A JORNALISTA CLARICE LISPECTOR – DÉBORA MUTTER
Clarice Lispector (1920 – 1977) possui uma dicção literária exclusiva que pode causar emoções intensas, sejam de compaixão, de enternecimento ou de repulsa. A qualidade e a constância de temas universais, trabalhados a partir de situações banais em narrativas com poucos acontecimentos e peripécias, fazem da escritora quase uma unanimidade, mas há o “quase”.
Este cenário, porém, não foi e não é tão pacífico, pois se uma parcela de leitores considerava sua ficção impenetrável, a outra a reverenciava num encantamento quase religioso, situação que persiste até nossos dias. Sua obra e sua figura enigmáticas evocam mistério, como definiu Carlos Drummond Andrade: “Clarice veio de um mistério, partiu para outro/ Ficamos sem saber a essência do mistério./ Ou o mistério não era essencial,/ era Clarice viajando nele…”[1]

A partir de sua estreia na literatura com o livro Perto do coração selvagem, Clarice Lispector (1943) desenhou uma trajetória ímpar na literatura brasileira produzindo uma literatura atemporal. No intervalo entre sua primeira e última publicação em vida – A hora da estrela (1977) –, Clarice criou um espaço exclusivo em nossas letras, sendo considerada a maior escritora brasileira. Embora escrevesse ficção desde os sete anos de idade, trabalhou como jornalista antes de ser a escritora consagrada e seguiu até o fim de sua vida profissional. Sua última entrevista como jornalista aconteceu um mês antes de perder a batalha para um câncer, no dia 09 de dezembro de 1977. Vale dizer que Clarice tem imensa produção na imprensa, embora esse aspecto considerado mais prosaico de sua carreira seja pouco explorado.
Talvez devido ao impacto e às dificuldades que causava aos críticos para classificarem o que ela escrevia na ficção, a produção da jornalista Clarice Lispector ficou preterida no interesse de pesquisadores e intelectuais. Mas inclusive para ela própria o jornalismo era apenas trabalho de sobrevivência, como escreveu em sua coluna no Caderno de Sábado do Jornal do Brasil – onde trabalhou durante seis anos (1967 – 1973) – num texto intitulado Anonimato: “Aliás, eu não queria mais escrever. Escrevo agora, porque estou precisando de dinheiro. Eu queria ficar calada.” (LISPECTOR, 1999, p.76).
A questão que se apresenta a quem lê toda a obra de Clarice Lispector seja no meio nobre e duradouro dos livros ou no efêmero de revistas e jornais é perceber que aquilo que chamamos de dicção literária própria extravasa o espaço da literatura, dominando as diversas mídias e gêneros em que ela escreveu. A escrita de Clarice corresponde a uma voz que nunca se afasta de um núcleo irradiador de alta potência estética e filosófica e que não se subordina às fronteiras impostas pela cultura, tais como os gêneros textuais. A relação de Clarice Lispector com a escrita é única e incontornável, daí a parecer que está sempre a transgredir. Para ela, que se dizia intuitiva, escrever era muito mais do que profissão, era uma forma de vida, uma forma de conhecimento e de compreensão do mundo e de si mesma.
Com base nisso, o objetivo deste ensaio é apresentar características entendidas como transgressoras na produção jornalística de Clarice Lispector. Para tanto, apresentamos, inicialmente, um panorama mínimo dos vínculos entre imprensa e literatura no Brasil até a época em que a escritora começa sua carreira jornalística. Na sequência, incluímos uma sucinta base biográfica da autora, a fim de sublinhar particularidades da jornalista Clarice, seguida da análise de alguns de seus textos na imprensa, associando-os a dados da pesquisa sobre o tema e a manifestações da própria escritora.
Chaya Pinkhasovna Lispector
Clarice Lispector, nascida Chaya Pinkhasovna Lispector, chegou ao Brasil com dois anos de idade, quase junto com a semana de Semana de Arte Moderna (1922) e aqui recebeu o nome de Clarice. Vinha da Ucrânia com a família de refugiados judeus que fugia das guerras locais, da fome e da violência que o regime comunista impunha ao seu povo. De início, instalaram-se em Maceió, depois, em Pernambuco e, por fim, no Rio de janeiro.
