A ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DE ‘O SOBRADO’ – MATEUS DA ROSA PEREIRA

Como realizar uma adaptação cinematográfica competente do ponto de vista estético, com uma boa dose de originalidade e um diálogo profundo com sua obra de origem, sem receber acusações de que se trata de um filme com valor artístico menor, como se fosse um subproduto ou cópia da literatura? Geralmente, os filmes que tentam seguir muito de perto o roteiro sugerido pelo livro são acusados de muito literários, algo que na verdade quer dizer que o filme não ficou com feição de filme, que é monótono, lento, sintomas que, por sua vez, podem estar ligados a problemas diversos de edição, montagem, ritmo, roteiro, direção, conforme o caso. Por outro lado, os cineastas que adotam uma perspectiva de maior liberdade artística com relação à obra literária de origem são vítimas fáceis de acusações de superficialidade e infidelidade, sendo que seus filmes são muitas vezes considerados aquém dos livros que os inspiraram. Entretanto, o fascinante nas adaptações cinematográficas é o desafio de se propor uma releitura, tradução, contextualização, recriação – cada termo com suas implicações e conotações relacionais específicas – de algo apenas sugerido pelo livro. Esse ―algo parece ser a essência do livro, mas não é, como nos lembra Robert Stam, pois na mudança de meio, o audiovisual conta não só com a palavra escrita, mas também com a falada, além de trilha sonora, imagens em movimento, efeitos sonoros, atuação, etc., sendo que a tal fidelidade e a transposição de uma essência ou núcleo de significado de um meio para o outro são, ao mesmo tempo, impossíveis e indesejadas (STAM, 2000, p. 56). Sendo assim, a análise comparada de adaptações cinematográficas pode se beneficiar do princípio fundamental de que o livro e o filme são duas obras diferentes e independentes, porém que participam de um jogo intertextual que gera desdobramentos de sentido para ambas as obras. O que podemos analisar, portanto, é como a mesma ação, o mesmo tema, o mesmo problema  é representado e articulado composicionalmente no meio literário e no meio cinematográfico, e na adaptação (como um ato, uma transição) de um para outro, levando em consideração quais escolhas foram feitas, que pistas foram ignoradas, quais mudanças foram realizadas e com quais efeitos. Do ponto de vista da crítica e da avaliação estética, o importante é não tomar o original como uma régua para medir o valor da adaptação a priori, mas o próprio filme, em sua organização formal e temática única.

Nas pesquisas a respeito da representação do passado na literatura, fortemente associadas aos romances históricos, atualmente é bastante difundido o princípio teórico de que o passado só pode ser acessado por meio dos seus vestígios textuais, pois a historiografia, assim como a literatura, se alimenta e produz narrativas, filtradas pela experiência discursiva do historiador ou ficcionista, conforme apontam diversos autores, cada um à sua maneira (cf. HUTCHEON, 1985, 1988, 1989; JAMESON, 1984; BALDERSTON, 1986; MENTON, 1993). Quando consideramos o caso das adaptações cinematográficas que dialogam com obras literárias que representam o passado, temos uma imbricação ainda maior dessa relação dialógica com o passado textual ou os textos do passado, pois além das fontes históricas que alimentaram o livro e o autor, devemos levar em conta que a produção do filme se alimenta de outros textos do passado e do presente, estabelecendo um diálogo textual específico com sua obra de origem.

Essas questões e preocupações de ordem teórica e pragmática são relevantes na medida em que nos levam a algumas necessidades metodológicas bastante peculiares no que tange às análises comparadas entre literatura e cinema. A primeira diretriz que a presente análise se propõe a seguir se refere à independência estética da obra audiovisual que deve, assim, ser analisada em sua organização formal como uma obra que poderia não ter sido uma adaptação, mas apenas um filme. Com o objetivo de ultrapassar qualquer discussão pautada no conceito de fidelidade, concentrar-se na especificidade do filme é principalmente pertinente às análises fílmicas realizadas por críticos com uma formação na área da literatura, visto que um dos pontos fracos de muitas análises é o foco excessivo  em elementos do enredo, em detrimento de outros aspectos da linguagem cinematográfica, frequentemente negligenciados pela crítica, tais como a mise-en-scene1, a trilha sonora, a fotografia e a edição. O outro procedimento metodológico óbvio decorrente das questões suscitadas é analisar a relação estabelecida entre a adaptação e sua obra literária de origem. A esse respeito, importa-nos não ver com maus olhos as diferenças entre o livro e o filme, entendendo que elas pressupõem escolhas e limitações que por vezes podem ser rastreadas e explicadas, elucidando o caráter de releitura do filme. Com base no conceito de intertextualidade, que pressupõe que nenhum texto, literário ou fílmico, foi criado em um vácuo contextual e, de fato, interage com outros textos em níveis múltiplos, as análises ora desenvolvidas são calcadas em uma proposta de análise crítica específica, mas sua abordagem interdisciplinar e híbrida se orienta ora para o filme como organização formal única, ora para sua relação como obra independente com o seu contexto de produção, ora para suas escolhas narrativas e de estilo, que por sua vez dialogam com diferentes tradições estéticas e de gênero.

O argumento principal deste artigo é que o protagonista de O Sobrado, Licurgo Cambará, passa por um processo de esvaziamento na adaptação cinematográfica de 1956. Tal processo significa que enquanto o Licurgo de O Continente é um personagem ambíguo, controvertido, problemático no sentido lukacsiano (cf. LUKACS, 2000), na adaptação ele é representado de forma rasa, desprovido de profundidade psicológica. A questão principal é que embora isso pareça prova suficiente para incriminar o cinema como um meio mais superficial que a literatura, tal mudança na caracterização do protagonista, com seus desdobramentos necessários, atende perfeitamente ao projeto do filme uma vez que consideramos sua organização visual total e seu significado na história da arte e da sociedade da época.

