COLECIONANDO ESPÍRITOS – HITALLO DALSOTO
“Loja de Invocações”, informava a placa de madeira balançando sobre a porta. Localizada no fundo de um beco úmido, entre uma loja de chás e uma locadora de vídeos falida. Seria difícil encontrá-la, visto que nem mesmo consta seu endereço nas buscas pela internet. Janice ouviu de uma vizinha, que soube de uma amiga, que ficou sabendo por sua avó, que ouviu de uma criança, sobre a existência de tal estabelecimento. Desesperada por ajuda, optou por procurar o local.
Quando Janice cruzou a porta o som da rua foi abafado. Lá dentro a luz amarela tremia fraca sobre uma mesa pequena de bar – dessas de metal – onde havia um pequeno informativo com o nome da atendente: Suia Sá. Essa que estava atrás da mesa usando chapéu branco e terno preto, sorrindo distraída para a cliente.
– Em que posso ajudar? – perguntou a mulher antes que Janice pronunciasse qualquer palavra.
– Me disseram que você pode me ajudar com… uma situação.
– Quer falar com alguém do outro lado? Tirar uma dúvida com os mortos? Saber quem matou quem? Ou perguntar onde está o testamento?
– Nada disso, preciso que alguém me ensine certas coisas.
– Que tipo de coisas?
– Pintura.
– Você quer aprender a pintar com os mortos? – questionou Suia Sá com um sorriso bobo.
– Se possível.
– Muitas coisas são possíveis na minha loja, mas por que não contrata um profissional vivo para isso?
– Deve parecer que é um dom natural, não pode existir registros que paguei alguém para me ensinar.
– Entendo, entendo. Já atendi muita gente por aqui com objetivos audaciosos; mas seu caso é curioso.
– Imagino que seja. Acontece que sou filha de um pintor, e meu pai esperou a vida inteira que eu seguisse seus passos, infelizmente não tenho aptidão nenhuma para pintura.
– E o que você gostaria de ser?
– Veterinária.
– Então?
– Então que devo isso a ele, tentou me ensinar a pintar desde cedo, pensei que, se eu realizar o sonho dele primeiro, depois possa realizar o meu.
Suia Sá cruzou os braços e jogou o corpo para trás, fitando a cliente com uma sobrancelha erguidas.
– Quantos anos você tem? – perguntou por fim.
– Vinte e sete, faço vinte e oito mês que vem.
– Você é nova demais para abrir mão dos seus sonhos.
– Não estou abrindo mão, só estou os atrasando para cumprir outro objetivo… pode me ajudar ou não?
– Posso fazer melhor – ela se levantou esboçando um sorriso de orelha a orelha. – Ao invés de invocar uma alma para ensiná-la, invocarei uma para possuí-la. Assim você poderá usufruir das habilidades de pintura dela, o que acha?
– Isso é seguro.
– Nem um pouco.
– Vai me ajudar?
– Possivelmente.
– Que seja, então! – Janice deu de ombros.
Atrás de Suia Sá havia uma cortina vermelha por onde ela cruzou. Janice pode vislumbrar, na dança da cortina, uma sala menor com prateleiras e potes de vidro. Suia Sá retornou segurando um pote transparente com sangue dentro. Guiou Janice para o lado direito da sala onde estava um espelho rachado apoiado na parede.
– Fique aqui na frente do espelho – Janice se posicionou olhando para seu reflexo. – Agora abra sua mão.
Janice obedeceu e Suia Sá apresentou um punhal.
– O QUE VAI FAZER COM ISSO?
– Preciso de um pouco de seu sangue; vai doer, mas tem a opção de você mesma fazer. Qual prefere?
– Vai cortar minha mão? – Suia Sá concordou com a cabeça. – Não, não. Me dê isso, deixa eu cortar a panturrilha que é menos visível.
Janice pegou o punhal e gemeu ao passar a lâmina sobre a pele.
– Assim está bom?
– Não precisava tanto assim, moça. Era só uma picada, sujou meu chão.
– Desculpe.
Suia Sá passou o sangue de Janice no espelho e depois molhou um dedo no conteúdo do pote. Em seguida esfregou na testa de Janice, que tentou disfarçar o asco. As pernas da cliente só não estavam mais tensas que os combros. Suas mãos suavam, tal como sempre acontecia em situações de estresse e ansiedade.
Suia Sá estendeu os braços entre Janice e o espelho, murmurou algumas palavras inteligíveis e mudou a posição das mãos, cruzando os braços na frente do corpo, tocando o espelho e a cliente novamente.
