentirosa, certo?

– Sei que a é brincadeira da senhora.

– Não, não é não, eu fiz um pacto com o Satanás, já contei isso para todo mundo aqui. Mas é verdade também que não me lembro o motivo.

– Deve ter sido para ter mais dinheiro, pelo que vi nas fotos a senhora tinha muito dinheiro, certo? – naquele momento meu respeito por ela havia fraquejado um pouco.

– Nada disso – ela fitava a parede tentando puxar da memória o motivo do pacto. – Eu era muito perspicaz para negócios, fui empresária numa época em que minha cor era praticamente proibida disso. Andei de limusine, sai com figurões, conheci gente importante. E quando falo de gente importante, falo de gente de fora, sabe o Muddy Waters?

– Não…

– Conheci ele também… COMO VOCÊ NÃO SABE QUEM É ? Ah! Tudo bem, não é culpa sua. Eu ganhava e perdia muito dinheiro o tempo todo. Então não foi obra do tinhoso, lembro de cada passo que dei e cada decisão que tomei para chegar onde cheguei. Isso foi obra minha.

– Ter muitos namorados?

– Não, não, olha para isso! – pegou um retrato que somente ela aparecia, – eu era linda. Podia ter quem eu quisesse.

– Isso é verdade.

Ela manteve o olhar na foto, admirando o rosto perfeito.

– Acidente de carro – cochichou ela.

Voltei aos meus afazeres.

Os dias em que eu não estava com Dona Leda passaram a ser desinteressantes. As histórias que eu ouvia dela – mesmo aquelas acidentais, – eram mais cativantes do que qualquer outra coisa. Até os meus programas de televisão favoritos não prendiam mais minha atenção. Eu tinha por costume assistir novelas com minha mãe e imaginava que seria interessante uma novela sobre Dona Leda, o título poderia ser “A Poderosa Negra”. Hoje recordo disso com diversão, mas na época foi decepcionante quando percebi que eu mesma teria que descobrir a história daquela senhora, caso eu quisesse saber mais.

Nos dias que se seguiram, Dona Leda deixava escapar sobre o tal pacto com Satanás e eu entendia que ela queria conversar sobre o assunto; sendo verdade ou não. Fazia força para lembrar, nunca encontrava o motivo. Perguntei como era o Satanás, ela prontamente respondeu:

– Figura muito bonita e apessoada, no começo deu medo, mas depois eu poderia ser todinha dele. Além da educação, muito cortês, ao menos comigo foi.

– Se casaria com ele, Dona Leda? – perguntei como brincadeira.

– Deus me livre do matrimônio – respondeu ela em risada rouca. – Prefiro outro acidente de carro.

– Odeia homens?

– Não, minha flor, nada disso, eu odeio o casamento e tudo que ele representa, a morte da liberdade e o adeus da indecência. E eu amava indecências. Jamais me casei, e acho que disso que tenho mais orgulho.

– Será então que não foi por isso o pacto, para nunca casar?

– Certeza que não, propostas não me faltaram. Minhas decisões de não casar foram todas de livre vontade e consciência.

– A senhora nunca falou do…. – parei no meio da frase, não sabia como terminá-la.

– Acidente? – concordei em silêncio, ela passou a mão na cicatriz. – Posso contar, mas não lembro muita coisa. Quer mesmo saber? – meu silêncio confirmou. – Não foi nada demais, eu voltava de uma festa, se bem lembro, e um outro veículo se chocou contra o meu – ela falava pausadamente, recapitulando cada cena, uma por vez. – Lembro do farol alto, muita luz, depois tudo quente… depois isso – mais uma vez ela acariciou a cicatriz.

– Você sabe dirigir?

– Não, não sei.

– E estava sozinha?

– Sim, acho que foi por causa disso que aconteceu tudo isso. E por esse motivo abandonei minha carreira, e vim morar aqui. Foi muito cedo, admito.

– Por que largar a carreira?

– No ramo do entretenimento a única coisa que conta é a aparência. E Satanás cobra aquilo que mais importa para você, no meu caso, foi a vaidade.

“A única coisa que conta é a aparência”. Essas palavras me marcaram a vida toda. Cresci querendo ser tão bonita quanto foi Dona Leda na juventude. Acho que ninguém conseguiria atingir aquele nível de beleza. Eu com certeza não consegui, porém daquele dia em diante, admito que me tornei mais vaidosa.