Entre a data de publicação de O Continente (1949) e a estreia do filme O Sobrado, sete anos depois, o Brasil assistiu ao maior empreendimento do cinema industrial nacional, a Companhia Cinematográfica Vera Cruz. O filme foi produzido no final do período de atuação da Vera Cruz, quando a empresa já havia formalmente falido e sido encampada pelo Banco do Estado de São Paulo. Ainda assim, ele está fortemente ligado à Companhia, pois foi produzido nos estúdios da Vera Cruz, com o equipamento da Companhia, foi escrito e dirigido por um dos roteiristas contratados da empresa, Walter G. Durst, e os direitos de adaptação do capítulo do livro de Erico Verissimo haviam sido comprados na época áurea da Companhia. Durante a década de 1950, a redemocratização e o liberalismo decorrentes do fim do Estado Novo foram responsáveis pela atitude otimista da burguesia industrial, que acreditava que passaria a tomar as rédeas do progresso social, econômico e até mesmo cultural. O clima de euforia e efervescência em torno do sucesso econômico e da redemocratização levou à institucionalização da arte em São Paulo, patrocinada pela iniciativa privada. O Museu de Arte de São Paulo (1947), o Museu de Arte Moderna (1949) e o Teatro Brasileiro de Comédia (1948) foram assim instituídos através do mecenato, que caracterizou a relação entre a sociedade e a cultura dessa época. Foi nesse contexto que surgiu a Companhia Cinematográfica Vera Cruz (cf. GALVÃO, 1981, p. 16-23).

A Vera Cruz tinha como objetivo a produção de filmes em escala industrial, nos moldes dos grandes estúdios de Hollywood, como o Metro-Goldwyn-Mayer (MGM). Inspirada principalmente pelo cinema norte-americano, ela almejava produzir filmes que exibissem a mesma qualidade dos melhores filmes da época, em termos de fotografia, som, ritmo e roteiro. A Vera Cruz realizaria o sonho de longa data do cinema paulista e brasileiro, já  que  ―a  proposta  de  um  cinema  brasileiro  de  qualidade,  industrializado  em  padrões internacionais, sempre correspondeu a um anseio de ver demonstrada a nossa capacidade técnica como índice do nosso progresso e da nossa inteligência (GALVÃO, 1981, p. 13).

Dentre os seus filmes, destacaram-se, com sucesso de bilheteria e crítica, Tico- Tico no Fubá (1952), dirigido por Adolfo Celi, com Anselmo Duarte, Tonia Carrero e Marisa Prado, sobre a vida do compositor Zequinha de Abreu; Sinhá Moça (1952/1953), dirigido por Tom Payne, com Anselmo Duarte e Eliane Lage, sobre a paixão entre um advogado e a filha de um grande fazendeiro e proprietário de escravos que lutam contra a escravatura às vésperas da abolição; e, principalmente, O Cangaceiro (1952), dirigido por Lima Barreto, com Alberto Ruschel, Marisa Prado e Milton Ribeiro. Este último filme, que abre uma série de filmes  desse gênero no cinema brasileiro, representou a consagração da Vera Cruz no âmbito internacional, tendo sido premiado como melhor filme de aventuras em Cannes (1953) e melhor filme no Festival de Edimburgo (1953).

Apesar do sucesso de seus filmes, a Vera Cruz fracassou sobretudo como um empreendimento comercial e industrial, pois suas práticas provaram ser insustentáveis, alicerçadas em uma atitude de esbanjamento e de ingenuidade com relação às atividades de produção e distribuição de seus filmes. Embora fosse conveniente e parecesse vantajoso produzir e então deixar que grandes distribuidoras mundiais se encarregassem da próxima etapa comercial, essas empresas agiam em nome de interesses próprios, na maior parte das vezes em detrimento dos da Vera Cruz. O pressuposto assumido pela Vera Cruz, de que realizar filmes com padrão de qualidade internacional seria suficiente para gerar rentabilidade, provou estar completamente equivocado. Os investimentos feitos nos filmes eram incompatíveis com o retorno que o mercado podia oferecer. O cinema carioca da mesma época era rentável porque produzia com custos baixíssimos e era orientado para o mercado interno. A Vera Cruz ignorou que ―a base de qualquer cinema nacional,  inclusive o  cinema norte-americano, é o mercado doméstico (GALVÃO, 1982, p. 275).

Nesse contexto, O Sobrado foi um marco histórico porque caracterizou a retomada da produção relacionada à Vera Cruz depois de aproximadamente dois anos de inatividade. Com o afastamento de Franco Zampari, o Banco do Estado de São Paulo nomeou Abílio Pereira de Almeida para dirigir a Companhia. Ele, então, fundou a Brasil Filmes para distribuir os filmes produzidos com o pessoal e os recursos técnicos da Vera Cruz, como  tática para escapar ao contrato exclusivo de distribuição que ela mantinha com a Columbia Pictures. Nesse período, além de O Sobrado e Paixão de Gaúcho, ambos de Walter G. Durst, foram produzidos mais de uma dezena de filmes, tais como Estranho Encontro, de Walter Hugo Khouri, Rebelião em Vila Rica, dos irmãos Santos Pereira, O Gato de Madame, de Abílio Pereira de Almeida, Ravina, de Biáfora, entre outros (cf. MARTINELLI, 2005, p. 152- 153). A ideia da produção de O Sobrado teria partido de Abílio Pereira de Almeida, por se tratar de um filme que exigiria um baixo orçamento e que teria potencial para gerar retorno e dar continuidade à produção cinematográfica. Tratava-se de um argumento cujos direitos da obra de Érico Veríssimo haviam sido comprados havia algum tempo e de filmagens predominantemente em estúdio. Além disso, o filme contava com o elenco da TV Tupi e a publicidade dos Diários de Chateaubriant, de forma que ele de fato teve grande sucesso de bilheteria, possibilitou a produção de outros filmes nessa fase e rendeu credibilidade para que Walter G. Durst dirigisse Paixão de Gaúcho, com liberdade ainda maior que em O Sobrado (cf. GALVÃO, 1981, p. 184).

Nos anos 1950, Walter George Durst talvez fosse mais lembrado como o crítico de cinema que debochara do filme de estreia da Vera Cruz que o diretor de O Sobrado e de Paixão de Gaúcho. Nas palavras de Galileu Garcia, produtor e assistente de direção da Vera Cruz: ―O Durst, em seu tempo de militância na crítica através do semanário Radar, era impiedoso e terminava seus escritos com pequena frase ferina. Após haver espinafrado o Caiçara sem dó nem piedade, terminou com a frase Piquenique de grã-fino em Ilha Bela (MARTINELLI, 2005, p. 44). As críticas de Walter G. Durst pareciam realmente perturbar a administração da Vera Cruz. Em misto de tom jocoso e sério, ele comenta que sua contratação como roteirista teria sido com o propósito final de anular uma fonte de crítica contrária ao projeto da companhia (cf. GALVÃO, 1981, p. 182). A aversão de Walter G. Durst ao filme Caiçara é um indício para entendermos alguns aspectos marcantes de O Sobrado como uma tentativa de realizar o que o filme de estreia da Vera Cruz havia frustrado, dando início a uma nova fase de produção, ainda que muito ligada à estrutura de funcionamento da Vera Cruz. Conforme explica Maria Rita Galvão, na época do lançamento do Caiçara, a crítica se dividiu entre os que elogiavam o filme de forma irrestrita, saudando-o como o primeiro representante de um Cinema brasileiro, na figura institucional do jornal O Estado de São Paulo, e os que repudiaram a produção, ponto de vista defendido pelo Anhembi, principalmente pelo alheamento do filme com relação à realidade nacional (cf. GALVÃO, 1981, p. 228-229). Segundo a análise da autora, embora o filme se passasse no ambiente dos caiçaras e com o título Caiçara, a trama não envolvia a vida dessa comunidade, que fica à margem dos acontecimentos do filme:

Para a Vera Cruz, a situação se acaba resumindo em exotismo e folclore. E, no fundo, há um grande desprezo pelos caiçaras. A maneira como eles são apresentados no filme corresponde precisamente aos estereótipos correntes sobre o comportamento dos nossos caipiras: são indolentes, supersticiosos, irracionais. Depois de ter-se proposto a fazer um filme sobre os caiçaras, a Vera Cruz os coloca como espectadores de um drama que não lhes diz respeito. E tendo contraposto ao mundo dos caiçaras o do estaleiro, com seus ativos japoneses trabalhadores, absolutamente não se interessa pelo eventual significado da sua presença. Não há no filme o menor esforço para compreender realmente do que se trata: de um modo de vida em transição tendendo ao desaparecimento. Da substituição de um modo pré-capitalista de produção pelo capitalismo. (GALVÃO, 1981, p. 250)

Para a autora, o objetivo da Vera Cruz de produzir filmes com padrão técnico internacional e que visavam ao mercado externo, a importação de recursos humanos técnicos e uma diretoria oriunda da burguesia paulista foram fatores que resultaram, no filme de estreia da Vera Cruz, em uma visão totalmente estereotipada da realidade brasileira, marcada pelo exotismo, que mostra ―apenas o que é digno de ser mostrado e que constitui uma ―obsessão com o mercado externo traduzida em ―exportação de exotismo (GALVÃO, 1981, p. 255). Walter G. Durst partilhava da visão crítica de Maria Rita Galvão, como podemos constatar a partir de um depoimento seu:

Então, quando vi os primeiros filmes da Vera Cruz achei que havia  dois erros fundamentais: primeiro, era uma coisa absolutamente transplantada. Ninguém conhecia um mínimo de Brasil, nada, nada. Os modelos eram os antigos filmes estrangeiros. Segundo, tudo mal feito, não sabiam fazer roteiros, não tinham prática, era só empostação técnica. Então, sem enxergar o problema maior, eu como crítico realmente caí em cima, achei que estava tudo errado e escrevi isso mesmo. Eles tinham trazido uma estrutura maravilhosa com aqueles ingleses todos que faziam tudo tecnicamente muito bem, mas era só. (…) O que me revoltou [em Caiçara] foi a inutilidade daquilo tudo, tantos técnicos, tanto dinheiro, Matarazzo pelo meio, todo aquele aparato de produção, tudo isso para nada, para aquilo. Era um negócio distante do Brasil, distante do povo, totalmente por fora de tudo. (GALVÃO, 1981, p. 181-182)

Cria-se a expectativa, portanto, de que Walter G. Durst, crítico dessa perspectiva exótica, estereotipada e superficial da realidade brasileira, tal qual retrata o filme de estreia da Vera Cruz, tentasse ir além dessas limitações no roteiro e na direção de seu próprio filme. Até que ponto Walter G. Durst conseguiu realizar o que Caiçara e outros  filmes da Vera Cruz não lograram poderá ser medido ao analisarmos como o cineasta aborda  a representação da história ao adaptar o segmento de O Continente.

Seria possível apontar muitas diferenças no filme O Sobrado com relação ao capítulo do romance, dentre elas algumas bastante notáveis, como as mortes de José Lírio e de Fandango e a presença de Ismália Caré. Entretanto, a simples enumeração das diferenças entre o livro e o filme não leva necessariamente à diferença fundamental entre ambas as obras. Tal diferença diz respeito ao modo como elas representam o processo histórico no mundo retratado. Em O Continente de Erico Verissimo, a ascensão política da família Cambará, na pessoa de Licurgo, já anuncia as contradições e os defeitos que, no desenrolar da trilogia, seriam responsáveis pela degradação da família e pela falência dos valores defendidos por Licurgo. O viés crítico imposto pela constituição do narrador-personagem Floriano ao final de O arquipélago confirma que a trajetória de ruína do mundo simbolizado pela sua família era necessária para que um futuro mais humano e democrático pudesse ser almejado. Uma vez que a trilogia narra duzentos anos de história, ―O Sobrado‖ constitui um passado que ao longo de O tempo e o vento será transformado cada vez mais intensamente em alvo de críticas e questionamentos, assim evidenciando o processo lento de mudanças no processo histórico. Por outro lado, o filme O Sobrado apresenta o passado como um disfarce ou motivo para tratar de questões contemporâneas à sua produção. Muitos filmes históricos, como O Sobrado, deslocam os problemas do presente para o passado, com o intuito de apelar para a sua autoridade ou utilizar a história como um disfarce, sem necessariamente representá- la a partir das suas especificidades, que constituíram as pré-condições do presente. O apelo à autoridade refere-se à inclusão de frutos de pesquisa, detalhes de época ou comportamentos antiquados no filme. Um exemplo do apelo à autoridade da história em O Sobrado é o texto projetado por sobre a imagem do Sobrado logo após os créditos iniciais:

Nos fins do século passado quase toda a província de São Pedro do Rio Grande do Sul foi sacudida pela Revolução Federalista, onde os rebeldes, apelidados maragatos, guerreavam os  republicanos  do governo chamados pica-paus. A vila de Santa Fé foi um dos focos da luta e lá se dizia que para os seus moradores tanto fazia estar embaixo como em cima da terra.

Esses recursos frequentemente apresentam a história como um atalho para a verdade, legitimando o sentido do texto. Já a representação do passado como um disfarce serve para esconder posições atuais polêmicas, assim driblando a censura política ou abrandando a resistência do espectador (cf. GRINDON, 1994, p. 3).

