PARA FALAR EM LECCE – GRAZIELA JACQUES PRESTES

“Quis ut deus”. São Miguel Arcanjo saindo do painel todo em bronze, com a espada erguida e o inimigo dominado. Passei uns bons minutos magnetizada pela imagem. Queria estar no lugar dele ou ser defendida por ele, o Protetor da Igreja, o Guardião dos Agonizantes, o príncipe defensor das crianças. “Quem é como Deus?”, a pergunta retórica simbolizada por São Miguel é um convite à humildade.  

Impactada com a força, com o contraste entre o bronze escuro e a pedra calcária clara, me ajoelhei, no meu último dia em Lecce, na Itália, e rezei em silêncio, na Chiesa del Carmine, Igreja do Carmo. Não sei muito bem por que ou para quem, mas por tudo e por nada, pela pequenez e pela grandiosidade da vida, pelo presente divino de estar viva e de retornar para casa.

A chuva tinha parado e o sol se abrira em todo seu esplendor. Sob o azul celeste, eu olhava para as pinhas gigantes na fachada da igreja em um barroco considerado “maduro” para os padrões da cidade. Enquanto a Basilica di Santa Croce, uma das principais atrações, havia sido “alucinada e alegoricamente” criada pelos irmãos Antonio e Giuseppe Zimbalo ao longo dos séculos XVI e XVII; a Chiesa del Carmine havia sido projetada por Giuseppe Cino, que falece, e logo por Mauro Maineri durante o século XVIII, sob encomenda das irmãs Carmelitas. É mais calma e convidativa. Entrei.

2

Levo tempo para elaborar situações que me entristecem, apesar de não ser mais uma jovenzinha. Um vizinho de longa data, com quem troco as saudações diárias e os comentários sobre o tempo, me ajuda todos os dias com sua atitude positiva. Ele é psiquiatra. Me via invariavelmente às 7h da manhã aguardando minha condução para o trabalho. Toda arrumada. Casaco, lenço, sapato, calça plissada, maquiagem, pasta de couro na mão. Meu nome é Anelise e estou desempregada há um ano e meio. Vários colegas também. Sou uma ex-professora universitária de um curso em extinção. Poucos se atrevem a cursar as Licenciaturas e, sem os incentivos federais, os alunos debandaram. A universidade voltou a ser um lugar para poucos. Inclusive para mim.

No ano em que ingressei em Letras, houve um bruto escândalo quando um professor que estava se aposentando disse em entrevista que o curso tinha acabado. À época, fiquei sem saber ao certo o que significavam aquelas palavras. Olhava ao redor, via os professores novos entrando, outros fazendo pós-doutorado no exterior, parecia estar funcionando a engrenagem. Mais tarde, pude entendê-lo. Ele representava a elite de uma sociedade que estava se retirando do curso. Ainda havia remanescentes, sobretudo senhoras que, como minha mãe, batalharam por independência.

A instabilidade política bateu à porta das universidades, as demissões estavam ocorrendo e nada era noticiado. De alma, sou uma velhinha: tenho saudade do tempo em que os funcionários permaneciam em uma mesma empresa por décadas. Parece que havia humanidade. Em uma das universidades em que trabalhei, fiz como aquele personagem que abriu os braços ao inimigo e foi morto na primeira trincheira. A cada história que ouvia, mais me assustava. O senhor que desceu até a sala dos professores para comemorar seu aniversário e encontrou uma festa de despedida. A senhora demitida dois anos antes da estabilidade para se aposentar. Uma professora-editora teve sua revista cancelada, e, assim que buscou novo emprego, a revista voltou a circular. Comecei a me comportar mal, esperando minha vez, e ela veio. Mas eu estava preparada, já tinha também me realocado.

A minha derradeira demissão pareceu uma conversa entre amigos: agradecimento, elogio e despedida. Devem não querer escândalos. Não os faço. Tenho horror a eles. Na primeira demissão, não. Era véspera de Natal, a coordenadora furiosa, soltando fogo pelas ventas. Quando eu ponho a mão no joelho dela e, calmamente, começo a dizer tudo o que penso sobre uma universidade, gradativamente, ela foi baixando o volume da voz, com o olhar perdido em direção à janela. Enfim, estávamos conversando.

Era proibido falar explicitamente. Havia punições: perda de disciplinas, perda de horários, diminuição do salário. “Ane, tu falas muito pouco para o que tu sabes”, ouvi de uma colega ao término de uma reunião de colegiado. Eu tinha medo, ficava petrificada. Foi danoso. Diante do meu silêncio, vieram os covardes a fazer humilhações. Um deles encontrei anos mais tarde, em outra universidade, em uma versão totalmente repaginada. Quando me viu, empalideceu e, vendo minha boa relação com a coordenação, imediatamente, em postura higiênica, se desculpou. O mesmo puxa-saco de sempre. Desprezo, mas não revido. Sou demasiadamente católica nesse quesito, dou a outra face. Não é uma atitude inteligente no mercado selvagem.

Provavelmente, a gota d’água da minha desestabilização tenha sido o doutorado. Me senti o capitão do Titanic, ciente do naufrágio, desesperado, angustiado. O que seria uma coroação do conhecimento tornou-se a porta de entrada para todos os infernos astrais. Doutorado inconcluso, demissão, desemprego foram determinantes para que eu me perdesse de mim mesma. Sentia-me absolutamente ultrajada. Agora, não. Agora me sinto aliviada: “Ufa! Errei! Me libertei!”. Agora olho para os lados, ouço o vento e o latido do meu cão me chamando para passear.

No último ano de trabalho, me dei alguns presentes, algumas viagens, e é sobre isso que vou falar aqui. Ou não.

O primeiro deles ocorreu no meu estado, na província sul-rio-grandense, onde pude rever meus professores de formação e fazer tietagem, ter livro autografado, ouvir e ser ouvida por alguns quartos de hora. As discussões e aprendizagens nos congressos são oxigênio para as mentes que não se cansam de pensar e imaginar novos horizontes.

O segundo ocorreu em São Paulo, na Unicamp, e foi emoção do início ao fim. Olhares e atitudes vorazes. Reencontros carinhosos com profissionais com quem já tinha trabalhado na capital federal. Apresentações de pesquisas de ponta em ricos contextos. Apresentações a professores renomados, que enviaram saudações a estimados mestres do sul.  Encontros com colegas de graduação. E um minicurso intercultural com um professor estrangeiro, com quem, além de aprender um bocado, pudemos compartilhar experiências e afeto, inclusive na roda de bar à noite. Era tudo que queria viver.

O terceiro quase não aconteceu. Eu tinha desistido duas vezes, pois exigia um aporte financeiro considerável e estávamos em ano de crise, com as demissões já batendo à porta. No final de um atendimento bancário, o gerente disse: “Mais alguma coisa que eu possa ajudar?”. Ao que respondi: “Não. Obrigada. Quer dizer, eu tinha de fazer uma viagem para a Itália, mas acho que não vai ser possível”. O crédito saiu na hora. No fim da tarde, ele me liga avisando para passar no banco a fim de assinar os papéis. Me apavorei. E agora? E se eu fosse a próxima a perder o emprego? Era um congresso enorme, durante o qual reveria vários colegas e faria mais contatos. Além disso, conheceria pessoalmente um renomado estudioso que tinha aceito meu trabalho em seu Simpósio. O primeiro item da mala foi o livro dele para ser autografado: “À Anelise, com quem compartilho os ‘mistérios’ da linguagem, com admiração”. Deus do céu! Emoção sem fim! “Ó! Ele conhece seu trabalho, viu?!”, me disse uma orientanda dele. “Nossa! Como pode?!”, pensei. E fiquei olhando-a com meu sorriso simpático, como sói acontecer quando não sei o que dizer.

3

“No salto, gurias.” Minhas amigas e eu dizíamos quando um namorado nos dava um fora ou quando víamos a namorada nova dele ou quando e quando e quando. “No salto, gurias.” Lecce fica no salto da bota italiana, na Península Salentina, bem ao sul, fora da rota turística mais tradicional, embora repleta de viajantes, sobretudo franceses. Eu os admirava a distância em seus grupos maduros, jogando conversa fora, em um interesse de dar inveja sob a amarela luz dos restaurantes.