No início dos anos 40, a jovem Clarice conciliava os estudos na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro com sua ficção e com atividade na imprensa. Como repórter no jornal A Noite, teve seu primeiro registro na carteira de trabalho, com salário de 600 mil réis. Ao mesmo tempo, trabalhava como redatora para a Agência Nacional (1941) e escrevia ficção. No jornalismo carioca da década de 40, seja como colunista feminina, redatora, repórter, entrevistadora, cronista, ghost writer, Clarice Lispector era uma das poucas mulheres, na redação, onde fez de tudo, exceto coluna social e policial.
Literatura e imprensa no Brasil
Muito antes de a profissão de jornalista ser regulamentada, literatura e imprensa mantêm estreitos laços pela solidariedade da palavra impressa. A fronteira entre a atividade de um literato e a de um colunista ou cronista de jornal era indefinida, e os homens de letras, em sua maioria, ocupavam os espaços variados de jornais e revistas. No Brasil, tais vínculos fixaram-se por meio de três eixos: o folhetim, a crônica e a crítica literária, que ainda não tinha esse nome. O folhetim, surgido no início do século XIX, na França, chegou ao Brasil na segunda metade do mesmo século. A crítica literária e a crônica, na qual se destacavam respectiva e cronologicamente José Veríssimo (1857-1916), Machado de Assis (1859-1900) e João do Rio (1881-1921) em periódicos cariocas da Primeira República, eram espaços de intensas e profícuas polêmicas.
O “crítico de rodapé” surge no final da segunda década do século XX, tendo seu auge nos anos 40, quando Afrânio Coutinho abre polêmica contra o que acusa de impressionismo – nem tudo o era, mas a polêmica existiu. Um dos primeiros e mais relevantes representantes da crítica de rodapé foi Alceu Amoroso Lima, intelectual católico que iniciara de forma sistemática suas atividades de crítico literário no ano de 1919, em O jornal, de onde acompanhava o movimento modernista. Amoroso Lima, que adotou o pseudônimo de Tristão de Athayde, foi um dos críticos da obra ficcional de Clarice Lispector.[2] Sobre seu romance O lustre (1946), ele disse que “havia a mais completa ausência de Deus” e vaticinou a “trágica solidão de Clarice nas letras brasileiras”[3]. Vinte e três anos depois, em fevereiro de 1969, Clarice o entrevistaria como repórter do Jornal do Brasil.
Fecha-se, assim, aqui neste estudo, um circuito estratégico que nos permite falar da jornalista Clarice Lispector, que imprimiu mudanças profundas nos gêneros jornalísticos que exerceu. Em um universo predominantemente masculino, tal como ocorreu na literatura, a escrita híbrida e a linguagem exclusiva de Clarice revolucionaram forma, conteúdo e estilo de escrita até então praticados na imprensa.
A jornalista Clarice Lispector
Em vários momentos de seus textos na coluna do Jornal do Brasil onde trabalhou como colunista e cronista por seis anos (1968- 1973), Clarice manifestava uma espécie de desconforto ou desabafo sobre o escrever para jornal: “Preciso trabalhar muito para ter as coisas que quero ou de que preciso. Acho que livros não pretendo nunca mais escrever. Só vou escrever para este jornal.” (LISPECTOR, 1999, p. 340). Talvez por isso, nem mesmo ela tenha contabilizado seu próprio legado jornalístico.
Contudo, a produção de Clarice Lispector na imprensa, ao longo de sua vida, não é pouca. Ela escreveu cerca de 450 colunas destinadas ao mundo feminino – aproximadamente cinco mil textos – distribuídos em fragmentos de ficção, crônicas, noticiário de moda, conselhos de beleza, receitas de feminilidade, dicas de culinária, educação de filhos e comportamento. Como entrevistadora, foram cerca de 100 textos. (NUNES, 2012) Somente para o Jornal do Brasil, na fase áurea do matutino carioca, publicou centenas de crônicas, que estão reunidas no livro A descoberta do mundo (1999). O livro, porém, é abordado por muitos como literatura, instaurando-se assim um desvio ou uma das primeiras transgressões provocadas por sua escrita no jornalismo.