Essa maneira de retratar a história funciona no filme de Durst como um princípio organizador de todos os seus elementos, e sob essa perspectiva podemos analisar quais mudanças são mais significativas e a que efeitos levam. Muito diferentemente do livro de Erico Verissimo, o filme encerra a insurreição do peão Antero contra o patrão Licurgo, tendo no cerne de sua trama o despertar da consciência da luta de classes, segundo a qual os peões eram explorados pelo patrão. Esse viés marxista da adaptação do romance de Erico pode estar ligado ao contexto da guerra fria, que na época da produção do filme dividia o mundo entre capitalistas e socialistas, e a uma possível simpatia do roteirista com as atividades do Partido Comunista.

Não obstante, assim como no segmento “O Sobrado”, no filme  Licurgo também desempenha um papel central para entendermos a representação da história. Entretanto, no filme esse personagem é esvaziado de qualquer sutileza e ambiguidade que Erico lhe confere, tornando-se ainda mais impassível e cruel em sua determinação a resistir ao cerco. Enquanto no livro Licurgo deseja aproximar-se de sua esposa, mas é detido por um constrangimento ligado a um comportamento machista, no filme ele é destituído do mínimo  de humanidade. Por exemplo, uma pista do romance que o filme não desenvolve é o peso que Licurgo sente em seus pés com o desenrolar da ação. Quanto mais finca pé em seus ideais, mais perde  sua  mobilidade, pois se esvaem as forças. Ao  saber que sua  filha  nascera morta, “Suas botas pesam como ferro no soalho” (VERISSIMO, 2004a, p. 100), e ao lado de Alice, “De  pé  junto  da  cama  Licurgo  está  imóvel  como  que  chumbado  ao  chão”  (VERISSIMO, 2004a, p. 205). O Licurgo de Durst é plano, completamente negativo, como se houvesse sido julgado culpado de antemão.

Vale lembrar que o filme foi produzido aproximadamente seis anos antes da publicação de O arquipélago, portanto, a relação de revisão crítica referida acima não havia sido explicitada pela instituição de Floriano como narrador da trilogia. Se somarmos a isso o fato de que toda a adaptação de um meio para o outro é uma leitura ou interpretação da obra de origem, poderemos concluir que Durst, como roteirista, achou que o papel de Licurgo era tão negativo que decidiu por bem declará-lo culpado, imprimindo-lhe uma caracterização sem nenhuma riqueza psicológica: o vilão.

Uma das poucas coisas que o filme preservou com relação à caracterização de Licurgo foi o seu difícil relacionamento com a cunhada, uma vez que esse traço contribui para acentuar os aspectos negativos do personagem masculino. Na cena do velório da filha de Licurgo, quando este ordena que Maria Valéria sirva o resto do charque aos presentes, podemos notar que ela se encontra de costas e à esquerda do enquadramento, em uma extremidade da mesa, enquanto Licurgo encontra-se na outra extremidade da mesa, à direita do enquadramento, de frente para a câmera. O enquadramento de oposição simétrica articula de forma visual a tensão que existe entre os dois, já que Maria Valéria deseja uma trégua para o socorro de sua irmã. Outra sequência semelhante a esse respeito é a primeira cena em que os dois aparecem. Também nessa cena, quando Licurgo acabara de atirar contra o campanário da igreja, eles estão um de cada lado de uma mesa. Porém, o mais notável é a sensibilidade da direção ou dos atores (ou de ambas as partes) quando, no desenrolar da cena, Licurgo e Maria Valéria se encontram do mesmo lado da mesa, mas não mantêm praticamente nenhum contato visual. Ambos falam de frente para a câmera, enquanto Licurgo dá as costas para a cunhada.

Além de evidenciar suas posições contrárias com relação à trégua, o comportamento dos atores sugere a relação de constrangimento que existe entre os dois, por causa do amor mal- resolvido de Maria Valéria pelo cunhado, o que mais tarde é explicitado em um monólogo de Maria Valéria no quarto de Alice.

Esse recurso de direção também é utilizado na cena em que Licurgo pergunta ao sogro o que pensa sobre seu comportamento. Florêncio não só evita manter o contato visual com o genro, mas permanece sentado durante toda a conversa. A ausência do contato visual e o fato de Florêncio permanecer sentado enquanto Licurgo fala, em pé, remete à relação de poder entre os dois, pela qual Florêncio, apesar de ser mais velho e de discordar do genro, não tem coragem de afrontá-lo de forma veemente. Essa sequência também é interessante por utilizar o diálogo entre Licurgo e Florêncio retirado praticamente ipsis litteris do romance do autor gaúcho (cf. VERISSIMO, 2004a, p. 35). Essa cena entre Licurgo e Florêncio também ilustra como Walter George Durst e Cassiano Gabus Mendes resolveram, na direção, um problema típico de qualquer adaptação. No livro, Florêncio não encontra a coragem para desafiar o genro, mas pensa: ―A sua [bota] aperta no amor-próprio — pensa o velho. Mas cala‖ (VERISSIMO, 2004a, p. 35). Diante da dificuldade de lidar com o pensamento dos personagens de forma audiovisual, os diretores evitam a sua expressão em voz alta, tradicionalmente considerada como a solução mais vulgar e menos realista ou cinemática, e resolvem a questão eficientemente na diferença do posicionamento dos atores e na ausência do contato visual, ou seja, na mise-en-scene do filme.

Além disso, a referência literal a trechos do romance evidencia um posicionamento de Durst com relação à sua concepção da adaptação. Embora o enredo tenha sofrido diversas mudanças profundas, o filme se apresenta ao espectador como uma adaptação fiel do romance de Erico, o que também é comprovado quando, nos créditos iniciais, lemos que o filme foi EXTRAÍDO DA OBRA O TEMPO E O VENTO DE ERICO VERISSIMO. A ideia de que o filme é a versão fiel do romance, apesar da impossibilidade do empreendimento, associa a produção audiovisual ao sucesso que o livro logrou junto ao público leitor, além de lhe atribuir um status artístico frequentemente associado à literatura mas pouco atribuído ao cinema brasileiro dessa época.