Janice pode jurar que sua imagem no espelho, por uma fração de segundos, alterou-se para o reflexo de um homem idoso e careca. Em seguida sentiu um forte arrepiou escalar sua espinha.
– Prontinho! – Concluiu Suia Sá.
– O quê? Só isso? Não vai matar uma galinha ou coisa assim?
– Que nojo! Aqui não matamos animais, não, moça.
– E agora?
– Agora você me paga e vai embora para desfrutar do segundo espirito.
– Quanto deu?
– R$50.
– Até que é barato. É rentável esse trabalho?
– É um nicho pouco explorado, então dá para viver com a morte.
Janice pagou. Quando pôs a mão na maçaneta Suia Sá chamou sua atenção:
– Ah, moça! Esqueci de avisar, quando se está possuída, é importante comer e descansar bem, pois espíritos emprestados se alimentam de sua energia.
– Não sabia que espíritos vinham com manual.
Visto que Suia Sá não rira da piada, Janice se retirou da loja.
Depois de uma noite de memórias as quais não pertenciam a ela, Janice despertou ansiosa para pintar e, em questão de horas, retratou com maestria uma jovem ruiva, nua, deitada entre as raízes de uma árvore lendo um livro.
Seu pai, sem palavras, abraçou a filha com orgulho. Aos seus olhos o talento oculto de Janice finalmente se revelara. Logo depois daquele quadro, começou a pintar outro, e ao fim do dia, com duas belíssimas obras finalizadas, ela devorou três pratos de comida e dormiu a noite inteira na mesma posição. Em menos de um mês suas obras dominavam a casa, e o orgulho ao ver a produtividade da filha não cabia no peito do velho pintor.
Meses depois ela retornou à Loja das Invocações, pálida e com olheiras.
– Suia Sá, já está bom, pode retirar esse espirito de mim.
– Quem é você? – perguntou Suia Sá com seu sorriso distraído.
– Como “quem é você”? Você não pode ter tantos clientes assim a ponto de me esquecer.
– Ficaria surpresa.
– Me nome é Janice, você invocou um espirito para aprimorar meus talentos artísticos há alguns meses.
– MESES! Você está possuída há meses? – Suia Sá levou as mãos ao rosto.
– Sim… por quê?
– Moça, você não pode ficar possuída mais de duas noites.
– Você não disse isso!
– Eu não…? Desculpe.
– O que acontece se eu ficar possuída por tanto tempo assim?
– O espirito que foi invocado passa a fazer parte de você.
– NÃO, me livra disso! Por favor. Eu pago!
– Sinto muito, se eu os separar a força, ele vai trazer junto sua alma. Ele teria que sair de livre vontade.
– Meu Deus!
– Deus não trabalha aqui, moça. Mas veja só, tenho uma ideia. Qual o nome do espirito que você alugou?
– Não sei, tenho a impressão que é Pablo… ou Paolo, Paulo… é um pintor!
– Acho que sei quem é. Ele era um homem casado em vida, tenho a esposa dele aqui, talvez ela possa convencê-lo a ir embora.
– E como vai fazer isso?
– Vou invocá-la e fazer com que ela te possua, assim os dois vão ter que coabitar novamente, talvez ela consiga te ajudar.
– Quer botar outra dessas coisas em mim? – Suia Sá encolheu os ombros em resposta. – Que seja então – concluiu Janice.
Suia Sá entrou na sala de trás. Logo retornou com outro pote com sangue e realizou o mesmo ritual de invocação. Dessa vez foi o reflexo de uma mulher grisalha que Janice viu segundos antes da possessão.
– Agora vá para casa e torça para que eles briguem como um casal, para que ele seja expulso do seu corpo, volte em dois dias para exorcizarmos a mulher.
– E por que acha que vai funcionar?
– Você já foi casada?
– Não.
– Imaginei. Deu R$50.
Janice pagou sem reclamar e foi embora.
Na primeira noite com o espirito novo ela teve sonhos intensos com discussões de casal. Ela suou e se remexeu na cama a madrugada toda. Ao amanhecer, cansada, correu para a garagem onde começou a construir uma prateleira, depois outra, e mais uma. Logo estava fazendo uma caixa de correspondência, e não tardou para arrumar a porta de seu guarda-roupa. O resto do dia foi reservada para pintura.
Dois dias depois retornou para a Loja de Invocação.
– Não deu certo, eles brigam a noite toda e no outro dia eu tenho, por algum motivo, que trabalhar com madeira, além de pintar quadros.