Clarice Lispector, a despeito do período conturbado que vivia o país durante sua atuação na imprensa, não foi uma intelectual engajada nos moldes usuais do termo, mas fez revolução no seu meio de comunicação com o mundo, mostrando que nem toda transgressão é solar como ela mesma defende em, pelo menos, três ocasiões, a saber: no famoso fragmento “Pesca milagrosa” ao falar da “não palavra”, a entrelinha; em seu livro Água viva, ao dizer “O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas.” (LISPECTOR, 1998, p.86); mas também no jornalismo, em sua crônica “Escrever as entrelinhas”, no Jornal do Brasil (06.11.71): “Quando essa não palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu.” (LISPCETOR, 1999, p.385). A persistência dessa ideia tanto na ficcionista e como na repórter Clarice Lispector sugere que devemos buscar no subtexto de todos os seus escritos uma essência unificadora e constante.
A relação de Clarice com a imprensa começou ainda na infância. A caçula dos Lispector, que seria a maior escritora de todos os tempos no Brasil, iniciou a escrever, enviando suas histórias a um jornal de Recife. Aos sete anos, a menina mandava seus textos para a página infantil do Diário de Pernambuco, que publicava contos criados por crianças. [4] Os seus, porém, nunca eram publicados porque sua escrita subvertia o padrão narrativo das crianças no seu meio.
Entre 1952 e 1961, Clarice escreveu páginas femininas. Sob o pseudônimo de Tereza Quadros (1952), no tabloide Comício do amigo e escritor Rubem Braga. Os textos de Tereza Quadros incluíam conselhos para mulheres, segredos de beleza e receitas de vários tipos; desde receitas de culinária e beleza e também “receitas” para pensar sobre a condição feminina. Ao mesmo tempo, fazia de sua página uma espécie de laboratório para a ficção, cujo exemplo é a receita para matar baratas com porções de gesso e açúcar, que se transformaria futuramente no seu conto A quinta história. Vemos que a vocação literária nunca se ausentava de sua escrita, desviando a finalidade do gênero que praticava no jornal.
Outro exemplo de desvio são os fragmentos de textos e ideias de outros autores como Rilke, Bernard Shaw e Katherine Mansfield, que introduziam questões pouco conservadoras, bem como ideias defendidas por Simone de Beauvoir em O segundo sexo, que à época ainda era inédito no Brasil. Ao introduzir questionamentos sobre o papel e o comportamento das mulheres, a página de Tereza Quadros subvertia o espaço modelador do estereótipo feminino e o discurso hegemônico da imprensa destinada a esse público. Além disso, a própria Tereza Quadros, espécie de alter ego de Clarice Lispector, ao revelar suas leituras pouco convencionais ao público feminino era um exemplo de inspiradora transgressão às suas leitoras. Confirma-se a intenção pela própria escritora que, em carta ao amigo Fernando Sabino, admitiu que o perfil de sua “persona” Tereza Quadros era um pouco feminista: “[…] disposta, feminina, ativa, não tem pressão baixa, até mesmo às vezes feminista, uma boa jornalista enfim.” (LISPECTOR; SABINO, 2001)
Com o pseudônimo de Helen Palmer (1959), assumiu a coluna intitulada “Correio feminino – Feira de utilidades” no Correio da Manhã, ao mesmo tempo em que publicava contos na revista Senhor (onde trabalhava desde 1958). Em 1960, assumiu a página feminina “Só para mulheres”, no Diário da Noite. Neste tabloide, Clarice atuaria como ghost writer da atriz Ilka Soares. Em 10 de fevereiro de 1961, encerra-se a coluna “Feira de utilidades” do Correio da Manhã. O mesmo ocorre com a página de Ilka Soares, que se extingue, com o Diário da Noite, em março do mesmo ano.
Como repórter, na década de sua estreia no jornalismo, Clarice fez uma matéria intitulada “Uma visita à casa dos expostos, a história do português Romão” para a revista Vamos lêr!, que circulou no dia 08 de julho de 1941. Nela, Clarice mescla seu olhar de ficcionista ao da repórter para contar a história do educandário Romão de Mattos Duarte, uma instituição filantrópica que abriga, há mais de 200 anos, crianças enjeitadas pelos pais. A matéria começa com a reprodução textual da placa de bronze à entrada do educandário, seguida da descrição do espaço percorrido pela jornalista até a sala da entrevista, como segue:
Até ler o original estilo da placa de bronze, é preciso atravessar um longuíssimo pátio sombreado, subir a escadaria de pedra, parar um instante diante da Virgem Maria, asilada entre rochas, musgos e fios de água, subir de novo escadas. A sala é grande e clara.