De Roma a Lecce, você pode chegar de avião, descendo no aeroporto da cidade de Brindisi (a cerca de 30 km), ou de trem, como, por economia, eu fiz. Somando as esperas nos aeroportos e na estação férrea, levei mais de 24 horas para chegar ao “caldeirão mais cosmopolita da região de Puglia”, Apúlia em português. O voo transatlântico não havia sido dos melhores: uma caixa de metal aparafusada no chão impedia-me de esticar a perna direita, lotação esgotada, sem chances para trocas. As horas de sono e a conversa com um estudante intercambista salvaram a travessia. Sonhos são sempre melhores que a realidade.

Ao amanhecer, estávamos chegando no aeroporto Fiumicino ou Leonardo da Vinci. Amém. Amém coisa nenhuma. Quando vejo minha mala na esteira, respiro fundo. Não havia por onde pegá-la. Não conseguia imaginar o que teria acontecido. Um sapateado flamengo talvez. Alças, rodinhas, tudo dependurado, em abano como a fitinha colorida de identificação. A fila no guichê de atendimento da companhia não era pequena, fiquei esperando a minha vez. Tive tempo de observar o “modus operandi” e o que ofereciam como solução. “A senhora pode preencher esta ficha e receber o reembolso em seu país”, me informou a funcionária. “Ahã”, pensei, “preciso de uma mala agora”. Com jeito, fomos nos entendendo e ela me ofereceu outra mala – gigante para quem tinha planejado viajar de trem, mas aceitei. Depois morri de vergonha vendo os passageiros se desviarem dela no corredor. Fiz que não era comigo. Resolvida a burocracia, enquanto dirigia-me ao banheiro a fim de realizar a transferência dos meus pertences, comecei a rezar e a pedir que a energia ruim que caía sobre mim evaporasse de uma vez.

Há um trem, o Leonardo Express, entre o aeroporto e a estação central de Roma, a Termini. Tudo pode ser comprado com antecedência desde a cidade onde estamos. Foi assim que uma querida amiga de uma agência de intercâmbios me auxiliou. Obrigada, Fê. “Não esquece de validar o tíquete antes de entrar no trem. Não esquece, senão terás de pagar uma senhora multa na mesma hora”, superadvertiu. Certo, na ida, validação efetuada. No dia da volta ao Brasil, entrei e não tinha ninguém na cabine de validação. Será que teria de ter usado uma das máquinas? O trem chegou e embarquei. Daqui a pouco, um norte-americano exaltado xingava o fiscal de passagens, que estava com uma maquininha de cartões na mão. Ele também concluíra o mesmo que eu. Estava furioso, dizendo que ia pagar a multa, mas que não estava correto. E teceu aquelas ofensas de ser superior. A esta altura, eu estava suando frio, com meu tíquete à mostra. Pronto. Agora sou eu. O fiscal se virou para mim, não disse nada e simplesmente validou meu tíquete. Meu queixo caiu.

O trem de Roma para Lecce sairia dentro de umas cinco horas. Lutei contra o sono em uma estação movimentadíssima, caótica e com poucos ambientes para descansar. Em terra estrangeira, nunca sabemos ao certo quais riscos estamos correndo, ou mesmo se estamos correndo algum. Vá lá. Ainda mais calma nessa hora. Só ficamos sabendo o número da plataforma minutos antes do embarque. Ansiosos, os passageiros ficam olhando para o painel acima de tudo e de todos. Uma senhorinha com um chapéu longo de praia chama a atenção, parece carregar nele a esperança de viagem. De repente, minutos antes do embarque, aparece o número da plataforma e se dá o estouro da boiada. No que sentei na minha poltrona, ouço um educado “Scusa. Questa è la tua poltrona?”. Olhei para as pessoas ao redor bem vestidas e penteadas e não foi preciso nem verificar meu bilhete. Estava no vagão errado, o da primeira classe. Como é ruim alguém te olhar como se quisesse passar a perna.

4

Chegar de mansinho. Chegar chegando. Chegar arrasando. Chegar atrasado. Chegar aos trancos e barrancos. Chegar abafando. Chegar alquebrado. Chegar pronto. A qualidade da viagem define o viajante. A fé emana das montanhas. Cheguei em Lecce em processo de pressurização, em última instância, das incongruências da alma, que ainda não é penada. As longas horas no Trenitalia permitiram trazer-me de volta às minhas emoções. A última dessas viagens havia ocorrido durante a faculdade, após um curso de verão no Uruguai, com a ajuda de toda a família, inclusive de uma tia estimada. Eles acreditavam em mim, no meu gosto pelos estudos. De Montevidéu a Rivera, fui ouvindo Prince em uma tarde ensolarada, pensando, escrevendo, rabiscando, sonhando, olhando aquela paisagem de campos dourados. Pampa “gaucho”. Dessa vez, de Roma a Lecce, parecia estar nos Campos Elísios – não que eu merecesse, mas parecia estar no céu.

Minha professora ria de mim: “Uma típica viajante! Manta, água e jornal!”. Estávamos embarcando para São Paulo, em viagem cultural nipônica. Ri também. Está no gene, está na cultura familiar dos loucos hippies anos 1970. Querida Akiko nos acompanhou de ônibus desde Porto Alegre, passando pela fria Serra do Mar no Paraná, sem precisar, pois poderia ter ido de avião. Nós, não. Tudo contadinho. Mas ela estava disposta a nos formar professores de língua japonesa. Idealizar e desistir não é o caminho. Magoa muita gente. Todas as gentes, inclusive, claro, a primeira pessoa.

“Primeira Pessoa” era o nome do programa de entrevistas idealizado e apresentado pela jornalista Ivete Brandalise na TVE. De uma educação e conhecimento inspiradores! Sem falar na sua voz rouca “trè charmante”. Muito amendoim jantei ouvindo as vozes da capital. Noutro dia, acordava e ia para a faculdade ouvir outras vozes lendo as seculares. Havia tempo suficiente para ler e estudar. Não sabia bem o que fazer com o excesso de zelo. Fugi. Me enfiei em Porto Alegre. “Proteger demais desprotege”, dizia um professor de olhos grandes. Na inocência, tinha dúvidas se falava para mim ou não. De qualquer maneira, meu Titanic já havia zarpado do estaleiro de Belfort.

Reengenharias. Realinhamento dos planetas, reeducação alimentar, reprogramação mental, tudo se resume a recomeçar. Sabemos, não é fácil. Ouvir as dores, dar vazão, reabastecer-se em sua essência não é café pequeno não. Se existem sinais, como dizem os esotéricos? Se são apenas coincidências, como dizem os racionais? Não sei. Ninguém sabe. Mas que foi reconfortante ler a crônica da psicanalista Diana Corso sobre viajar de trem enquanto eu fazia minha primeira viagem, ah, meu amigo, foi demais!

No início da noite, chegava ao meu destino. Estaria meu hospedeiro me esperando? Nos entenderíamos? Em que língua falaríamos? Como seria o Bed & Breakfast? E o congresso?

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Teto abobadado é uma característica da arquitetura medieval de Lecce. O do meu quarto também era assim. Pé direito altíssimo, branco alvíssimo. Tenho de lhes dizer que estou um pouco brincando com os superlativos devido a uma experiência que tivemos meu marido e eu em Nápoles. Estávamos viajando em grupo para Capri, e, logo que nosso guia local mencionava algo, dizia que era o melhor, o maior do mundo, carregava nos “íssimos” e achamos tudo muito engraçado. Em Lecce, não é assim. Há uma discrição no ar, um andar desestressado, mas não tolo, mas não ingênuo, afinal, é uma cidade de estudantes. Università del Salento. Pelas ruas, encontram-se várias casas de artes e artesanatos, em especial aqueles com motivos marítimos. Porto Cesareo, Otranto e Gallipoli são praias requisitadas, mas não estava lá no verão. Outubro no Velho Continente.

À noite, a cidadela medieval, em formato de coração ou de um diamante, como preferir, estava com os cafés, bares, sorveterias, restaurantes lotados. Quando voltava do congresso, passei por uma casa onde um homem fazia uma encenação. A música altíssima e ele pintando. Alguns fortuitos espectadores, eu entre eles. Tudo era muito artificial, não convencia, mas rompi em lágrimas. Aqueles braços fortes em movimentos velozes me atingiram em golpe cruzado. O mesmo havia ocorrido em São Paulo quando assisti ao coral da USP. Sem que o público percebesse, coralistas sentaram-se em algumas poltronas da plateia, e gota a gota a chuva foi caindo de suas vozes. Surpreendente e arrebatador. Abri a torneirinha do choro incontrolavelmente. Me mandava parar e nada. Algo em mim queria sair.

