O HOMEM DO PRÉDIO VERDE – CONTO INÉDITO DE MAYA FALKS
Quando eu era garoto, minha cidade devia ser um terço do que ela é hoje. Essas modernidades todas que as cidades maiores tinham a gente não via por aqui. Carros de rodas finas que andavam vagarosamente, mulheres com chapéus elegantes, tudo isso a gente só conhecia pelo jornal ou pelas fotonovelas que minha mãe gostava tanto.
Lembro do dia que começaram a construir um prédio no final da rua. Costumava andar com meu carrinho de lomba pro outro lado, mas naquele dia, fui pro lado de lá e ralei os joelhos caindo do carrinho no susto de ver não só uma construção de tijolo – a primeira da região – mas também que já tinha um segundo andar.
Todo mundo da área morava em casinha de madeira, tudo na humildade porque ninguém tinha dinheiro pra melhorar de situação. No máximo banheiro dentro de casa, coisa pra elite que andava esfarrapada mas pelo menos não metia o pé na lama se ia mijar de madrugada.
Então eu, meu carrinho de lomba e minhas pernas finas, passamos a frequentar os lados onde nascia o primeiro prédio da cidade. Não demorou muito pra molecada da rua se juntar a mim e a gente passava horas sentados na calçada do outro lado da rua tentando prever os próximos passos daquela construção.
Veio o terceiro andar numa manhã de segunda. Domingo era dia de missa e almoço com a família, então a mãe caprichava na roupa e a gente não podia sair por aí ralando os joelhos; quando cheguei no final da rua, na segunda, estava lá erguida a primeira parede do terceiro andar. Não acreditei no que via, aquilo não tinha como ser real. Três andares?
Claro que a construção do prédio não passou despercebida na cidade, virou assunto de mesa de bar, de roda de xadrez na pracinha, de papo de farmácia, de fila de mercado, de tudo quanto é canto. E quando a gente menos esperava, o prédio ficou pronto. Cinza concreto, feio pra burro, mas melhor que nossas casinhas de madeira.
Chegou uma carreta de mudança em seguida com alguns móveis usados e duas malas, no mesmo dia em que o prédio começou a ser pintado de um verde vivo, gritante, contrastando com o bege morno e sem graça das nossas ruas. O fedor de tinta fresca durou alguns dias, mas nunca tinha visto nada ser pintado tão rápido.
Quando o prédio estava completamente pronto, numa questão de poucos meses, um homem de certa idade se mudou pra lá. Só ele. A gente teve raiva do velho, no começo. A maioria de nós se espremia em casas pequenas para famílias grandes e ele vivia sozinho num prédio de três andares todo feito de tijolo, sem fresta pra vento.
Ele usava um sobretudo laranja tão chamativo quanto a cor do prédio, um cavanhaque pontudo e notou bem rápido que toda a molecada da rua ficava o dia todo na frente da porta dele, então um dia ele nos convidou pra entrar. Tava todo aquele monte de perninha fina meio cagado com a ideia de entrar no prédio verde, até porque nossos pais desconfiavam do homem, ele nunca falava com ninguém, comprava pão nem nunca tinha experimentado o sorvete do Tião, que ele dizia ser o melhor do mundo e era ali pertinho.
Entramos achando que nunca mais sairíamos, e tomamos um choque imenso quando percebemos que o primeiro andar não tinha uma única divisória ou móvel. Nadica de nada. Tinha uma escada num canto que nem parecia de um prédio novo, feita de madeira que lembrava nossas casas e que parecia que se desmancharia no primeiro degrau.
Ele nos pediu um minuto e subiu, fazendo muito barulho naquela madeira podre e mal pregada. Nós ficamos ali, atordoados, lembro que algum dos guris sugeriu que a gente fosse embora o mais rápido possível enquanto outro queria que a gente explorasse o lugar. Explorar o quê? Perguntei aflito de ter todo aquele espaço vazio enquanto minha casa era metade daquilo e a gente vivia em pai, mãe e 5 desnutridos.
O homem voltou com seu sobretudo laranja e uma cadeira de palha. Só uma. Posicionou no centro daquele lugar grande e nos convidou para sentar. No chão, claro. Foi então que ele nos contou que tinha vindo do futuro pra avisar que nós tava lascado. Que do tempo que ele vinha tinha um maluco governando, que nós, de pouca escolaridade e bastante fome, tinha muito mais inteligência que o tal do homem e que muita gente de coração ruim ia apoiar ele.
Também nos falou de uma doença que mataria gente pra caramba em todo o mundo, bem durante esse governo, e ainda nós tava lascado pra caramba. Fiquei com medo do futuro, mas um dos guris deu risada e disse que o velho era mais doido que pedra e saiu do prédio gargalhando feito uma hiena. E eu nem sabia que pedra podia ser doida.
Eu fui o último a sair. Não achei graça nenhuma, tava assustado, por algum motivo eu sentia que o velho não era louco. Quando cheguei na porta, ele tocou meu ombro, me entregou metade de um medalhão que encaixava perfeitamente com metade que ele guardava no bolso do sobretudo e pediu que eu guardasse bem.
Uns dias depois o prédio verde evaporou. Ninguém ouviu nenhum barulho, nem sobrou entulhos, nada, simplesmente o terreno amanheceu limpinho, e o velho nunca mais foi visto. Guardei a metade do medalhão como prometi que faria. Estudei feito louco porque pobre tem pouca opção na vida e consegui fazer minha graduação em física na capital. Me tornei mestre, depois doutor e passei a coordenar um laboratório de pesquisa de micropartículas que se decompõem e recompõem em outro tempo/espaço.
No fundo eu queria descobrir se era possível viajar no tempo mesmo. Aliás, não fosse o meio medalhão, eu acharia que tudo aquilo foi só uma história que alguém inventou.
Quando o velho já era eu, uma de minhas colegas me avisou que meu casaco no armário do instituto ia criar teia de aranha, de tanto tempo que já estava lá. Não lembrava de ter deixado casaco por ali e senti meu coração disparar – ou parar – quando dei de cara com um sobretudo laranja. Levei pra casa com os braços doloridos da força que eu fazia para ele não escapar de mim. Sei lá, se esse casaco apareceu do nada no armário, podia muito bem simplesmente sair correndo.
Deixei ele sobre uma poltrona enquanto os pelos no meu queixo iam crescendo até formar um vistoso cavanhaque. Num sábado à noite, aparei a barbicha num formato triangular e vesti o sobretudo. E então eu o vi no espelho. Embora sorrisse, eu não sabia se meu sentimento naquela hora era de medo ou de pânico absoluto.
Só sei que meses depois um maluco foi eleito e nosso instituto teve as verbas cortadas. Não pudemos sequer centrar nossos estudos para colaborar com colegas na pesquisa da vacina da tal doença que o velho tinha nos contado, nossos equipamentos não funcionavam sem a luz que foi cortada sem aviso e ficamos sem o mais básico para trabalhar.
Ficou insustentável. Na iminência de um golpe de estado, nos munimos de tubos de ensaio com gás – nada letal, mas nada agradável também – e fomos às ruas. Pouco antes do ataque que daria início à Guerra Civil, encontrei num bolso do sobretudo laranja um pedaço de metal. Era meio medalhão. E encaixava perfeitamente com a outra metade que eu carregava comigo desde o encontro com o homem do prédio verde.
O encontro comigo.
Eu estava pronto para vencer a guerra.
Maya Falks é escritora, publicitária, jornalista e estudante de Letras, é autora de 5 livros e idealizadora do projeto Bibliofilia Cotidiana.