Entretanto, em algumas cenas os diálogos não se encaixam de forma harmoniosa na ação dos atores, parecendo gratuitos ou soltos na ação, apenas justificados pela ideia de que a sua inclusão seria importante por fazer menção ao livro e legitimar sua fidelidade. Um exemplo disso é a cena logo depois que Liroca entra na igreja, enquanto conversa com Inocêncio. Liroca está lamentando ter que atirar contra a casa que frequentou tantas vezes, enquanto Inocêncio lembra-lhe que se trata de casa de um pica-pau (republicano). Nesse ponto, Inocêncio  diz que  ―inimigo  é inimigo, ao  que Liroca responde automaticamente ―e guerra é guerra. Essas expressões são usadas ao longo de todo O tempo e o vento, marcando o linguajar do gaúcho e identificando o código de conduta prevalecente na época retratada. Porém, nessa cena do filme de 1956, elas são pronunciadas como que automaticamente e, com a contribuição da má atuação do ator que interpreta Liroca, ficam soltas e gratuitas na conversa, restando sua única função a de fazer referência ao livro. O relacionamento entre Licurgo e os homens que lutam a seu lado durante o cerco também sofre mudanças na adaptação cinematográfica. No livro, participaram da luta, no Sobrado, companheiros do Partido Republicano e empregados do Angico, alguns dos quais mantinham uma relação pessoal estreita com a família Terra Cambará, como o caso de Fandango. No filme, diferentemente, para que a relação entre empregados e patrão ficasse mais evidente, todos os homens que lutam no Sobrado são funcionários, e a relação trabalhista é enfatizada também pela promoção de Gervásio ao cargo de capataz, devido à morte de Fandango, e pela referência ao fato de que Antero trabalhava para Licurgo havia  pouco tempo. O fato de que Antero é um empregado novo no cargo de peão contribui para que seja ele o trabalhador que irá despertar a consciência dos colegas e de Ismália a respeito do  sistema trabalhista tradicional que, em sua opinião, os explorava.

Licurgo não só é transformado em vilão, mas o mundo a que ele pertence, no filme representado pelo Sobrado, é retratado como uma atmosfera sombria e angustiante. De fato, a ambientação no livro sugere esse clima: ―A lenha crepita no fogão. O minuano sacode as vidraças, que tremem: é como se, sentindo frio, o Sobrado estivesse a bater dentes (VERISSIMO, 2004a, p. 374). Nesse sentido, tal ambientação é apenas acentuada no filme e articulada na linguagem audiovisual através da iluminação e da trilha sonora, dentre outros elementos.

A trilha sonora, no começo do filme e em outras partes, parece sugerir suspense, como se previsse algum tipo de revelação ou acontecimento surpreendente. Entretanto, com o desenrolar do filme, o clima de suspense não se justifica, pois não leva a nenhuma informação surpreendente, sendo que a trilha sonora acentua um clima angustiante, em sintonia com a situação exasperadora do cerco em que se encontram os habitantes do Sobrado. A trilha sonora, ao conferir ao filme essa atmosfera angustiante, através do suspense exasperador, se relaciona com a narração do filme, conforme definição de Bordwell:

O enredo pode organizar pistas de forma que retenha informações para fins de curiosidade ou surpresa. Ou o enredo pode fornecer informações de forma a criar expectativas ou aumentar o suspense. Todos esses processos constituem a narração, a maneira que o enredo distribui as informações da história para alcançar efeitos específicos. A narração é o processo que a todo momento nos orienta na construção da história a partir do enredo. (BORDWELL, 1997, p. 102)

Outro exemplo do uso do som para criar essa atmosfera sombria diz respeito ao sino da igreja. De forma semelhante à metáfora do vento no romance (―noite de vento, noite dos mortos), o sino é associado à morte e até mesmo a alguma presença sobrenatural no filme. Quando o sino toca porque Liroca, morto, cai sobre ele, o som percorre a superintendência e chega até o Sobrado. Ao ouvi-lo, Fandango declara que sempre achou que o Sobrado fosse mal-assombrado, talvez motivado pela intuição de que a morte em breve o levaria também. De qualquer forma, o filme associa a atmosfera sombria e de muitas mortes (mais numerosas que no livro) ao som do sino e a forças sobrenaturais, como fica claro quando Fandango ouve uma voz, sem nenhuma explicação, enquanto busca água no poço. Embora a iluminação de O Sobrado seja, em sua maior parte, convencional (sistema de três pontos)2, ela é por vezes parca e, em alguns momentos, a fonte principal é baixa ou a luz de preenchimento não é suficiente de modo que sombras são projetadas nas paredes. Um exemplo disso ocorre quando Licurgo volta do porão para buscar o caixão improvisado da filha e Florêncio oferece ajuda. Podemos notar várias sombras projetadas nas paredes, como a sombra do crucifixo projetada de baixo para cima na parede e depois no peito de Florêncio. Esse tipo de iluminação acentua a atmosfera de angústia e morte sugerida no romance, em harmonia com a proposta geral do filme de retratar o mundo de Licurgo como um mundo sombrio e cruel sob todos os aspectos. Esse tipo de iluminação pode estar ligado ao estilo noir, muito difundido na década de 1950 no cinema norte-americano. Associados a imigração de cineastas europeus nutridos pelo expressionismo alemão, os filmes noirs articulavam em seu estilo visual, mais que em suas narrativas, a desilusão com o mundo pós- guerra, em contraposição ao otimismo exagerado do cinema hollywoodiano anterior, e refletiam  as   atitudes   culturais   cada   vez   mais   sombrias   durante   e   depois   da   guerra (SCHATZ, 1981, p. 113)3.

O esvaziamento da caracterização de Licurgo encontra uma ação simetricamente inversa na caracterização de Antero. Licurgo e Antero engendram, no filme, um jogo de opostos, segundo o qual Licurgo simboliza o patrão, o caudilho, o latifundiário, o vilão, que age em defesa de interesses próprios, explorando seus empregados. Antero, por outro lado, representa o proletário bom e justiceiro, que se insurge contra o patrão. Antero questiona a guerra pessoal entre Cambarás e Amarais e convence alguns de seus companheiros e Ismália que, independentemente de quem estivesse no poder, o povo sempre estaria  em  segundo  plano.  Por  isso,  esse  esvaziamento  do  personagem  principal  de  ―O Sobrado está longe de ser uma falha da adaptação, já que o roteiro de Walter G. Durst objetiva instaurar um jogo antagônico entre Licurgo e Antero. Até mesmo a escolha do ator que interpreta Antero contribui para o fortalecimento deste personagem no sentido de contrapô-lo   a   Licurgo.   No   livro,   Antero   é   descrito   como   o   ―baixinho/nanico   (cf. VERISSIMO, 2004b, p. 269-270), enquanto no filme ele é bem mais alto que o ator que interpreta Licurgo (por exemplo, 01:28:12), o que atende perfeitamente à organização total do filme e ao papel que a caracterização desempenha nesse sentido.