“Signora Anelise?”, abordou-me meu hospedeiro, senhor Luigi. Cumprimentos, boas-vindas, comentários sobre a viagem, o tempo e logo chegamos ao B&B. Um charme só. Recém-reformado, limpinho, cheirosinho, uma gracinha. “Dei sorte”, pensei, “as fotos no site faziam jus”. A esposa do senhor Luigi nos aguardava, e recebo um amistoso convite para irmos a uma pizzaria. Pensei nos gregos, que, quando recebiam um viajante em casa, ofereciam-lhe banho, comida e descanso. Era tudo de que eu precisava. Esforcei-me para encontrar minha forma mais educada de uma recusa e declinei do convite. Não havia como. Mais de 24 horas de viagem. Dei-lhes o presente que havia levado, o DVD “Estética do Frio”, de Vitor Ramil, um retrato da cultura musical do sul do Brasil. “A voz de um milongueiro não morre, não vai em nuvem que passa.”

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Sabe quando se está tão cansado que se cambaleia pelo cômodo? Era assim eu depois do banho relaxante, tentando arrumar minha roupa para o dia seguinte, minha bolsa, meus mapas. Se houvesse uma profissão de ler mapas e conduzir pessoas, estaria feita. Não sabia que gostava tanto até meu marido e eu nos aventurarmos por alguns cantos desse mundéu veio. Definíamos o que queríamos ver em uma cidade, o tempo que tínhamos e os pontos mais próximos. Mas Henri sempre surpreendia. Sair do lugar comum era uma marcação de estilo, e eu o admirava. O Museu Rodin em Paris, a Coleção Frick em Nova Iorque, o Teatro Negro em Praga, o Museu Bauhaus em Berlim. Eu tinha orgulho de nossas pretensões estéticas e literárias. Não precisava. Bastava curtir, mas eu não sabia. Racional e objetiva. Nem tanto. Nos álbuns estão as recordações, um guardanapo, os tíquetes de metrô, as pétalas de tulipa, os postais. As capas de chuva do “Museum Quartier” em Viena, guardei-as por anos. Quando tocamos um objeto é como se pudéssemos sentir o que as pessoas sentiram, rememorar nossas passagens.

Até hoje me pergunto por que era tão importante para Henri nossas viagens em tão pouco tempo de relacionamento. Parecia que ele queria viver tudo o que não tinha vivido. Brincando, eu dizia a ele para não me levar à Grécia, porque eu não conseguiria voltar. Por anos a fio, durante a solidão da faculdade na selva de pedra, assistia ao filme “Shirley Valentine”, de 1989, dirigido por Lewis Gilbert e protagonizado por Pauline Collins, na extinta TV Guaíba. O canal sintonizava mal, a imagem, às vezes, piorava, mas eu não perdia uma reprise. E eram inúmeras. Há quem resuma “Shirley Valentine”, escrito por Willy Russell, como “o resgate do amor próprio”.

 Na dúvida, nunca fomos à Grécia. Quando nos conhecemos, estávamos os dois enlutados. Ficamos um ao lado do outro em silêncio, absorvendo. Dizemos que nos salvamos. É verdade. Eu não tinha compromisso com ninguém. Uma vez, meu pai ficou três meses sem falar comigo porque eu não quis casar com um “bom partido”. Passados os anos, ele me deu razão. Já era tarde. Eu não acreditava nem um pouco na minha capacidade de fazer alguém feliz. Henri foi paciente e me ensinou a cuidar, zelar, amar. Depois que tivemos nossa primeira filha, minha irmã me disse que eu tinha melhorado um pouquinho, ficado mais afetuosa. Salve. Salve.

Dormida na cama, como dizem os espanhóis, naquele quarto branco e silencioso, perguntei-me onde estava Henri. Era a primeira vez que viajava à Europa sem ele. Tínhamos planejado ir juntos, mas, devido à crise que se iniciava no Brasil, ele recuou. Fiquei com aquele gostinho de lua-de-mel. Imaginei-o ali comigo, reclamando de coisa nenhuma.

7

O cheirinho do café matinal já estava no ar. Senhor Luigi conversava com uma família cujo filho iria ingressar na faculdade de enfermagem. Estavam aqueles dias em Lecce para encontrar apartamento. Não havia como não me lembrar dos meus pais, fazendo o mesmo por mim. Sei que é horrível dizer, mas eu tinha um medo enorme de morar na casa do estudante. Tinha aprendido a viver em família, com tios e primos, com brigas, mas com muito amor no olhar. Não lembro bem como encontramos uma senhora que recebia universitárias, a Dona Raquel, e foi amor à primeira resmungada. Ela poderia ter sido uma das personagens de Érico Veríssimo. Forte. Um dia, o marido farmacêutico chega em casa e diz ter dado “a” injeção na Fulana de Tal. Foi a gota d’água. Sabedora de si, desquitou-se. Aguentou o rojão de cabeça erguida, embora não pudesse mais frequentar a igreja e os filhos passassem por discriminação na escola. Não havia como não amar Dona Raquel, sua voz rouca de fumante, seu feijão cremoso, seus palitinhos de queijo, seu mau humor em dias quentes, seu livre pensar em noites enluaradas. Quando as amigas vinham visitá-la, o lustre de cristal e a prataria remanescente ficavam ainda mais brilhantes. Algumas a questionavam por que não exigia suporte financeiro dos filhos. Embrabecia. Pés fincados no chão, dizia: “Eu não!”.

“A senhora é professora universitária?”, perguntou a mãe do garoto, “No Brasil?”. “Sim, no Brasil”, respondi. E ficou aquele constrangimento no ar, aquele abismo entre Primeiro e Terceiro Mundos. Logo o assunto enveredou para a política e a corrupção em nossos países. Senhor Luigi, muito educado, insistia que na Itália era muito pior. Estavam cansados dos escândalos de corrupção. Perguntei pela Operação Mãos Limpas ocorrida na década de 1990 e logo ouvi um “Ma che?!”, como se não houvesse resultados. Eles não sabiam da Operação Lava-Jato, do processo de Impeachment contra a então Presidente Dilma Rousseff e dos processos contra o ex-Presidente Lula. Um ano depois de nossa conversa, a cidade de Roma elegia, pelo Movimento Cinco Estrelas (M5C), a primeira prefeita de sua História, Virgina Raggi, uma jovem com pouca experiência política, que prometia romper com a velha prática e resolver problemas básicos, como, por exemplo, a coleta do lixo. Tal como em Pindorama, quedou-se isolada a moça e abutres avançaram sobre as lixeiras.

“Prova!”, ofereceu orgulhoso o senhor Luigi, “È il dolce tipico di Lecce”. Uma gostosura. Um bolinho em formato de canoa, dourado, macio, com recheio de creme. Simples. Tão simples como o melhor azeite do mundo. Todos os dias, fazia meu desjejum com um “pasticciotto”, uma taça de café com leite vaporizado e uma fruta. “Coma mais”, dizia ele. Não era necessário. Só queria experimentar lentamente cada momento da viagem. Talvez meu tio avô estivesse ali comigo, me dizendo para ser elegante e não cometer excessos.

Finalmente era chegada a hora de pôr o pé na rua. Primeiro dia em Lecce, a bela cidade barroca de Puglia. Uma boa pedida é hospedar-se na cidadela medieval, assim você pode fazer as visitas a pé, desfrutando do clima ameno de quem está nas cercanias do Mar Adriático e do Mar Jônico. Dispunha da manhã para encontrar o Hotel onde ocorreriam os principais eventos do congresso, inclusive a abertura às 14h, com a presença do Prefeito. Que prestígio! Quando o mesmo ocorreria no Brasil? Um prefeito comparecer em um evento de Letras?!

11h10min marcava o relógio do primeiro monumento que vejo ao sair do B&B. Conversamos seu Luigi, a família e eu! O prédio estava fechado para reformas e, na volta, quando perguntei por quê, houve um certo incômodo. Na sagrada internet, encontrei um texto que trazia à baila a importância dessa construção do início do século XIX para os cidadãos de Lecce, onde se formaram gerações desde 1816 até 1960. Ali já havia funcionado um Convento, um Liceu, uma Faculdade e uma Biblioteca. O argumento central do texto era o bem cultural que representava o prédio, a História com agá maiúsculo que carregava. Nas entrelinhas do meu italiano rudimentar, podia-se ler que algum ato de vandalismo ou alguma apropriação ilegal por parte de um determinado grupo havia acontecido. Conforme esperado, a situação fora civilizadamente resolvida, com parte do prédio sendo restaurada. Enquanto isso, na capital de um determinado estado do sul do Brasil, um Colégio Estadual por onde passaram gerações de normalistas, em uma das principais avenidas, está a ruir, mal intencionadamente fechado para reformas que nunca são concretizadas.