– Desculpa, quem é você? – perguntou Suia Sá.
– Droga, senhora! Não pode ter tantos clientes aqui para que não se lembre de mim.
– Fique você sabendo que tenho muitos clientes, de muitos planos diferentes.
– Vim aqui há dois dias, você inseriu uma alma para me livrar de outra.
– Quais almas?
– Um pintor e sua esposa.
– Sei quem são, a esposa era marceneira.
– Quer dizer que desenvolvi as habilidades dela também?
– Com certeza. Acho que a estratégia não deu certo, podemos tentar um ritual de desintoxicação espiritual. É visível o quanto estão drenando sua energia.
– Agora me ocorreu algo, vamos deixar os dois tentando se entender, enquanto isso, você teria o espirito de algum cantor ou cantora?
– Você quer outro espirito, moça?
– É que minha mãe sempre quis que eu cantasse, o sonho dela era ser cantora.
– Moça, escute, você ficara com três almas, além da sua, isso pode ser desastroso.
– Pago R$70!
– Feito!
Novo ritual. Novo espirito.
Dias depois Janice retornou à loja, estava três vezes mais magra, pálida, cabelo bagunçado, com olheiras que pareciam sacos vazios embaixo dos olhos.
– Olá, lembra de mim?
– Lembro não, moça, quem é você?
– Sou Janice, vim aqui esses dias e você inseriu um espirito para que eu cantasse melhor.
– Você é a moça dos três espíritos?
– Sou sim.
– Você é muito popular aqui na loja, todos falam de você.
– Todos?
Janice olhou em volta e a loja continuava com a mesma solidão de sempre.
– O que posso fazer por você?
– Sabe, estive pensando, minha namorada vive dizendo que não sei cozinhar, fica me cobrando isso, pois é sempre ela quem prepara a comida. Gostaria de saber se você tem o espirito de alguém que seja expert na cozinha.
– O corpo humano não suporta tantas almas assim, você ficara com quatro, mais a sua, isso é muito intenso.
– Pago R$100.
– Então vou te dar um chaveiro de brinde.
Novamente o ritual foi realizado e Janice incorporou mais uma alma; e ganhou um chaveiro.
Na quinta vez em que entrou na loja, seria impossível reconhecer Janice. Ela lembrava muita uma caveira, tamanha a magreza. Faltavam tufos de cabelo. As unhas estavam amarelas e os dentes apodrecendo.
– Moça, acho que você entrou no lugar errado, aqui não é o hospital.
– Boa piada, mas não entendi – disse Janice caminhando ofegante.
– Não foi piada. O que posso fazer por você?
– Preciso de um espirito que saiba bater fotos muito bem, meus amigos reclamam que quando vou tirar fotos deles, nunca ficam boas.
– Você é a mulher cheia de espíritos?
– Sou famosa aqui?
– É sim, mas seria melhor a gente tentar retirar alguns espíritos, para inserir outros.
– Não, tudo bem, meu pai está feliz, minha mãe está feliz, minha namorada está feliz, agora vou deixar meus amigos felizes. São habilidades muito úteis.
– E que tal você parar de tentar agradar a todos?
– O importante é fazer as pessoas felizes, não é?
– Desde que não cobre a sua felicidade… e saúde.
– Estou me sentindo muito bem, até dei uma emagrecida, agora sou uma mulher cheia de talentos.
– Que seja, acho que tenho um espirito aqui que pode te ajudar.
Janice voltou para casa possuída por um novo espirito, estava feliz, cantando muito bem, ansiosa para pintar, montar uma prateleira e cozinhar.
Uma semana depois Suia Sá estava sentada em sua cadeira olhando distraída para a porta, quando cinco espíritos passaram voando por ela em direção ao espelho. Eles foram seguidos por um sexto que chorava e lamentava quando parou diante da atendente. Suia Sá olhou para a aparição e balançou a cabeça.
– No final, de nada adiantou agradar a todos, não é? O espirito seguiu os outros através do espelho.
Hitallo Dalsotto é nascido em Porto Alegre há 30 anos, morou na cidade de Cachoeirinha antes de retornar para Porto Alegre. Conquistou quatro prêmios como ator de teatro. Atualmente, possui cinco obras publicadas: Histórias Críveis e Incríveis (contos), A Vida de um Homem Medíocre (crônicas), Diário de um Suicida (humor), Chicão e a Morte (romance) e Essa Visita Está Adiantada (romance).