De fato, Antero apresenta todas as características positivas que faltam a Licurgo. Quando Antero visita Tinoco na despensa, tem a oportunidade de vingar a morte de seu irmão, mas não o faz já que Tinoco encontra-se debilitado e sem condições de se  defender, o que demonstra que Antero é justo e honrado. A propósito, Durst expande a motivação do personagem de Tinoco, que assume uma função muito mais importante no filme que no livro. No romance, Tinoco é, sobretudo, o peão que apodrece na despensa por causa de um ferimento, o que sugere ao leitor a dor e a crueldade da guerra. O fato de Tinoco ter matado o irmão de Antero em uma corrida de cavalos por uma quantia de dinheiro tem pouca ou nenhuma relação com o restante da trama do capítulo (cf. VERISSIMO, 2004a, p. 97-98). No filme, por outro lado, esse subenredo é ampliado e estabelece relações muito significativas com a trama do filme. Na adaptação, Tinoco é responsável pela morte do irmão de Antero que roubara um cavalo da fazenda de Licurgo por necessidade, motivo destacado na narrativa fílmica. Além disso, escutam a fala de Antero Licurgo e Ismália, que se encontram a um canto, sem serem percebidos pelo primeiro. Assim, essa cena serve como motivação para Licurgo tentar marcar Antero a ferro, como ladrão, e principalmente para Ismália identificar- se com Antero, despertando a sua consciência com relação à tirania de Licurgo. O sentido de justiça de Antero está ligado à sua vontade de defender as minorias e os desprotegidos, como negros, mulheres e crianças, de forma que ele tem a sensibilidade e a igualdade que faltam a Licurgo. Uma cena que ilustra esse ponto ocorre quando Gervásio, Antero e Fandango entram na sala e encontram Ismália junto ao fogo, ao que o primeiro diz que ―índio e negro não é gente e manda Ismália sair dali. Antero,  então, fala em defesa dos índios e dos negros e aposta o pala de Gervásio em um jogo de braço contra o negro Damião. A derrota de Gervásio evidencia a vitória dos argumentos de Antero, contribuindo para a sua caracterização como justiceiro dos fracos e das minorias, no campo ideológico, e, paralelamente, representa mais um passo na conquista do coração de Ismália, o que é altamente reforçado pelas vários closes da moça. Outra cena que ilustra o mesmo ponto ocorre logo antes da chula, quando Licurgo avança para bater em um dos negros, porque os homens estavam cantando, mas Antero intercede e assume a responsabilidade da cantoria.

Neste ponto, vale um pequeno parêntese na discussão sobre essas cenas. Tanto a cena da música de Fandango como a da chula evidenciam outro ponto importante com relação à concepção da adaptação cinematográfica de ―O Sobrado por parte de Durst. Essas cenas representam dois momentos de espetáculo ou de ―cinema de atrações‖, conforme termo utilizado por Tom Gunning, nos quais a narrativa do filme fica suspensa para enfatizar os elementos culturais e folclóricos que qualificam o mundo retratado. O cinema de atrações foi uma vertente predominante na era pré-griffithniana, especialmente até 1906-7, mas que nunca abandonou a sétima arte, apenas passando para um nível subordinado à narrativa e ocasionalmente se manifestando em filmes como O Sobrado. Segundo Gunning (1990, p. 58)4,

[…] o cinema de atrações chama a atenção do espectador diretamente, incitando a curiosidade visual e fornecendo prazer através de um espetáculo emocionante – um evento singular, ficcional ou documentário, que por si só é interessante.

Ainda de acordo com o mesmo autor, os filmes característicos dessa vertente preocupam-se ―menos com o contar de uma história e mais com a apresentação de uma série de apresentações para o público, que são fascinantes pelo seu poder ilusório (…) e exotismo (GUNNING, 1990, p. 57, grifo nosso).

Vale lembrar que a literatura de Erico Veríssimo, apesar de lidar com a especificidade histórica de suas representações, não cede ao apelo do regionalismo, conforme análise de Loureiro Chaves (2001, p.38-40). O filme, entretanto, difere do livro no seu tratamento regionalista dos personagens, que nessas duas cenas constituem mais tipos que indivíduos especificamente. Como lembra Lucia Miguel Pereira a respeito da definição de regionalismo:

O regionalista […] entende o indivíduo apenas como síntese do meio a que pertence, e na medida em que se desintegra da humanidade; visando de preferência o grupo, busca nas personagens não o que encerram de pessoal e relativamente livre, mas o que as liga ao seu ambiente, isolando-as assim de todas as criaturas estranhas àquele. Sobrepõe, destarte, o particular ao universal, o local ao humano, o pitoresco ao psicológico, movido menos pelo desejo de observar costumes – porque então se confundiria com o realista – do que pela crença o seu tanto ingênua de que divergências de hábitos significam divergências essenciais de feitio. É por isso fatalmente levado a conferir às exterioridades – à conduta social, à linguagem, etc. – uma importância exclusiva, e a procurar ostensivamente o exótico, o estranho. Há na sua atitude alguma coisa da do turista ansioso por descobrir os encantos peculiares de cada lugar que visita, sempre pronto a extasiar-se ante as novidades e exagerar-lhe o alcance. (PEREIRA, 1973, p. 179-180; grifo nosso)

As cenas da Nau Catarineta e da chula, que consomem aproximadamente sete minutos do filme, demonstram que, em O Sobrado, o tratamento regionalista assume uma atitude de exotismo com relação à cultura gaúcha, explorada em seu viés mais típico e espetacular, através da dança e da música. Talvez tal abordagem deva-se ao fato de tratar-se de um filme paulista, filmado em estúdio em São Bernardo (SP), sobre a história e a cultura do Rio Grande do Sul. Contando com a assessoria de Barbosa Lessa, fundador do primeiro Centro de Tradições Gaúchas (CTG) e pesquisador de danças e músicas gaúchas, a produção do filme decidiu explorar a riqueza do folclore gaúcho no seu lado mais espetacular e regionalista. Assim, Durst incorreu em um tipo de exotismo muito parecido com o que sua crítica denunciara em Caiçara, como elemento da ignorância da Vera Cruz em relação à realidade brasileira.