Uma vez, em um curso de formação docente do qual participava, tínhamos de descrever avaliações e/ou provas inapropriadas que nos tinham sido aplicadas como alunos. Puxei da memória, me esforcei, mas não me ocorreu caso algum. E olha que tivemos uma formação bem exigente em casa. Fomos educados para criticar, para superar, para enxergar o que ninguém está enxergando. Lá pelas tantas, me percebi meio indignada com aquela questão porque pressupunha que, certamente, teria havido algum problema. Me pareceu ofensivo. Não que não se possa errar, a vida está cheia de erros que contornamos.

Em um congresso internacional em Brasília, internalizei a voz dos pesquisadores norte-americanos: “engagement”. Eles estavam convencidos da formação e da capacidade dos colegas brasileiros e repetiam o mantra de encorajamento. É a questão central apontada pela Unesco no ano de 2017: a sociedade tem de se envolver com a Educação. Todos nós. Depois disso, o principal veículo de comunicação do país iniciou uma campanha de valorização da rede pública de ensino, exibindo os casos que deram e dão certo.

A desvalorização do professor era tema no qual eu não queria pensar naqueles dias longe. Estava exausta. Esgotada com o doutorado ruindo, com a ansiedade batendo à porta da sala de aula. Não aguentei o tirão.

No meio dessa construção em forma de “u”, uma pequena praça, “piazetta”, reverenciava o primeiro poeta italiano agraciado com o Nobel de Literatura em 1906, Giosuè Carducci. Em uma tradução livre: “Cai bem estar entre as esperanças e as memórias calmas. Cai bem estar na aragem do tempo do mar”.

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Escrever é sempre um risco. Você não escreve tudo, não diz tudo, mas faz parecer que já está pronto. Não está. Cada lauda é, de fato, um caminho sem fim que leva a um ponto de ilusão. Não há fechamento para a alma que caminha, que busca não se sabe quais ares, quais alegrias e quais tristezas. Inventa-as. Sofre. O peso da existência drummondiana.

Na superfície, existe o que vemos. Relevo para uns, planície para outros. A importância gestáltica, o que acaba nos construindo em profundidade. No meu caderno de poemas, escrevi “No verso”:

descobri que sou japonesa

adoro começar meus cadernos pela última página

dá-me a ilusão de que a obra já foi escrita

que agora é só diversão e leveza

onde não se deveria estar

mesmo assim, assim feliz

tão feliz que não cabe na capa

felicidade é estar no verso

Sou um bicho-homem exaurido. Pela manhã, cumprimento minha vizinha também desempregada, vou no supermercado e encontro outra ex-colega forçada a se aposentar. À tarde, encontro uma conhecida cujo irmão também foi demitido. Pelo telefone, para não afundarmos de vez, uma amiga de coração reitera o contexto sócio-político em que estamos inseridas. Na rede social, uma professora chocada com sua demissão escreve uma longa carta aberta na qual discorre sobre sua competente e exemplar carreira acadêmica na sala de aula e na pesquisa. Aplaudo-a. Eu e tantos outros. É preciso ser demasiado forte quando se vê o mundo ruir. Não se trata apenas de uma questão pessoal, do por que eu. Espanhóis da década de 2000 vieram ao Brasil fugidos da alta taxa de desemprego. Dei aulas particulares para vários deles, casais jovens. Por que não fui para Portugal, como tantos brasileiros fizeram?

Muito feio ter de dizer o que se fez, o que se é. Galho caído no chão.

A jornada em Lecce estava só começando naquela manhã amena de outono. “Vamos nos perder por aí!”, me vieram as palavras de Henri e seu sorriso discreto. Em quantas ruelas medievais havíamos caminhado! Medo em Barcelona à noite! Frio na noite do Carnaval de Veneza! Os casacos brasileiros não davam conta de nos aquecer, enrolamos as mantas pela cabeça! Correndo pelas ruelas no frenesi das fantasias, encontramos quentão! Será? Bendita espichada de olhar! Viajantes curiosos!

Seguindo o caminho de pedras seculares pelas vias Cairoli e Paladini, cheguei a uma igreja de escuro madeirame, como em algumas igrejas barrocas brasileiras, especialmente as mineiras. Entrei por uma porta e, quando saí pela outra lateral, deparei-me com a praça principal de Lecce, aquela que é iluminada à noite e está em vários suvenires, a Piazza del Duomo. Uma das poucas praças do mundo “fechada”, com somente uma pequena abertura para a via Vittorio Emanuele II, repleta de lojas e restaurantes. Ainda sem o mapa turístico de Lecce, deduzi erroneamente que aquela era a Basilica di Santa Croce. Só percebi meu engano quando comecei a escrever sobre a viagem já aqui no Brasil. Uma pena, pois deixei de visitá-la. E estive bem perto dela quando fui até a Villa Comunale, já fora da cidadela medieval. Detalhe: no Centro de Informações Turísticas na via Vittorio Emanuele II, você consegue gratuitamente o mapa turístico de Lecce.

Efetuei a inscrição no congresso em janeiro e desde lá vim organizando onde ficaríamos, onde iríamos. Henri ainda não tinha desistido de ir. Quase vinte anos depois de nossas primeiras viagens, estávamos empolgados. Na internet e nos guias, buscava informações sobre Lecce, uma cidade sobre a qual não tinha ouvido falar. Como seria? A Villa Comunale aparecia com frequência, em uma arquitetura da década de 1920, me parecia. Com uma sombrinha azul, percorri suas pontes, o parquinho para as crianças, o café e tentei imaginar como seria com Henri e nossos filhos ali.

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“Florença do Sul”, “Lecce Barroca” são títulos da cidade de cerca de 95.000 habitantes. Calma. Aprazível. Segura. Limpa. Turística. Estudantil.  Caminhei a esmo. Meu coração aperta quando me pergunto se não estou fazendo isso com minha vida. Se não estou somente caminhando, feito uma criança que aprende a andar e anda, anda, anda, maravilhada, deslumbrada e perdida. De alguma maneira, Henri conseguiu me resgatar, mas sei que é pesado. Não se carrega um adulto. A dignidade está no trabalho, mas implodi o meu. E agora estou soterrada em assombros e devaneios. Medos e inseguranças. “Pagar a conta do analista para nunca mais ter que saber quem eu sou”. Salve, Cazuza!

Apesar das características essenciais do barroco, cada lugar desenvolve o seu. Em Lecce, a Basilica di Santa Croce, que não visitei, é tida como sua expressão máxima, ornada com figuras aflitivas e insanas, que parecem representar o lado demoníaco do mundo. Horripilantes. Em Minas Gerais, em minha modestíssima opinião de leiga viajante caminhante, as figuras parecem pedir piedade, perdão, parecem ajoelhar-se perante o Ser Supremo; enquanto o barroco em Lecce parece flagrar a instabilidade emocional experimentada durante a Idade Média, o que contrasta drasticamente com a tranquilidade atual da cidade. Senti saudades da minha terra natal, também pacífica e próxima do litoral.

Outro legado da História em Lecce é a festa “Notte della Taranta” (“Noite da Aranha”), celebrada em agosto, em Melpignano, a cerca de 30 km. No guia da Lonely Planet, encontramos a seguinte explicação: “A dança ‘pizzica’ se desenvolveu do ritual ‘tarantismi’ (tarantismo), uma dança para livrar o corpo do veneno da tarântula. É provável que essa dança histérica fosse um símbolo da psicose social e uma válvula de escape para indivíduos vivendo em condições sombrias e reprimidas expressar seus desejos, esperanças e sofrimentos. Hoje a ‘pizzica’ (que pode ser uma dança bem sensual) é sinônimo de festa, com noites de muita dança em várias cidades do Salento por todo o verão, que culminam na festa de Melpignano”.

Que caminhos e soluções você escolhe, eu escolho percorrer?

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Os caminhos sinuosos de uma cidadela medieval parecem registrar o modo tortuoso de pensar; e, feito espectador de uma comédia shakespeariana, acabo me divertindo com o dobra aqui, dobra ali e vai parar não sei onde. Avista-se um santo a cada esquina, até na oficina de bicicletas. Mentalmente vou visualizando o mapa da cidade, adoto pontos de referência e me paro para apreciar a vida que se levantava naquela manhã de fresca aragem. Me encanta o verdureiro passando em seu minicarro, conversando com os clientes de longa data. A senhora rabugenta da casa de massas que não quer sair na fotografia de uma estúpida turista. O casal despreocupado a namorar. A menina de bicicleta.

