A PARCA – SIMONE SAUERESSIG

A velha tapeceira parou junto à janela, no dia em que Wuhan apareceu nos noticiários. Ela não sabia aonde ficava Wuhan, como a maioria das pessoas que não viviam na China, mas franziu os olhos para o velho relógio de parede que tiquetaqueava, como se ele tivesse algo a ver com isso.

Aos poucos, a quarentena foi se aproximando. A medida que o rádio fervilhava de opiniões, e a TV se dividia em facções, e o presidente da república no qual ela não havia votado fazia declarações estapafúrdias, testando todos os dias a paciência da democracia do país, um silêncio rancoroso se espalhava pelas ruas como uma inundação invisível. A tapeceira resmungava sozinha, afofando as almofadas da poltrona junto à janela, a única da casa onde se podia tomar algum sol, embora dali a paisagem fosse aquele deprimente jardim estreito, pouco mais do que um macegal raquítico e alguns talos teimosos de roseiras velhas, que há muito não davam flor alguma. Depois as lojas do bairro foram fechadas e pessoas com máscara passaram a circular como se fossem bandidos mal arranjados de algum dos velhos faroestes que ela vira de menina. A velha tapeceira teve de ouvir os filhos dizendo que precisava ficar em casa, que não poderia ir mais, sequer, à padaria do bairro, comprar o pão-nosso-de-cada-dia. A filha ensaiou trazer alguma farinha, para ver se ela se animava a assar bolos e cucas, o que lhe permitiria não ter o compromisso de vir todos os dias, atravessando uma cidade estranha, metade deserta, metade ocupada por gente assustada demais para acreditar nas notícias, mas a velha só a encarou por cima dos óculos de aro de plástico e isso lhe bastou como resposta.

Como muitas gentes, a velha tecelã resolveu encarar a quarentena com calma. Essas coisas, afinal de contas, não duram para sempre, ela disse a si mesma, e se pôs a arrumar a casa. Limpou todos os cantos, inclusive aqueles onde não mexia há anos, onde se acumulava mais do que poeira, lembranças que ela não queria recordar. Organizou armários, separou roupas, ficou com dores nas costas, espirrou por conta de alguma alergia, encheu sacolas de coisas para dar: roupas, cobertores e até um travesseiro velho, amarelado de baba e lágrimas, de quando o marido morrera. No final das contas, ficou feliz de se ver livre de tudo aquilo, assim com ficou feliz de ter uma desculpa para não ir, mais, aos encontros de quarta-feira à tarde, quando se reunia com outros velhos como ela. Os outros se reuniam, agora, pelas redes sociais, para rir e lembrar e se animar mutuamente, enquanto o tempo escorria entre seus dedos como lágrimas. Mas a velha tapeceira só apareceu em um deles. Depois disse que não sabia lidar com smarthphones, nem tablets, nem notebooks, nem nada que fosse mais complexo do que o controle remoto da TV e não saberia como entrar no grupo sozinha. A mentira reverberou pela casa vazia, mas ninguém duvidou.