Soeur Voisin fecha as janelas para que o retrato de Romão Duarte refulja na escuridão e conta a sua história:
— Il n’était pas trop riche, mais il était trop bon.. (LISPECTOR, In: Nunes, 2012, p. 438)
Percebemos que “parar diante da Virgem Maria” é uma opção da repórter. O uso do discurso direto com travessão não remete à reprodução fiel de um diálogo, mas à intenção de deixar a responsabilidade da descrição do fundador da casa à administradora. Na sequência, a repórter descreve o retrato do português Romão de Matos Duarte fundador da Casa dos Expostos, duzentos anos antes: “[…] tem um rosto humilde e segura o chapéus nas mãos, como se acabasse de pedir um favor. Num belo dia de sua vida, lá pelos anos de 1700, Romão abriu a porta e viu um bebê depositado na soleira.”. (LISPECTOR In: Nunes, 2012, p. 440)
As estratégias narrativas da matéria envolvem interpretações subjetivas de Clarice Ao descrever a trajetória dos expostos ao longo da vida na casa, ela diz: “Às vezes o exposto se enxerta de tal modo à nova árvore, que dela só se desprende quando murcho. Assim, ainda mora na Casa dos Expostos uma turma de velhinhos que nunca se lembrou de fugir.” (LISPECTOR In: Nunes, 2012, p. 456) Naturalmente, não ocorreria à administradora falar em fuga, mas sim à repórter que interpretava o ambiente e incorporava em suas emoções as histórias daquelas almas enjeitadas.
Sua linguagem não é a objetiva de repórter, e ela não seleciona apenas o factual, ao inserir sua imaginação, e assim é toda a matéria. Conclui com uma advertência sobre uma nova lei que proibiria a continuidade da Casa dos Expostos: “Não é proibindo a aceitação de crianças não identificadas que se acabará com o nascimento delas. […] Mesmo porque é preciso não esquecer: além do infrator ao dispositivo penal, há o Bonifácio e Regina Aparecida que não têm a menor culpa.” (LISPECTOR In: Nunes, 2012, p.526) Ao imiscuir as suas convicções pessoais sobre o tema da reportagem, Clarice rompe a fronteira da imparcialidade na notícia. Ela recusa o papel de mera transmissora de informações, filtrando-as em sua inclinação pelos oprimidos.
O sentimento com relação aos socialmente desfavorecidos reapareceria em algumas crônicas em sua coluna no Jornal do Brasil como a intitulada O que eu queria ter sido: “E eu sentia o drama social com tanta intensidade que vivia de coração perplexo diante das grandes injustiças a que são submetidas as chamadas classes menos privilegiada. (LISPECTOR, 1999, p,149). E na crônica Literatura e Justiça: “Desde que me conheço, o fato social teve em mim importância maior do que qualquer outro: em Recife os mocambos foram a primeira verdade para mim. Muito antes de sentir arte, senti a beleza profunda da luta.” (LISPECTOR, 1996, p. 123-124)
Porém, foi como entrevistadora que Clarice atuou pela primeira vez na imprensa, três anos antes de sua estreia na ficção – Perto do coração selvagem surgiria apenas em 1943. Em 1940, trabalhando na revista Vamos lêr!, Clarice entrevistou o poeta Tasso da Silveira, que era diretor da revista Pan. A revista editada pelo grupo de A noite e pioneira na divulgação de artigos científicos acessíveis ao público não especializado, era politizada e tinha também viés literário.
Aquela primeira entrevista com o poeta Tasso da Silveira foi considerada exemplar e a consagrou como jornalista, inaugurando um estilo diferente de entrevistar.[5] Clarice altera a forma usual de entrevista ao reduzir a distância em relação ao entrevistado, ela insere assuntos de seu próprio interesse, além de compartilhar ou antecipar suas impressões sobre o assunto abordado, como no trecho em que se refere à Segunda Grande Guerra: “Não se sente abalado na fé diante do que acontece na Europa? Eu explicaria a guerra simplesmente como um fato social normal, quase fatal. Mas ao senhor cabe justificá-la, além de explicá-la…” (LISPECTOR, In: Nunes, 2012, p.364) Como se vê, a entrevistadora inclui na pergunta a sua própria posição sobre o tema.