A Piazza del Duomo, que tem somente uma entrada, em tempos de guerra, era totalmente fechada aos ataques externos. As próprias construções que a circundam (a Catedral, o Seminário e o Palácio Vescovile) serviam de muralha. Nas casas, em porões profundos, em pedra, os medievos se protegiam. Lecce sofreu várias invasões ao longo dos séculos – foram os gregos que para lá levaram as oliveiras -, como também sofreram as cidades da costa do Mar Adriático durante a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais.

Durante o Império Romano, uma das estradas que levavam a Roma era a Via Appia. “O morto também olha de onde está enterrado. Olha quem passa na Via Appia”, encontrei em um dos guias. “Não está morto quem peleia”, dizem os gaúchos. Ao final ou início dessa via, está a cidade portuária de Brindisi, que foi alvo de ataques em todas as guerras, devido a seu ponto estratégico, a “Porta do Oriente”, ainda hoje porto de embarque para a Grécia. Já foi governada pelos venezianos, espanhóis, austríacos e os Bourbons. O nome latino da cidade “Brundisium” deriva do grego “Brentesion”, que significa “cabeça de veado”, fazendo referência ao formato do porto. Foi aqui que, em 1991, atracou um navio com 4.000 albaneses, sem água e comida, em frágil condição. No total, mais de 10.000 refugiados na Itália quando estouraram os conflitos na antiga Iugoslávia. “Por que Itália?”, me perguntei. Porque há um histórico secular de invasões entre esses países, desde o tempo do Império Romano até Mussolini. A balança da vida.

Da Piazza del Duomo, tomei a via Palmieri em direção à Porta Napoli a fim de chegar até o hotel onde ocorreria a abertura do congresso. Comecei a avistar as bolsas de identificação e a ouvir português. O dia estava ensolarado, naquela luz dourada que só a Itália tem. “Oi, Ane!” Que surpresa bacana! Era a professora Mercedes de São Paulo, com quem já tinha feito cursos e até trabalhado em um projeto federal. Sinônimo de inteligência e educação, uma “Papa” da área. Comporia uma das mesas-redondas. Me vira grávida nas duas vezes. Profunda admiração e carinho. “Não almoçamos ainda. Vamos por aí”, ela disse. Recuei. Fiquei tensa com a possibilidade de almoçarmos todos juntos. “O que vou dizer de inteligente, sincero e agradável? Não consigo tudo isso”, me passou em um milésimo de segundo. Deus me deu inteligência lógica, talvez, mas inteligência emocional… venho penando para aprender. Meu medo me paralisa e perco momentos de felicidade particular ou profissional. Deixei de escrever um artigo com a professora Mercedes por medo. Deixei de ganhar uma bolsa para o Japão por medo. Deixei de ir no coquetel de lançamento de uma coletânea de poemas da qual participava por medo. Deixei de terminar o doutorado por medo.

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Saindo da cidadela pela Porta Napoli, uma rua me despertou a curiosidade. Bonita, ampla, com floriculturas, oleandros de cores variadas pelos canteiros. Era a viale San Nicola. Ao fundo, avistei uma área verde e fui caminhando. No portão em colunas neoclássicas, lia-se “Per la pace delle umane ossa risorgiture”. Entrei e uma alameda de ciprestes me pareceu convidativa. Altos, traziam sombra, frescor e perfume. O caminho era longo, meio desértico, mas avistei um grupo de brasileiros e me encorajei a seguir em frente. Logo cheguei à capela em formato hexagonal, com arcos em toda a volta. Os raios de sol batiam como em um filme. Estaria eu mesma me velando? Estaria antecipando a morte que me rondava?

Escrevo aqui para existir em algum lugar. Minha matéria é a palavra. Meu chão é o texto. Sou a lágrima que me escreve. Tão triste quanto essa capela mortuária.

Uma grande área em frente à igreja barroca do cemitério homenageava os combatentes da Primeira e Segunda Guerras Mundiais: soldados, marinheiros, aviadores, Callegarini, Conte, Carlucci, Benedetto. Fiz uma panorâmica e filmei em 360°. Um silêncio reverencial. Todos os filmes e leituras vêm à cabeça. Todas as histórias de amigos e familiares. Respeito e consideração.

À esquerda de quem sai do cemitério, peguei a via Calasso até a rótula da Piazza del Bastione, e o Hotel Tiziano estava logo à esquerda. Identifiquei-me, recebi a bolsa e o crachá. Circulei, mas não encontrei conhecidos. Bati uma foto para registrar o momento e fui almoçar ali por perto, na Birrosteria Monetti. Às 14h, na sessão de abertura, as autoridades estavam presentes: prefeito, reitor, diretor, coordenador, espantados com o número de pesquisadores da língua portuguesa. Esse é um dos objetivos do congresso: levá-lo a cidades onde existem programas de português ligados a universidades, valorizá-los. Uma apresentação musical não poderia faltar, uma espécie de fado com acordeão. Lembrei-me de mim e Henri sentados em um restaurante em Lisboa à luz de velas.

No intervalo, encontrei conhecidos e troquei algumas palavras com uma moça no bar. Por coincidência, a orientanda do coordenador da minha sessão. À tardinha, fui caminhando até o B&B, não sem antes ligar para casa. Minha mãe viera para dar uma força. Obrigada, mãe. Tudo certo. Tudo bem.

Encanta ver as luzes da noite bem posicionadas de modo a valorizar a arquitetura medieval. A primeira vez foi em Paris, deslumbrante. A beleza também nos faz bem. Fui no meu passo a aproveitar o ar, as luzes, o movimento dos turistas e um sorvete na Gelateria Sensi Degli Angeli, da qual virei freguesa. Passei por uma vitrine enfeitada com móbiles, cestos, garrafas em uma mistura de cores vibrantes e palha. Era a Pasticceria Natale, onde dei um jeito de voltar um par de vezes. Botei no mapa.

Os restaurantes estavam abertos, mas ainda vazios. Era cedo. Fui para o B&B. Senti falta de conversar com alguém. Senhor Luigi aparecia, em geral, pela manhã. No resto do dia, ficávamos com a chave e a cozinha à disposição. Na geladeira, água, iogurte e frutas. Muito gentil. Tomei meu banho, descansei e ouvi minha irmã dizer: “Vê se aproveita a viagem, viu?!”. Levantei, percorri os caminhos sinuosos da cidadela e fui atraída por uma música alegre e secular. A porta estava aberta, os arcos até o segundo andar bem iluminados, as paredes claras recém-restauradas. Era uma escola de dança que não se importou em ter uma espectadora de soslaio. Lembrei-me de mim e Henri dançando forró sem parar a noite inteira em um Eta Festão na minha cidade natal. Como éramos parceiros! Boêmios. Varávamos a noite bebendo e conversando. “Ritrovo” era um bar que gostávamos de ir na Cidade Baixa.

Dormi olhando a pinha branca em cima da bancada no quarto. Em Minas Gerais, tinha aprendido que as pinhas eram colocadas nas entradas das casas para dar bom auguro.

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Acordei com o som do vapor da máquina de café. Delícia. Senhor Luigi fazia para nós. “Buongiorno!” “Buongiorno!” Estava conhecendo os outros hóspedes, um casal gay espanhol, turistando pela Puglia. Conversamos na língua deles, e senhor Luigi, falando em italiano, pediu-lhes que eu, por favor, falasse em espanhol com ele também porque assim ele entendia tudo. Me matei de rir. Nunca estudei italiano, só busquei um auxílio na internet para me comunicar com senhor Luigi e combinar minha chegada. Ele, desde o início, educadíssimo. Mas é curioso, já tinha conversado com uma colega sobre isso, nós, brasileiros, parece que conseguimos entender uma palavra ou outra, ou mesmo o sentido geral do que estão falando os italianos; porém, o inverso não ocorre. Talvez nossas vogais abertas, nossos sons nasais dificultem. A verdade é que me encanto com a musicalidade dos dialetos. Já passei por situações em que o falante nativo achou que eu estava debochando, mas adoro me sentir daquele lugar onde estou. “Estrangeira!”, uma vez uma senhora gritou para mim com seus olhos. Até hoje me espanto com a naturalidade com que europeus enquadram as pessoas pelo seu biotipo físico, dentro de seu próprio país. Considero-me legítima herdeira da miscigenação: na minha família, temos olhos azuis, verdes, castanho-escuros, castanho-claros, pele clara, pele escura. Na minha cidade natal, sobrenomes italianos, japoneses, alemães, portugueses, poloneses, todos brasileiros.