Quando jovens não somos muito bons em analisar situações de imediato, mas temos o direito humano de remoer depois. Tinha em minha frente um quebra-cabeças desses que poucos se atrevem a montar, queria não ter sido tão curiosa naquela época. Queria ter apenas feito meu trabalho. Queria nunca ter subido naquele sótão.

Era quarta-feira quando subi, depois de uma aula sobre a história das cantoras negras. Ela não pediu para que eu subisse. Eu me ofereci, pois sempre fui muito meticulosa, queria fazer um bom trabalho, principalmente por se tratar da cliente que era. Ela informou que nunca limpara o sótão, pois já estava muito velha para subir. Lá em cima encontrei mais quadros sob lençóis velhos e encardidos. Tive problemas para conter a crise de espirros causada pelo excesso de poeira. Havia também porcelanas e brinquedos de criança. Eu levaria décadas para limpar tudo aquilo. Comecei tentando varrer o chão. Espanei e me arrependi. Até que encontrei, dentro de uma gaveta de um criado mudo consumido por cupins, algumas fotos soltas e um álbum velho.

Nas fotos em preto e branco me deparei com mais da beleza de Dona Leda. Ao contrário dos retratos pela casa, nas fotos encontradas ela não estava cercada por amigos ou aproveitando de festas. Em muitas delas apenas olhava para um homem tão alto quanto ela. Estavam abraçados ou de mãos dadas. Ele usava um chapéu de feltro da época, e sorria bobamente para ela, que retribuía o sorriso com admiração. O álbum me revelou ainda mais dos dois, e para minha surpresa encontrei fotos de Leda com a mão na barriga. Conforme passava as páginas, sua barriga crescia. Logo eu via ela, o homem e uma barriga de nove meses. Era como ler o melhor livro, do melhor autor. Aquelas fotos contavam a história que eu desejava conhecer. Em seguida admirei um menino que poderia ser o dono do mundo, sendo filho de quem era. Nos retratos espalhados pela casa ela estava sempre sorrindo, entretanto, nas fotos com a criança no colo, ela estava verdadeiramente feliz. Não havia fotos de um casamento, apenas fotos de um casal apaixonado.

No final do álbum encontrei páginas velhas de um jornal que relatava a notícia de um acidente de carro, com fotos da tragédia. Também encontrei imagens de um funeral duplo a qual ela não participou. Um caixão de adulto e um menor. Com lágrimas molhando minhas bochechas larguei o álbum. Saí daquele lugar. Parei no meio da escada e sequei o rosto.

– A senhora nunca pensou em ter filhos? – as palavras fugiram da minha boca logo que a encontrei na sala escolhendo o próximo vinil.

– Filhos? Não, também não. Você é uma das poucas crianças que gosto. E sendo sincera, espero que não me leve a mal, mas filhos são prisões que você mesma produz. Eu sempre fui amante da liberdade – respondeu ela naturalmente.

Eu fiquei a encarando, procurando qualquer indício de mentira ou de alguma brincadeira. Mas era sincero. Era real.

Essa senhora faleceu quando eu tinha dezenove anos. Fui ao seu funeral cheia de dúvidas ainda. Mais tarde procurei saber mais da intimidade de Dona Leda, mais do que eu havia descoberto em minhas visitas. Encontrei somente informações sobre sua curta e bem-sucedida carreira.

Nunca esquecerei Dona Leda. Nunca esquecerei sua história. E hoje, mais velha, entendo qual o pacto feito com Satanás. Hoje, somando algumas decepções, amarguras e sofrimentos, entendo aquela mulher. Quem não gostaria de esquecer certas coisas para nunca mais sofrer? Faríamos qualquer coisa para esquecer o pior dia de nossas vidas.

Hitallo Dalsotto é nascido em Porto Alegre há 30 anos, morou na cidade de Cachoeirinha antes de retornar para Porto Alegre. Conquistou quatro prêmios como ator de teatro. Atualmente possui cinco obras publicadas: Histórias Críveis e Incríveis (contos), A Vida de um Homem Medíocre (crônicas), Diário de um Suicida (humor), Chicão e a Morte (romance) e Essa Visita Está Adiantada (romance).

FICÇÃO

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