Clarice voltaria a atuar como entrevistadora entre maio de 1968 e outubro de 1969, em “Diálogos possíveis com Clarice Lispector” da revista Manchete, onde realizou 60 entrevistas, trabalhando em simultâneo sua coluna de crônicas, aos sábados, no Jornal do Brasil. Entre 1976 e 1977, na revista Fatos e Fotos/Gente, da Bloch Editores, realizou mais 27 entrevistas, sendo a última pouco mais de um mês antes de sua morte em 10 de dezembro de 1977.
Clarice dilui as fronteiras entre a sua voz e a dos entrevistados. As entrevistas estão publicadas no livro De corpo inteiro (1975), que foi levado ao cinema no documentário com título homónimo, sob a direção de Nicole Algranti em 2008.[6] Entre os entrevistados, Erico Verissimo; Pablo Neruda; Fernando Sabino; Hélio Pelegrino; Chico Buarque; Tônia Carrero; Oscar Niemeyer, Bibi Ferreira; Tarcísio Meira; Tom Jobim; Jardel Filho, Paulo Autran, o Isaac Karabtchevsky, Ivo Pitanguy, Clóvis Bornay, Nélida Piñon e outros. Com estilo despretensioso e profundo, Clarice mostra que entrevistar é uma arte. Seu método não era casual como muitos poderiam supor. Em entrevista sobre o livro, concedida à Isa Cambará, na Revista Veja, Clarice revela que se expôs e que seu método envolvia muita conversa evitando as clássicas perguntas e respostas. [7]
Seu depoimento confirma a estratégia conscientemente adotada, a fim de extrair o melhor do entrevistado, mas também a intenção de romper com o modelo tradicional de entrevistas sem neutralidade. Uma apresentação breve e subjetiva, informando algo sobre si mesma e sobre o entrevistado, foi a sua marca inaugural e definitiva tanto na entrevista com Tasso Silveira (1940) como na entrevista de Tom Jobim: “Tom Jobim e eu já nos conhecíamos: ele foi o meu padrinho no Primeiro Festival de Escritores, quando foi lançado meu livro A maçã no escuro. Ela fazia brincadeiras: segura o livro na mão e perguntava: quem compra?” (LISPECTOR IN: Nunes, 2012, p.1870) Outro exemplo dessa participação surge na entrevista com Alceu Amoroso Lima, quando pergunta: “ — O senhor já se sentiu alguma vez em estado de graça? Eu, humildemente, já senti, mais de uma vez. Morro de saudade de sentir de novo, mas tanto já me foi dado que não exijo mais.” (LISPECTOR, 1999, p. 176)
Como entrevistadora, outra característica sua era buscar a revelação de algo inesperado por parte do entrevistado. Ambas as técnicas utilizadas naquela entrevista inaugural de sua vida de jornalista seriam adotadas, nas décadas de 60 e 70, nas duas séries de entrevistas para Bloch Editores. As entrevistam revelam que Clarice conhecia ou estudava profundamente aspectos da vida do entrevistado, fazendo as perguntas fluírem no meio de uma pensada espontaneidade com estocadas agudas. É o caso da entrevista com Érico Veríssimo, em que ela explora as diversas possibilidades de análise psicológicas e a complexidade das personagens do escritor, mas também sua relação com a crítica literária e sua vida íntima ao perguntar: “Por que você acha que não agrada aos críticos e intelectuais?”, “Se sente realizado como escritor?”. E mais impertinente: “E como homem?”[8]
Quanto às crônicas publicadas no Jornal do Brasil, ao todo, 466, são textos que só recebem nome de crônica por força da necessidade editorial de classificar os textos em gêneros. Aproveitando a alusão acima à entrevista com Alceu Amoroso Lima, destacamos outro tipo de transgressão, ou seja, a entrevista publicada na coluna de crônicas no Jornal do Brasil. O fato é que seus escritos longos ou curtos, de circunstância ou escritos para sobreviver materialmente, provocam estranhamento e inquietação, ao tempo em que instauram mais uma revolução no jornalismo. Um exemplo disso surge na crônica intitulada “Ser cronista”:
Sei que não sou, mas tenho meditado ligeiramente no assunto. Na verdade, eu deveria conversar a respeito com Rubem Braga, que foi o inventor da crônica. Mas quero ver se consigo tatear sozinha no assunto e ver se chego a entender.