No final da década de 1990, o grupo espanhol da Telefónica comprou a Companhia Sul-Rio-Grandense de Telecomunicações, quando a revolução digital foi aqui impulsionada. Porto Alegre ainda não tinha estrutura para receber tantos estrangeiros com suas famílias e necessidades, mas fomos aprendendo. A qualidade dos serviços e a oferta de produtos melhoraram sensivelmente com a abertura da economia. Eu lecionava para um grupo de senhoras espanholas, e uma delas era apaixonada pelo meu sotaque. “Você canta”, ela dizia. Foi quando comecei a prestar atenção no canto açoriano da minha região, e que minha terra estava muito mais em mim do que eu poderia imaginar. Eu, que tinha me autopunido com o exílio, tinha guardado minha família, meus amigos, meus dissabores na minha voz.

Foi nessa época que conheci Henri, o escritor que precisava de uma leitura, uma revisão de seu primeiro romance. Eu estava tremendo de tão nervosa. Ele me aguardou com uma cerveja gelada naquela noite de verão. Empolgado, vivaz, discursava sobre o livro e eu tinha dificuldade em entendê-lo. Aos poucos, fui assimilando sua linguagem literária. Me pegava rindo em vários momentos, apesar do “leve” machismo contido em seu texto. Os encontros profissionais foram se tornando cada vez mais íntimos e o inevitável aconteceu: nos apaixonamos. Eu tinha a sensação de ter encontrado minha família, meu lugar no mundo. Por muitos desafios e desencantos ainda passaríamos, mas, de alguma forma, conseguimos nos manter unidos.

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Passei a mão na mochila com o notebook, a programação do congresso e o mapa de Lecce. Era hora de atravessar a cidadela medieval, de passar por dentro da Catedral da Piazza del Duomo, de cruzar a Porta Napoli e de sobreviver ao cemitério.

Não sei se é a maturidade que te dá isso, ou anos de engolimento de sapos, mas aprendi a reclamar menos e, quando não há saídas, aprendi a reclamar como se não estivesse reclamando – eu, que fora moldada para criar o contra-argumento. Aprendi a apontar com as palavras e a suavizar com a musicalidade da língua. Na frente da pessoa que limpava o B&B, informo a senhor Luigi que o tapete do banheiro não havia sido colocado no dia anterior. Ele pediu desculpas, fiz questão de mostrar que, para mim, não fazia a menor diferença, só queria informar. Ok. Ok. Em terra estrangeira, todo cuidado é pouco. Me vieram à memória todas as ofensas que brasileiros já sofreram no exterior e só pensei que não queria ser acusada de ter roubado um reles tapete de banheiro; mas minha atitude jamais deixou transparecer meu medo.

Henri e eu tivemos momentos de sorte que são contraexemplos aos estereótipos atribuídos a cada país. Na França, por exemplo, com o mapa na mão, cara de perdidos, um gentil “parisino”, como dizia uma ex-aluna minha que odiava os parisienses, ela sendo francesa, nos abordou e perguntou, em francês, claro, aonde queríamos ir. Quando contamos essa passagem, ninguém acredita, mas é a mais pura verdade. Em viagens, as curtas ou as eternas, é preciso seguir as regras da boa convivência, da gentileza a fim de que tudo flua e o tempo seja bem desfrutado. Foi nesse espírito que dei uma sombrinha para o casal de gays do B&B. Por engano, havia levado duas. No dia da chuva, todos pudemos passear da forma como melhor nos aprazia. “İGracias!” “İQue lo pasen bien!”

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No dia da minha apresentação, ainda fazia sol; aquele quentinho suave dourado contrastava com meu desconforto, com uma espécie de marcha fúnebre da minha imaginação. A tese já deveria estar pronta e eu não tinha nenhum orgulho de como tudo tinha se desenrolado. Sucessão de erros por todos os lados, desde a elaboração do projeto; completamente o oposto daquele do mestrado, que virou artigo já de cara. Depois de uma boa olhada nos Power Points utilizados em outros congressos, para o de Lecce, optei por expor as categorias fundamentais com as quais estava trabalhando, exemplos típicos e complexos e caminhos futuros, sem valorizar o achado da pesquisa do mestrado. “Tua dissertação é uma tese”, disse uma das arguidoras na época. “Se fosse eu, já teria encaminhado para transformá-la em tese”, disse outra professora. De fato, deu um problemão. Ciente de todo o iminente fracasso no doutorado, fiquei séria da mesma forma que um médico comunica à família o falecimento do ente querido. Humildemente concentrada, sem nenhum alarde, apresento minha incompletude. Na sala, só estão os apresentadores. Silêncio sepulcral. Um colega dá uma contribuição, outro agradece a participação e é só. Não queria enganar ninguém, segui o roteiro. O último.

Naquele mesmo ano, na Unicamp, tinha falado com pertinência, aplaudida e parabenizada ao final, mas tinha levado para casa o olhar desacreditado e desrespeitoso de um certo professor. Me deixei vencer por ele, por todos que acharam um absurdo minha tese. Me esqueci daqueles que já a citaram e a recomendam até hoje.

Durante a faculdade, como bolsista na Semana de Letras, houve uma ocasião bonita. O anfiteatro estava em uma balbúrdia total, apesar do transcorrer das comunicações. Eu, concentrada, absorta na certeza de que na minha vez não seria assim. E não foi. Comecei a falar de mansinho, a despertar a curiosidade do auditório e pronto, os tinha comigo. Silêncio interessado. Na saída, recebo um elogio de um renomado professor. Às vezes, é uma vantagem se acreditar forte.

No congresso em Lecce, estava sem paixão, apenas em cumprimento do dever assumido. Só não foi pior do que aquela apresentação em que minha própria orientadora detonou minha pesquisa na frente de todos os professores da área. Estava na metade do doutorado, mas tudo terminou naquele dia. Não ponho sentido no conhecimento compartimentado em cerquinhas, sou a ovelha negra da família. Meu ideal libertário ofende as pessoas, dá-lhes a impressão de que não tenho compromisso com elas. Henri é que foi sábio: “És indomável!”, e logo me sitiou, nos sitiamos em nossa psique reanimada pelo beijo do cupido.

As pesquisas daquela manhã, de São Paulo e de Brasília, eram bem interessantes, já conclusas, tratavam das questões linguísticas em diálogo com o ensino. Nos corredores, encontrei colegas da universidade onde estava trabalhando. Saudações protocolares. Em viagem há uma semana, estavam em outra vibe.

Comi um sanduíche onde o pessoal estava indo e não posso esquecer do brasileiro sem dinheiro que puxou conversa com cara de apavorado. Emudeci, abismada. Como alguém poderia viajar assim? Foi estranho. Não ter o trabalho concluso, ter de viajar sozinha, ficar tão pouco tempo na Itália… a estranheza não vinha somente daquele homem. Deixa pra lá. Caminhei pelas ruas de Lecce com a curiosidade que me é peculiar. Busquei presentes para meus filhos, para Henri, meus pais, meus sobrinhos. Bolsinha em formato de elefante, soldados medievais, canetas do Pinóquio, azeite de oliva, lembrancinhas de dias ensolarados, da fresca aragem, das ruelas em pedra, dos turistas em calma passada, do alinhado senhor Luigi, da minha controversa tese.

No meio da tarde, estava de volta à cidadela, seguindo pela via Vittorio Emanuele II até a Piazza Sant’Oronzo, onde ficam algumas das principais atrações: o Anfiteatro Romano, datado do século II d.C, descoberto ao acaso, em 1901, durante as escavações para a construção de uma obra, como costuma acontecer; e a Coluna de Sant’Oronzo, que fazia par com a do porto de Brindisi para marcar o fim de Via Appia. Nessa praça, há cafés, restaurantes, livrarias. Você pode ficar à vontade sem se preocupar. Ninguém vai incomodá-lo.