Voltando à caracterização do antagonista de Licurgo, nota-se que Antero também possui o romantismo que falta ao outro personagem, como podemos observar, por exemplo, quando Ismália e Antero se enamoram a um canto da sala e um dos peões conta uma história. O peão conta como Maria Rita quisera casar com ele, mas ele preferiu ficar com seu cavalo, com desfecho cômico e logo em seguida melancólico, já que a moral da história é que é ―melhor quando ele [o peão] tem uma chinoca na garupa. A história é praticamente toda contada em voiceoff, enquanto acompanhamos Ismália cuidando de um ferimento de Antero e os dois trocando olhares enamorados. Ao final dessa história, o enquadramento, a partir do casal, emoldurando o fogo, e a trilha sonora sugerem que a história serve para unir de vez o destino dos dois, o que mais tarde se confirma quando Antero faz referência à moral da história e os dois fogem juntos. O subenredo que envolve a aproximação de Ismália e Antero, que não existe no romance de Erico, é muito eficiente na adaptação do roteiro por Durst, pois instaura definitivamente o embate entre Antero e Licurgo, que passam a disputar o papel de liderança do grupo do Sobrado e o amor (ou posse, no caso de Licurgo) de Ismália. Além de reforçar a oposição entre os dois, o subenredo romântico pode ter sido um dos responsáveis pelo sucesso de bilheteria do filme, já que remete à tradição hollywoodiana de tramas que sempre contam com um enredo amoroso heterossexual. Conforme explica David Bordwell em seu estudo sobre a narrativa clássica hollywoodiana:

O filme clássico [hollywoodiano] possui no mínimo duas linhas de ação, ambas ligando causalmente o mesmo grupo de personagens. Quase que de forma invariável, uma dessas linhas de ação envolve um romance heterossexual. (…) Os manuais de roteiro enfatizam que o amor é o tema de maior apelo humano. Os traços das personagens geralmente são atribuídos conforme seu sexo, dando a personagens masculinos e femininos aquelas qualidades consideradas adequadas aos seus papéis no romance. Ganhar o amor de um homem ou de uma mulher torna-se o objetivo de muitas personagens em filmes clássicos. Nessa ênfase sobre o amor heterossexual, Hollywood dá continuidade a tradições oriundas do romance de cavalaria, do romance burguês e do melodrama norte-americano. (BORDWELL, 1985, p. 16)5

Essa afiliação com a tradição hollywoodiana evidencia o conhecimento que Durst havia internalizado a respeito de tais roteiros durante seu programa Cinema em Casa, no qual analisava roteiros e os adaptava para o rádio (cf. GALVÃO, 1981, p. 181-195).

Entretanto, essa mesma identificação com Hollywood expõe a contradição de Durst como o cineasta que criticava o resultado alcançado com Caiçara porque a Vera Cruz, em sua opinião, baseava-se sobremaneira em tradições e estéticas estrangeiras, ignorando a realidade brasileira (cf. GALVÃO, 1981, p. 181-195). Além disso, seguindo a tradição clássica hollywoodiana, o subenredo romântico de O Sobrado liga-se ao enredo principal do filme, que trata da vitória de um peão contra o seu patrão. Ismália apaixona-se por Antero ao mesmo tempo em que toma consciência de sua situação de subalterna, identificando o passado de seu pai com a história de exploração que envolve o irmão de Antero.

Mais uma vez é interessante observar a liberdade com que o roteirista utiliza o material literário, apesar de apresentar o filme como ―extraído da obra de Erico Verissimo, o que poderia sugerir uma ligação mais estreita entre os dois textos. A história que Ismália Caré conta sobre seu pai no filme consta no romance, só que não é de Chiru Caré, seu pai, e tem uma finalidade bastante diversa. No livro, trata-se da história de Mingote Caré, um parente distante, na parte em itálico após o segmento ―A teiniaguá (cf. VERISSIMO, 2004b, p. 163). Esse trecho de O Continente apresenta um estilo narrativo próprio, com um ponto de vista mais amplo em relação aos fatos narrados, e leva a crer que seu narrador não é o mesmo que o dos outros capítulos, embora tal hipótese mereça um estudo próprio. Esse trecho tece comentários a respeito de alguns membros da família dos Caré, que simbolizam os gaúchos pobres da história e que só começam a participar da trama central de O tempo e o vento a partir do relacionamento entre Licurgo e Ismália. De qualquer forma, Durst se apropria de forma muito eficiente da pequena história do roubo de cavalo de Mingote, que caracteriza a pobreza e a necessidade da família toda, ligando esta trama diretamente à Ismália.

Na penúltima cena do filme, quando Licurgo está na superintendência, prestes a enviar um telégrafo a Júlio de Castilhos, ele declara que ―esse é um momento histórico, o que no filme adquire um sentido duplo que revela o teor ideológico exclusivo do filme. Por um lado, em conformidade com a representação do passado no romance de Erico, trata-se de um momento histórico por consagrar a vitória pessoal de Licurgo sobre a família Amaral, bem como a sua consolidação política, como chefe municipal do Partido Republicano. Por outro lado, porém, a história de Chiru Caré e João Góes é subvertida no ato do recém-promovido Gervásio, que, contrariando as ordens de Licurgo, permite que Antero e Ismália partam ilesos. A atitude de Gervásio simboliza, logicamente, a vitória do programa ideológico defendido por Antero contra o sistema de exploração encarnado por Licurgo, assim instaurando a luta de classes no universo retratado.

Em resumo, no filme, o esvaziamento da caracterização de Licurgo significa que a história da família Cambará no final do século XIX não é mais a da sua consolidação no poder municipal nem a de sua entrada oficial para a história nacional, como ocorre em O Continente, senão a história da ruína de Licurgo, abandonado por Ismália no desfecho da adaptação e desmoralizado em frente a seus empregados e familiares, sobretudo na cena da marcação. Licurgo, ao tentar marcar Antero a ferro quente como ladrão, acaba sendo, em vez disso, queimado, em uma cena que alude a um trecho famoso do capítulo ―Um certo capitão Rodrigo‖, de O Continente, em que o protagonista desse segmento marca a testa de Bento Amaral a faca, com a inicial do seu nome, o que representa uma das primeiras tentativas de desafiar o poder constituído e detido pela família Amaral em Santa Fé. No filme O Sobrado, a marcação é retrabalhada pelo roteiro para simbolizar a perda de poder dos Cambarás. Em um contexto de derrotas pessoais, o sucesso bélico-político do cerco possui menor relevância no filme que no livro, já que a trama do filme se concentra na disputa de poder entre Licurgo e Antero.