Por algum tempo, o silêncio da rua e os resmungos do rádio, os gritos dos pastores na TV pedindo dinheiro em troca de milagres, como se Deus fosse um mercador, ocuparam os tiquetaques do velho relógio de ponteiros finos como agulhas. Mas certa tarde em que ela se esmerava por ignorar o celular colorido que ronronava sem som sobre a mesa da cozinha (sim, ela sabia como desligar o som, como fazer chamadas de vídeo, como viver uma vida virtual. Sabia, mas não queria: era a opção que ela não sabia que não tinha), a tecelã percebeu que do velho relógio, com quem trocava olhares de rancor, saia um fio tênue como teia de aranha, se amontoando em um grande emaranhado atrás da cadeira junto à janela. Era a primeira vez que via isso, e ficou um bocado surpresa. Curiosa, tocou o fio com cuidado. Lembrava um pouco a textura das coisas que tecera na juventude, colchas, tapetes, barras de toalhas, bordados de fronhas. Percebeu que havia um monte daquilo tudo enovelado nas partes sombrias do cômodo, por cima dos móveis, por baixo dos tapetes, um monte suficientemente grande para ameaçar soterrar a cadeira onde tomava sol. Era impressionante que não o tivesse visto antes, mas também compreensível, pois era uma linha quase transparente. Um artigo de luxo, mesmo. Com paciência, organizou o fio em vários novelos, alguns com a textura de linhas que tinha usado para fazer luvas para noivas, sapatinhos de bebê, vestidinhos de batizado, casaquinhos, casacos, blusas e cachecóis. Em breve, amontoando-se debaixo do assento, todos eles interligados, havia uma quantidade imensa de globos que pouco a pouco revelavam cores, posto que a transparência da linha não a impedia de revelar tons, e sua espessura ínfima surpreendia pela resistência. A velha tapeceira olhava o velho relógio com outros olhos agora, olhos de urgência e compreensão. Da máquina de engrenagens metálicas o tempo fluía, enredando e desenredando, balançando-se feito menino no pêndulo de bronze. Talvez ela pudesse ter arrancado o fio, obrigando o relógio a fiar tudo de novo. Poderia. Mas não o fez. A certa altura, inclusive, percebeu que não eram os ponteiros que determinavam o andamento das engrenagens, nem o soar das badaladas – tudo era, muito antes, o contrário do que parecia.

Nesse dia, tirou os ponteiros do mostrador. Tiquetaques depois, pôs-se a tecer o fiapo em pontos caprichados. Sentou-se na poltrona e se embrenhou a tramar o tecido sem sentido, até que percebeu que as cores se tornavam quase sólidas, cores do céu, das árvores, do mar, das ruas por onde ela tinha passado um dia. Alguns tons não lhe renderam uma hora. Outros, se fizeram largos entardeceres, longas tardes e manhãs, noites quase infinitas. Achou que o tecido tinha a cor dos olhos do marido morto, dos filhos, do amante, do pai e da mãe, dos netos que vinham vê-la de vez em quando e acenavam na distância, como se isso fosse o bastante. A velha tecedeira sorria e abanava da janela com uma das mãos, e se aferrava ao tecido com a outra, ocultos ambos, mão e tecido, embaixo do parapeito, e fingia que estava tudo bem, fingia, porque viver não era algo que entendia fazer à distância, a vida que fugia, ponto que escapa na malha intrincada. Os netos junto ao portão diziam que a amavam e que era por amor que ficavam longe, que se encontrariam logo mais, quando tudo acabasse, e ela dizia que acreditava mas, no fundo, tudo o que queria era que eles soubessem que a essa altura da vida, só se conta os dias que se vive e não os que se planeja viver mais além.

Agora, a velha já teceu quase todo o fio do relógio. Não sobrou nenhum novelo, e ela tece os que o relógio lhe dá, agora pouco a pouco. O tecido é longo. Ela precisa escolher entre dar corda na máquina ou tecer mais alguns pontos. Em algum momento o relógio irá parar e a linha findará e aí o trabalho da Parca termina. A velha, agora, pouco levanta os olhos das agulhas. Tem medo de que o fio termine antes dela acabar de tecer o fio cuja cor ela não lembra mais qual é, porque a memória é como aquarela na chuva, e o tiquetaque fia os dias que ela não voltará a viver. Independente do silêncio e do medo da sua morte, que os outros escondem em si, ela tem mais medo, ela tem mais choro, é dos dias que não viveu, dos abraços adiados para sempre, dos beijos que secaram antes de tocar a fronte, e da vida que, como o andar do velho relógio, não voltará.

Nunca mais.

Simone Sauressig nasceu em Campo Bom (RS), em 1964. Estreou na Literatura em 1987. Tem vários títulos publicados dentro do gênero do Fantástico como “A Noite da Grande Magia Branca” (2007), “A Estrela de Iemanjá” (2009), “A Máquina Fantabulástica” (1997), e o livro de contos “Contos do Sul” (2012) bem como a saga “Os Sóis da América” (2013-2014). Participou de diferentes antologias, como “Duplo Fantasia Heroica 3” (2012), “Autores Fantásticos” (2012) e “Ficção de Polpa: Aventura!” (2012). 

FICÇÃO

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