Umas duas quadras a leste e você estará no Castello di Carlo V, erigido no século XVI ao redor de uma torre normanda do século XII. Para se proteger da chuva intensa ou não, você pode lá permanecer por um par de horas pelos salões de baile, pela história do lugar e por alguma exposição temporária. Naquele momento, objetos de tortura medievais. Inacreditável nossa História. De imediato, me lembrei do Museu do Diamante, em Diamantina, Minas Gerais, onde vi pela primeira vez tais objetos utilizados no Brasil durante a escravidão. Saí correndo e fui parar diante de uma belezura, o Teatro Politeama Greco, que me remeteu ao teatro-cinema da minha cidade natal. Me senti criança naquele saguão e não pude parar de sorrir. Parecia que estava com meus pais e irmãos na antessala de um divertido espetáculo. A bilheteria estava aberta e tinha ingresso para aquela noite (Poltronissima A, Fila C, Posto 20) com a Orchestra Sinfonica Tito Schipa, que fez a plateia gargalhar do início ao fim, com o espetáculo “Berg Heim: una piccola montagna magica”. Tocavam e o maestro parava para contar narrativas pitorescas. Não pude entender tudo, claro, nem tenho certeza se a obra fazia referência à Montanha Mágica de Thomas Mann; todavia, a noite fechou em alto-astral.

Jantei em uma Trattoria ali por perto, indicada nos guias. Não me sentia confortável sem companhia, mas fui. Escolhi um lugar em que as mesas ficavam próximas e logo um casal começou a conversar comigo. Ele era fã de futebol e do Falcão, que tinha jogado no AS Roma no início da década de 1980 e, por suas conquistas, recebido o título de “Rei de Roma”. Foram muito amigáveis e tornaram as horas mais agradáveis. Na volta, ainda deu tempo de passar na minha sorveteria preferida.

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Viajar sozinha, em tempos de crise, com trabalho inconcluso dá mal-estar. Tinha de dizer a mim mesma que era para eu estar ali, mas sentia como se não merecesse. Sentia que estava no fim, como os elefantes que, nessa hora, se separam da manada. “Oi, Ane! Amanhã vamos a Alberobello. Você quer vir conosco?”, li no Whatsapp. “Quero, sim! Que bacana! Obrigada pelo convite!”, respondi para a incansável Mercedes.

Alberobello, Patrimônio Mundial da Unesco, é conhecida pelos “trullis”, umas casinhas cônicas gordinhas feitas com pedra calcária, que eram facilmente desmontáveis quando surgia no horizonte o cobrador de impostos. Construída sem argamassa, apenas com o encaixe das pedras, bastava tirar a do topo e tudo se desfazia. “Não há nada aqui, apenas destroços.” E lá se ia o cobrador. No centro histórico, estão em conjunto abrigando bares, lojinhas e até uma igreja que leva o nome do santo casamenteiro. Em algumas, no teto podem-se ver símbolos místicos, que, no Natal, ganham projeção de luzes coloridas em azul e dourado. O azul-turquesa do Mar Jônico está no imaginário de quem vai e de quem fica. Leva-o consigo como sopro de vida.

O mar da minha terra está em mim, e no meu caderno de poemas escrevi “Mar de amar”:

O mar me tem

em aplacada memória

em delicada reverência

peço permissão para entrar

aguardo a onda tocar no pé

sinto a maciez da areia molhada

o pé afunda

e a água bate gelada

é verão setentrional

do escorregão da prancha

do não dar pé

quando a água está pelo pescoço

você não quer a próxima onda

Espalhados pelos campos, a perder de vista como o mar, há “trullis” que viraram casas de hospedagem e restaurantes, onde resolvemos almoçar. Embaixo de um pergolado com jasmim miudinho, passamos algumas horas desfrutando da paisagem, da aragem, do sol dourado em uma conversa mansa e leve como só os desarmados conseguem fazer. Apesar de não termos mais trabalhado juntas, ficaram a admiração e o afeto. Parece que conhecemos nossas almas sem precisar falar. Mercedes tem passos fortes e coração seguro. Com Carlos, formam um belo casal maduro, daqueles que se sonha ser. Estavam viajando de carro pela Itália. Tinham passado pelas arrepiantes estradinhas da Costa Amalfitana e estavam visitando alguns vinhedos, felizes da vida. De forma alguma, eu iria permitir que o trágico doutorado estragasse aquele momento. Segurei. A presença da espirituosa orientanda da Mercedes também ajudou. Quando nos vemos, sempre tem a hora em que rimos dos nossos sotaques paulista, mineiro e gaúcho. Como não poderia deixar de acontecer, o griko, dialeto local, oriundo dos gregos, que colonizaram aquela faixa litorânea no século VIII a.C., também foi tema de discussão. E dá-lhe tim-tim!

Sobre a mesa em tons de azul mediterrâneo estavam nossos cálices de água e vinho – só faltava o mel dos banquetes da Odisseia; com meus convivas, eu já estava. Obrigada, força divina. Carlos era quem mais entendia de vinho. Foi ele quem nos explicou que a região da Puglia era conhecida por produzir, além do azeite de oliva para mais da metade da Itália, vinhos de excelente qualidade, a partir de três cepas de uvas, Negroamaro, Bambino Nero e Primitivo. E falou sobre as curiosidades desta última, que havia outra cepa geneticamente idêntica a ela na Califórnia, a Zinfandel, e que cientistas haviam descoberto que as raízes da Primitiva eram, na verdade, croatas e não italianas. Não preciso dizer que foi este o vinho que bebericamos, o Primitivo Gioia del Colle, produzido ali perto, em Bari. Carlos tinha o dom de falar de vinho na medida certa, sem ser pernóstico, profundo conhecedor. Para mim, estava ótimo aquela bebida alucinando vários cantos da minha cavidade bucal. O maior barato, como quando cozinho com os amigos, é outro sabor. Henri não gosta muito que eu assuma o compromisso de cozinhar porque minha cozinha é acidental; quando dá certo, maravilha. Só posso rir. Com ele.

Depois do almoço, ficamos ao sol, em bom gauchês, lagarteando. Tão bom. Tão quentinho. No verão, fujo dele; mas, nas demais estações, coisa tão boa! Parece que alimenta minha alma, me faz sentir no colinho da mamãe. Um ou outro sorriso, um ou outro comentário naquelas espreguiçadeiras. Era hora de voltar a Lecce, “a grande dama de Puglia”. Ainda tínhamos mais um dia de congresso, apesar de o jogo já estar definido.  Hora de sair do Valle d’Itria, de dar adeus ao mar de oliveiras e videiras.

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Meu avô paterno invariavelmente esperava por nossa visita, minha e de meus irmãos, sentado embaixo da parreira, fumando um palheiro, vestido com uma camiseta branca, uma bermuda caqui, uma boina e uma sandália de couro, cuja versão feminina, de tempos em tempos, tenho gosto em usar. Sorriso garboso, olhos vibrantes e os netos correndo pelo jardim, uma chácara com patos, galinhas, porcos, papagaios. Queria que ele não tivesse sido levado tão cedo, queria saber o que ele pensava, o que ele sentia. No dia de sua passagem, minha avó, meus pais e tios estavam todos ao redor da cama em uma uníssona oração. Da sala, sentada em uma poltrona, eu os via e estava muito confusa, nervosa com os sentimentos, assustada com o desconhecido. Meu pai chora quando reconta, um choro sentido, quase quieto. Minha avó viveu bastante e, ao nosso lado, era comedida. Às três horas da tarde, quando tomo um café preto e como três bolachas salgadas com geleia, me sinto com ela, sorriso doce. Adorava vê-la com seu chapeuzinho branco na praia, um charme só, toda faceirinha. Quando engravidei da Bia, ela já tinha falecido, mas dos céus ela enviou um presente especial. A vó Ceci fazia as melhores geleias do mundo, tão translúcidas como o mel e com as frutas nativas – pitanga, araçá, jabuticaba –, que comíamos nas férias de verão, quando ficávamos todos juntos na antiga casa de praia. Chego das férias, já grávida de um mês, e minha mãe me presenteia com a geleia da vó, igualzinha, de araçá, a minha preferida. Foi a única vez que ela tinha conseguido acertar a receita.

Mercedes e eu estávamos trabalhando juntas em Brasília quando recebi a fatídica notícia. Não titubeei. Voltei a tempo para as últimas homenagens. Vó querida. Sou meio xintoísta neste quesito. Mas nem todos entenderam minha opção de largar o trabalho e voltar para minha cidade natal. Paciência. Fiz o que minha consciência mandava. Mas nunca mais recebi convite como membro do comitê de organização. “C’est la vie!”