O caráter esquemático da relação entre proletário e patrão, projetada nos personagens da Revolução Federalista durante o cerco ao Sobrado, leva à construção de uma representação pouco problematizada do processo histórico no filme, quando comparada com a do romance. Mesmo a partir de uma perspectiva marxista, sugerida pela própria trama do filme, interessaria identificar e demonstrar os conflitos sociais da época retratada, o que tornaria inteligível a relação entre tais eventos e os conflitos do presente. Nas palavras de Hayden White:

Os marxistas não estudam o passado para reconstruir o que aconteceu nele, no sentido de determinar quais eventos ocorreram em épocas e lugares específicos. Eles estudam a história para descobrir as leis da dinâmica histórica. São essas leis que governam as mudanças sistêmicas nas formações sociais, e o conhecimento dessas leis (e não da estrutura) é o que permite que os marxistas prevejam as mudanças prováveis de ocorrer em qualquer sistema social atual. O conhecimento dessas leis processuais possibilita que façamos a distinção entre programas “realistas” e “ilusórios” para realização de mudanças sociais. Somente se conseguirmos mapear de forma precisa como a história foi até o presente, é que poderemos saber o que é possível e o que é impossível em qualquer programa social projetado no presente para o futuro. (WHITE, 1987, p. 146-147, grifo nosso)6

Em  outras  palavras,  trata-se  de  apresentar  o  passado  como  a  ―pré-condição concreta do presente, da forma defendida por Georg Lukács por todo O romance histórico (1983, p. 21, 24, 34), precisamente o que o filme O Sobrado deixa de realizar ao ignorar os conflitos específicos que motivaram a Revolução Federalista. Em vez disso, resume a história do período a figurino, cenário e ao embate esquemático entre patrão e empregado, como uma versão do conflito entre mocinho e vilão típico do cinema hollywoodiano. No entanto, cabe uma ressalva a respeito dessa acusação de que a representação do passado em O Sobrado é esquemática e excessivamente resumida: enquanto O tempo e o vento conta com aproximadamente duas mil páginas para traçar o panorama histórico da crise do patriarcado rural do Rio Grande do Sul, o filme conta com apenas aproximadamente noventa minutos (lembrando que, em termos muito gerais, cada página de roteiro corresponde a um minuto de filmagem). Mesmo se restringirmos essa comparação de disponibilidade narrativa a O Continente, veremos que a escolha de apenas um capítulo do romance já determina uma visão limitada do processo histórico apresentado na adaptação. Embora Durst tenha tentado resolver a questão incluindo elementos do restante do romance, e ainda que o segmento ―O Sobrado tenha relativa independência narrativa – início, meio e fim –, de fato fica comprovado que ele depende do restante do romance (e da trilogia) para ativar as suas relações de significado mais profundas. Assim, a partir de uma perspectiva da construção de uma representação crítica do processo histórico com base na organização formal e no estilo visual do filme, o esvaziamento da caracterização de Licurgo impede a sua realização como um nível de consciência prosaico, mediano, com qualidades e defeitos, que o identificaria com o processo mais amplo e representativo da sociedade da época. O ponto de vista coletivo, através dos efeitos da história sobre o núcleo familiar, a especificidade do período histórico e a lenta mudança social, política, econômica e cultural no interior do Rio Grande do Sul no final de século XIX – atributos efetivos na representação do passado no romance – são substituídos por uma representação ora regionalista ora marxista vulgar de interpretação da história, que pressupõe que a realidade em 1895, em 1956 ou em 2012 independe do contexto específico de cada época.

Independentemente das limitações estéticas do filme de Durst e Mendes, O Sobrado teve um papel relevante na história do cinema brasileiro, pois, além de possibilitar a retomada da produção do cinema paulista ligado à infraestrutura da Vera Cruz, ele evidencia a maior liberdade dos cineastas com relação a todo o processo de produção, se comparado aos filmes anteriores da companhia. O viés esquerdista-marxista de O Sobrado também anuncia a ideologia que nortearia o Cinema Novo a partir da década de 1960. Porém, afora os aspectos ideológicos, o modo de produção do filme ainda foi o de estúdio, embora não mais por opção  e sim por ser o mais economicamente viável àquele grupo de cineastas. Portanto, na metade  da década de 1950, o cinema brasileiro (mais especificamente, o paulista) começava a buscar alternativas aos problemas do cinema industrial, um caminho que mais tarde seria trilhado com sucesso pelo Cinema Novo. Além disso, a aliança entre o cinema e a televisão, que possibilitou a produção de O Sobrado a custos muito baixos se comparado aos filmes anteriores da Vera Cruz, também apontou uma solução, diferente daquela encontrada pelo Cinema Novo, mas que hoje em dia se tornou predominante no cinema brasileiro.

Notas

1 Termo usado originalmente com relação ao teatro, nos estudos cinematográficos significa o controle que o diretor exerce sobre tudo o que aparece na tela, incluindo cenografia, iluminação, figurino e comportamento dos atores, antes do início das filmagens (BORDWELL, 1997, p. 169).

2 Em Hollywood e em outros cinemas que seguem as suas convenções, tornou-se uma prática padrão a adoção de um sistema de iluminação de três pontos, que consiste de uma luz principal, uma luz de preenchimento e uma contraluz. Esse sistema de iluminação de três pontos também está ligado a uma iluminação principal alta, que utiliza a luz de preenchimento e a contraluz para reduzir o contraste entre as áreas mais claras e as mais escuras. Esse sistema de iluminação, identificado com o cinema hollywoodiano, é um dos elementos responsáveis por causar a impressão de invisibilidade do aparato cinematográfico (cf. BORDWELL, 1997, p. 179-182).

3 Tradução minha (T.M.)

4 T.M

5 T.M.

6 T.M.

Referências

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Mateus da Rosa Pereira é Doutor em Letras/Literatura Comparada. Professor de Língua Inglesa e Literaturas Correspondentes no IFRS – Campus Osório. Membro do Grupo de Pesquisa ELLOS – Estudos Linguísticos e Literários. O presente artigo é um dos resultados da pesquisa iniciada no doutorado desenvolvido junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, defendido em 2011, com bolsa CNPq, sob orientação da Prof. Dra. Márcia Ivana de Lima e Silva. Esta versão foi revisada e ampliada com base nas análises desenvolvidas na tese de doutoramento. Foi originalmente publicado nos Cadernos de Semiótica Aplicada Vol. 10.n.2, dezembro de 2012 E-mail: mateusdarosapereira@yahoo.com.br

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