Crônica é um relato? É uma conversa? É o resumo de um estado de espírito? Não sei, pois antes de começar a escrever no jornal do Brasil, eu só tinha escrito romances e contos. (LISPECTOR, 1999, p. 113)
Clarice não faz a crônica tradicionalmente praticada pelo escritor Rubem Braga conhecido como criador do gênero, a quem ela admirava. Ela utiliza seu espaço de cronista no jornal para problematizar o próprio gênero, como ocorre em vários momentos, ao longo dos anos em que foi titular da coluna. Dilema que também comparece no texto intitulado Máquina escrevendo: “Vamos falar a verdade: isto aqui não é crônica coisa nenhuma. Isto é apenas. Não entra em gênero. Gêneros não me interessam mais. Interessa-me o mistério.” (LISPECTOR, 1999, p. 347)
Ao problematizar a forma textual e seu conteúdo, Clarice abandona certo recato editorial, instaurando algo novo para os leitores do jornal, que passam a participar dos bastidores daquilo que leem. O mesmo ocorre quando discorre sobre a diferença entre escrever jornal e escrever livros na coluna do dia 09.05.1970: “Escrever para jornal não é tão impossível: é leve, e até mesmo superficial: o leitor, em relação a jornal, não tem nem vontade nem tempo de se aprofundar. Mas escrever o que se tornará depois um livro exige às vezes mais força do que aparentemente se tem.” (LISPECTOR, 1999, P.286) Outro exemplo é quando ela reflete sobre forma e conteúdo: “A dificuldade de forma está no próprio constituir-se do conteúdo, no próprio pensar ou sentir, que não saberiam existir sem sua forma adequada e às vezes única.” (LISPECTOR, 1999, P. 255)
Há momentos em que ela exalta as vantagens de ser colunista quanto à simpatia que recebe dos leitores como é o caso em Adeus, vou-me embora, publicadaem 20.04.1968, no excerto que segue:
Sou uma colunista feliz. Escrevi nove livros que fizeram muitas pessoas me amar de longe. Mas ser cronista tem um mistério que não entendo: é que os cronistas, pelo menos os do Rio, são muito amados. E escrever a espécie de crônica aos sábados tem me trazido mais amor ainda. (LISPECTOR, 1999, p. 95)
Tais contradições decorrem do conflito íntimo e reiterado entre a jornalista e a escritora, o qual ressurge em sua coluna do dia 29.08.1972, no Jornal do Brasil, intitulada Escrever para jornal e escrever para livro, como segue:
Hemingway e Camus foram bons jornalistas, sem prejuízo de sua literatura. Guardadíssimas as devidas e significativas proporções, era isso o que eu ambicionaria para mim também, se tivesse fôlego.
Mas tenho medo: escrever muito e sempre pode corromper a palavra. Seria para ela mais protetor vender ou fabricar sapatos: a palavra ficaria intata. Pena que não sei fazer sapatos. (LISPECTOR,, 1999, p.421)
Questionamentos dessa ordem, inseridos no espaço onde deveriam existir crônicas no sentido tradicional, talvez surpreendessem os leitores de sua coluna, mas não os afastavam conforme ela registra no mesmo texto:
Um jornalista de Belo Horizonte disse-me que fizera uma constatação curiosa: certas pessoas achavam meus livros difíceis e no entanto achavam perfeitamente fácil entender-me no jornal, mesmo quando publico textos mais complicados. Há um texto meu sobre o estado de graça que, pelo próprio assunto, não seria comunicável e no entanto soube, para meu espanto, que foi parar até dentro de um missal. Que coisa! (LISPECTOR,, 1999, p.421)
Ao mesclar diatribes próprias de escritores e jornalistas, Clarice partilha, com os leitores, questões alheias aos seus cotidianos, expandindo seus horizontes.
