DE ‘A MENINA QUE MORAVA NO SINO’, DE CELSO GUTFREIND
O nome do Vitório era Vitório porque ele já tinha sido adotado e, quando a gente é adotada, ganha um nome. E comida, é claro. Aí já não tem dor de dente, ou, se tem, ganha remédio, atenção, e passa. Recebe respostas certas ou erradas. Aprende a ver as horas, a amarrar os tênis e os sapatos. A andar de bicicleta. Fica junto quando toca, dança ou interpreta. Fica junto quando não toca, não dança ou não interpreta. Ganha até um sobrenome, mas a gente não sabia qual era o do Vitório.
Uns diziam que era Pacheco, mas ninguém tinha certeza, e nunca se tentou comprovar, chamando:
– Pacheco, Pacheco! –
para ver se ele respondia.
Por isso, os cachorrinhos chamavam o Vitório só de Vitório e se chamavam só de cachorrinhos. Eles quase sempre estavam famintos. Sonhavam ganhar pelo menos um nome. Ouvir alguém chamando, gritando até:
– Vem, Rex.
– Por favor, Totó.
– Silêncio, Pluto.
– A comida, Nick.
– Água, Bob.
– Pula, Bion.
– Senta, Boris.
– Vamos passear, Flocos.
– Xixi no jornal, Olívia.
– Cocô, também, Lilica (apelido de Olívia).
– Já voltamos, Sofia (Sossô).
– Não rói o tapete, Júnior (se o Bob fosse filho de outro Bob).
– Larga o rodapé, Marlon.
E até Afonso, Hildegarta ou Temistocleia, que é o nome de uma filósofa da Grécia antiga, e lá já havia cachorros.
Eu disse “até” porque não é fácil ficar chamando Afonso, Afonso, Hildegarta, Hildegarta, Temistocleia, Temistocleia ou Pacheco.
Cachorros precisam ser chamados, porque têm vida própria. Se a gente não chama, eles podem não vir nas horas em que precisam ser chamados para sair da vida própria e ganhar banho, remédio, vacina, comida, passeio.
O nome em si não era o mais importante.
O mais importante era ganhar um nome.
Celso Gutfreind é escritor e psicanalista, com 39 livros publicados. Trecho de A menina que morava no sino, novela de Celso Gutfreind (Physalis, 2020).
🛒 Clique e encomende o seu exemplar