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Era tarde da noite em Lecce. Tomei meu banho, deitei e fiquei mexendo na programação do congresso, remarcando a quais apresentações assistiria, enquanto ouvia o canal de músicas italianas que estavam na moda. Era um canal de rádio televisionado, no qual apareciam os locutores e os entrevistados, intercalados pelos clipes das músicas. Fiquei apreciando e dormi. Não gostava do silêncio total do B&B, me dava ideia de abandono.

Ao amanhecer, aquela alegria. Senhor Luigi de prontidão, todo solícito conversando com os hóspedes. “Como foi o congresso? E sua apresentação? Você está muito bem vestida!”, dizia tudo com uma naturalidade que não me embaraçava, agradecia. Menti que tinha ido bem, então ele me perguntou sobre o que tratava o trabalho. Uff! “Se você sabe resumir, entendeu”, me vieram as palavras de um ex-professor. Foi. Nada como um café vaporizado e um pasticciotto para socorrer os ânimos.

Andei pelo caminho da procissão até o prédio da universidade onde ocorreriam algumas sessões. Estava com uma ressaca que não sei explicar. Um rebote que me desconsertava o andar. Não consegui sentar pouso. Saí a perambular e acabei voltando para a cidadela medieval, onde os monstros e os anjos um dia se encontraram.

A melhor pizza que já comi? Foi em Roma, com Henri, claro, logo depois de visitarmos a Fontana di Trevi e fazermos nossos votos ao lançar a moedinha na água. “La Dolce Vita”. De pé, em uma entradinha, nos lambuzamos com o molho mais saboroso imaginado para uma Marguerita. Bocas, mãos, até os pés. E todo mundo passando. Ríamos. Outra vez foi na parte mais alta de Assis, passando a Basílica de São Francisco, na praça redonda da cidadela, também em um lugar pequeninho. “Rápido. Precisamos voltar. É hora de partir.” E eu no meu andar nuvem.

A culinária pugliese é simples, muito me remeteu para as cidades italianas do Rio Grande do Sul. Tudo é bem servido e gostoso. Não deu tempo de experimentar os pratos mais pitorescos, quer dizer, meio que cansei de habitualmente fazer os pedidos mais diferentes e me dar mal. Pelos colegas, ouvi elogios do “bombette”, um bolinho de carne, e do “scamorza”, um queijo primo do provolone; mas não queria nada disso. Só queria meu café vaporizado com um pasticciotto. Compreende? Queria a tranquilidade de uma casa no campo, onde pudesse compor com Elis Regina, passear de mãos dadas com Manoel de Barros e ouvir o cantar dos pássaros durante o arrebol pantaneiro.  

Dobrei em outra estreitinha ruela e fui parar no Museo Storico Citta di Lecce, o MUST. Na entrada, livros dependurados como móbiles enalteciam poetas e ilustradores, dentre eles um brasileiro! Na exposição do acervo, estavam as esculturas orgânicas em dourado liso e cinza rugoso do pugliese Cosimo Carlucci, nascido em San Michele Salentino em 1919, um ano antes de minha avó materna. Estudou no Instituto de Arte de Lecce e graduou-se na Academia de Arte Superior de Florença. Curioso: Lecce tem o epíteto de “a Florença do Sul”. Carlucci passou por várias fases em sua arte: tensão entre o abstrato e o figurativo, interesse pelo barroco, domínios da forma, espaço e luz. Tive uma aula com a esposa de senhor Luigi, que era arquiteta, em nosso jantar de despedida. Eu falei que tinha estado no MUST e ficado absorvida pelas formas longilíneas em contrastes com as arredondadas, com claro e escuro, com leveza e aspereza. Entre uma mordida na pizza e um gole de cerveja, fiquei sabendo que, em 1983, quatro anos antes de seu falecimento, houve uma grande exposição antológica dele no Castelo de Carlos V. Que bela homenagem a seu nobre cidadão!

De uma das janelas internas do MUST, pode-se ver o Teatro Romano e imaginar as encenações que ali ocorreram. Dei mais uma passada numa praça que adorei. Não sei se pelos limites com uma arquitetura moderna do início do século XX, que me remetia a algum lugar, ou simplesmente pela tranquilidade que emanava dos ombrelones brancos do café, ou da igreja barroca de Santa Chiara, ou ainda da escultura pós-contemporânea que caia de um prédio de esquina. Se pudesse, deitava na grama e ficava olhando as copas altas das árvores.

18

Na manhã antes de partir, visitei a Igreja do Carmo, Chiesa del Carmine, a meia quadra da Corte Angelo Miali, meu paraíso italiano de paredes amareladas e plantas fortemente esverdeadas. A escadaria geometricamente desenhada em branco e azul. A janela para o exterior. A chave dupla. O apartamento recém-reformado pela esposa do senhor Luigi. A preservação dos azulejos que pareciam vitrificados em uma rosácea azul-marinho, vermelho e branco. Que sapatos teriam pisado naqueles quadrados? Que pernas teriam corrido por aquelas escadas? Que beijos teriam sido dados?

Henri, nossos filhos e minha mãe estavam me aguardando com um jantarzinho especial. Na Chiesa del Carmine, agradeci pela viagem, pelos bons momentos passados com os amigos e comigo mesma. Sentada no sofá Chesterfield em couro vermelho na sala do B&B, sozinha, de malas prontas, enxergo o tumultuado futuro que me espera. Percebo que não há escapatória. Só peço força para poder continuar.

Tiramos a mala do bagageiro e levo um susto. Senhor Luigi em postura formal, agradece pela cooperação naqueles dias, pela minha maneira na boa de ser, me elogia e deseja boa viagem, bom retorno ao Brasil. Senti minha boca estremecer enquanto eu agradecia pela gentileza e cuidado. Prometi voltar para mostrar Lecce à minha família. “Venha! Venha! Mas não deixe de ir a Roma!”, aconselhou. Eu ri com timidez. Entrei no trem, sentei na poltrona certa e incontrolavelmente chorei. Chorei de soluçar. Sem parar. Ninguém para testemunhar, graças a Deus.

A volta parece sempre mais rápida, se costuma dizer, mas as cinco horas até Roma eram cinco horas. Mais o trem Leonardo Express, check-in, espera, voo transatlântico e voo doméstico. Casa. Alquebrada, cheguei ao guichê da companhia aérea pedindo uma “janelinha”. O funcionário falava português fluentemente, já tinha estado no Rio de Janeiro várias vezes e nos adorava. Nada como falar com alguém em nossa própria língua. Estranhei um pouco a numeração nas primeiras fileiras, mas era uma janela. Depois daquele sufocamento na ida, olhar para as estrelas na volta seria uma compensação.

A área de alimentação do aeroporto, pelo menos nos portões para a América do Sul, é bastante grande, mas estava lotada e tive de andar um bocado até encontrar um lugar. Pedi com licença. Ok. Ok. Era um grupo de sete ou oito brasileiras, só uma falava: “Não é que eu não viva bem. Eu vivo bem.”. Imediatamente percebi que tinha sentado no lugar errado. Pior, eu como devagar. Tive de ouvir toda a lamúria de uma senhora da “fina flor” sobre o fato de o ex-marido ter mais dinheiro que ela e, assim, na lógica dela, ter mais o amor dos filhos do que ela. Quase engasguei. Pensei naqueles franceses em Lecce saboreando suas companhias e tive uma vontade desesperada de voltar. Parecia que eu estava vendo a novela das 21h. Não acreditei. Até o valor do condomínio dela fiquei sabendo, quase três vezes o meu salário. “Bem-vinda ao Brasil!”

Fomos recebidos por uma aeromoça muito simpática, que nos encaminhava aos assentos. Olhei minha janela e senti um frio na barriga. Poltrona grande, de couro, espaçosa, reclinável, confortável. Logo recebo o travesseiro, a manta, as meias e o nécessaire com os apetrechos de higiene. Não sei se era um pedido de desculpas da companhia pelo inconveniente com a mala, ou se estavam sobrando poltronas e eu cheguei muito cedo para o check-in, mas era fato: eu estava na primeira classe. Sabe quando você encontra dinheiro no bolso de um casaco ou calça que tinha ficado ali esquecido? Melhor que essa só o e-mail do Trenitalia que acabo de receber: “Quando será sua próxima viagem? Encontre seu destino aqui.” Cliquei.

Graziela Jacques Prestes é formada em Letras pela UFRGS (1996) e mestre em Linguística Aplicada pela PUC/RS (2003). Lecionou em Instituições de Ensino Superior de 2003 a 2016. Atualmente trabalha com Ensino Fundamental e Médio e mantém a página https://www.facebook.com/aulasdeportuguescomgrazi/

FICÇÃO

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