Outro exemplo dessa mescla que gera textos híbridos entre noticiário e ficção é a crônica Um grama de radium, escrita por Clarice Lispector para revista Senhor, no qual relata a morte de um criminoso afamado por seus crimes no Rio de Janeiro. José Rosa de Miranda, conhecido como Mineirinho foi morto pela polícia com treze tiros. O texto foi posteriormente publicado no livro de crônicas, Para não esquecer com o título de “Mineirinho” acabou sendo um de seus contos mais pungentes. Como se vê na seguinte passagem, o texto numa primeira pessoa em nada imparcial assume a compaixão da revolta diante da violência policial, diante dos treze tiros quando apenas um seria suficiente para matar;
Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro. (LISPECTOR, 1985, p.216)
Aí está a eclosão da inconformidade com a violência policial, com a questão dos oprimidos que percorre de forma discreta toda a escrita de Clarice seja na ficção seja no jornal.
Há muito a ser explorado na produção jornalística de Clarice Lispector. Os poucos exemplos aqui reunidos revelam que ela oferecia aos seus leitores da imprensa, à época, a possibilidade de refletirem sobre os bastidores das páginas que liam, de moverem-se num limiar cruzado com a ficção. Sua escrita híbrida oferece um mundo de possibilidades de trânsitos entre os mais diversos gêneros e meios nos quais atuou na imprensa. Suas ações concretas, porém discretas e, por isso mesmo, mais subversivas do que se adotadas com estridência revolucionária, conseguiram burlar algumas ordens vigentes nas práticas jornalísticas. Nas páginas femininas, seu estilo não alertava os guardiões dos costumes e tradições. Nas entrevistas, ela impunha um tom pessoal, transformando o padrão de perguntas e respostas. Nas colunas de jornais, reiterava inquietações sociais e revoluções formais já protagonizadas na sua ficção.
Há uma rede de conexões que liga vários textos de Clarice Lispector, reiterando rupturas em tudo que escreveu na ficção e na imprensa, mas revelando, acima de tudo, o quanto ela era movida por convicções íntimas, essenciais. De forma sutil, porém sistemática e ininterrupta Clarice nunca transigiu de si mesma por meio da escrita. Indiferentemente ao meio – jornal ou livro –a repórter e a entrevistadora indicavam desde o começo os pressupostos norteadores de seu método jornalístico, mas, sobretudo, a constância de uma personalidade profissional delineada e marcante na intenção de subverter ordens e inaugurar paradigmas sempre a partir da linguagem. A mesma escrita que promoveu um inegável avanço nos padrões narrativos predominantes do século XX, inaugurou um jornalismo peculiar, em vários registros que já pertencem à história do jornalismo no Brasil.
O caos pressentido inicialmente revelou-se um organizado método, ancorado num sólido pensamento nuclear e insubmisso a regras externas e prévias. Clarice quebrou regras, mas sem alardear, por isso, até hoje nos surpreende. Clarice foi vanguarda, como disse Nélida Piñon, manifestando a sua admiração pela colega Clarice: “Nos atuais quadros brasileiros, vanguarda para mim é a permanente crítica ao sistema social e linguístico, que aprisiona o homem a um código bem pensante, e o levou à inconsciência e à automatização”.[9]
Essa constância no modo de escrever, seja em sua produção jornalística, seja em sua ficção, foi anunciada já em Perto do coração selvagem (1943), pela narradora: “tudo que eu fizer é continuação do meu começo” (LISPECTOR, 1998, p.20). Sua escrita vertiginosa persegue a realidade na imanência ou no símbolo das coisas ou da “coisa”. O anseio daquela primeira personagem Joana reaparece nas protagonistas de suas obras seguintes, assim como na jornalista Clarice Lispector. Todas se movem em busca de uma voz e da própria identidade, que nunca é restrita a papéis sociais. Elas repelem estereótipos e, assim como a linguagem, estão sempre na fronteira de uma transgressão.
REFERÊNCIAS
DRUMMOND, Carlos. Visão de Clarice Lispector. In: Jornal do Brasil, Capa edição do dia 10 de dezembro de 1977.
LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Circulo do Livro, 1985.
_____ . Os melhores contos. Walnice Nogueira (Org.). São Paulo: Global, 1996.
_____ . Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
_____ . Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
_____ . A descoberta do mundo. Rio de janeiro: Rocco. 1999.
_____ http://www.elfikurten.com.br/2016/04/erico-verissimo-entrevistado-por.html Acesso em 18jul 2020
LISPECTOR, C.; SABINO, F. Cartas perto do coração. Rio de Janeiro: Record, 2001.
Sem assinatura. Clarice Lispector, mais um livro. E a mesma solidão”.. O Globo. Rio de Janeiro, 25.08.77. In: Cadernos de Literatura Brasileira. Edição Especial – Números 17 e 18. IMS. P.73
NUNES, Aparecida Maria. Clarice na cabeceira – Jornalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.
RESENDE. Otto Lara. O príncipe e o sabiá e outros perfis. Organização: Ana Miranda. Companhia das Letras – 1994.
SABINO, F. Gente. Rio de Janeiro: Record, 4. ed, 1996.
SANDRONI, Tânia. “A bela e a fera: a reafirmação e a subversão do estereótipo feminino nas colunas de Tereza Quadros, máscara de Clarice Lispector”. Tese defendida em 2018 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, sob orientação da Profa. Dra. Ivone Daré Rabello. Essa informação configura-se como um achado crítico da pesquisa desenvolvida.
SANDRONI, Tânia. “A transgressão do discurso hegemônico da imprensa feminina nas colunas de Tereza Quadros, máscara de Clarice Lispector”. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP nº 23 – dezembro de 2019. file:///C:/Users/Usu%C3%A1rio/Downloads/43284-132377-1-PB.pdf Acesso em 31 de jul de 2020.
Cadernos de Literatura Brasileira. Edição Especial – Números 17 e 18. IMS https://issuu.com/ims_instituto_moreira_salles/docs/clb_clarice_lispector/75 Acesso em 31 de jul de 2020.
CASTELLO, José. http://rascunho.com.br/teoria-do-desconhecimento/ Acesso em 31 de jul de 2020.
PIÑON, Nélida In: Cabine Cultural http://cabinecultural.com/2013/12/20/clarice-lispector-revisitada-de-corpo-inteiro/ Acesso em 12.07.2020. ALGRANTI, Nicole. De corpo inteiro. Documentário baseado no livro com entrevistas de Clarice Lispector. 2008 http://lacanempdf.blogspot.com/2018/12/dvd-de-corpo-inteiro-entrevistas.html?m=1
[1] DRUMOND, Carlos. Visão de Clarice Lispector. In: Jornal do Brasil, edição do dia 10 de dezembro de 1977.
[2] Quando foi publicado seu último livro, A hora da estrela, Clarice enviou um exemplar a Tristão de Athayde, no qual escreveu a mão: “Eu sei que Deus existe.” A mensagem era motivada pela crítica que ele fizera, trinta e um anos antes, ao livro O lustre sobre o qual dissera que havia “a mais completa ausência de Deus”. MOSER, Benjamim. 2009.
[3] Clarice Lispector, mais um livro. E a mesma solidão. Sem assinatura. O Globo. Rio de Janeiro, 25.08.77. In: Cadernos de Literatura Brasileira. Edição Especial – Números 17 e 18. IMS. P.73
[4] IMS (2004). Clarice Lispector. Cadernos de Literatura Brasileira. Edição Especial nºs 17 e 18. [S.l.]: Instituto Moreira Salles, P. 58.
[5] Na revista Pan, no mesmo ano de 1940, foi publicado seu primeiro conto intitulado O Triunfo.
[6] http://lacanempdf.blogspot.com/2018/12/dvd-de-corpo-inteiro-entrevistas.html?m=1
[7] Revista Veja. São Paulo, 30.07.75 – In: CLB, IMS, p.73
[8] http://www.elfikurten.com.br/2016/04/erico-verissimo-entrevistado-por.html Acesso em 18jul 2020
[9] http://cabinecultural.com/2013/12/20/clarice-lispector-revisitada-de-corpo-inteiro/
Débora Mutter é professora doutora em Literatura Brasileira e Mestre em Literatura Comparada, ambos pela UFRGS e Pós-doutoranda na PUCRS.