‘DE MORAES’, DE MAURO MORAES – LUCIO CARVALHO
Muitas vezes me parece que o Mauro Moras é um poeta e cantor que se pode encontrar mais facilmente entre um mate e outro, num galpão silencioso, do que sobre um palco, sob refletores ou numa avenida qualquer, embora isso não seja impossível. Ou então desencilhando o pingo, já meio estropiado da lida, arrumando a boina sobre a cabeça. Campeirismo, caiporismo, caipirismo ou o que seja, o Mauro tem a poesia popular reverberando dentro de si no que de mais afetivo o ser humano pode ter. Ouvi-lo é sempre como ouvir a um tio antigo, paciencioso e sereno. É a impressão que confirmo ao terminar de ouvir as 12 faixas de De Moraes, disco que lançou pela Minuano Discos, agora em 2020, logo do início da pandemia do coronavírus.
Pelo menos, até onde procurei, não estão no Spotify ou no Deezer nem uma das 12 faixas do disco. Talvez seja mais fácil encontrá-las na sintonia de um radinho de pilhas do que “catando milho” nos botõezinhos dos aplicativos de telefone. Mas creio eu que isso tenha uma razão de ser. Essa transição pela qual a produção musical vem passando talvez seja apressada demais para um sujeito tão sem pressa quanto ele parece ser.
Para quem não conhece o trabalho do Mauro Moraes de outros tempos ou dos registros históricos que fez com José Claudio Machado e Bebeto Alves, cabe ainda uma apresentação: trata-se de um canto nativista do começo ao fim. Nativismo é o nome de um movimento cultural do Rio Grande do Sul que busca revivificar, não retificar, o hábito popular e cultural da população do meio rural e seus elementos mais naturais, não pitorescos. Foi por onde Mauro encontrou as formas de expressar uma poesia ao mesmo tempo emocionada e reflexiva.
Não é à toa, afinal, que Mauro se ampara quase sempre no ritmo lento e na harmonia em tom menor da milonga para desfiar sua conversa de campo e que muitas vezes extrapola o campo. Há nas suas letras uma conversa séria de preocupações universais que filosoficamente provocam e levam o poeta à composição. É um pouco estranho encontrar metáforas absolutamente campeiras, dotadas do vocabulário coloquial do dia a dia da campanha, junto a reflexões políticas e metafísicas complexas que chegam, sim, ao universo do campo, porque são do universo de todos. A questão mais intrigante por entender é a forma pela qual suas letras se harmonizam com tanta justeza aos ritmos e tons que os longos dedilhados dos violões das gravações propõem nas doze faixas do disco.
Ouça aqui a faixa “Troveiros”, com Mauro Moraes e Bebeto Alves. Gentilmente cedida pelo autor e gravadora Minuano Discos.
E o que dizer quando ele empresta sua arte à interpretação do amigo e parceiro de longos anos, Bebeto Alves? O que acontece quando Bebeto canta as letras de Mauro é mais ou menos um encontro de arroio com o rio, de águas que não se pecham e nem competem, mas fluem. É um encontro de vertentes profundas e o Bebeto, como ele mesmo já afirmou, é um poeta e cantor com quase nenhuma vivência campeira. Como então interpreta com tanta naturalidade uma poesia rural que não se escamoteia e chega a ser bruta nessa qualidade? Tenho uma suspeita e vou lançar aqui. Um dia vou saber por eles se confere ou não.
O Bebeto tem uma entonação que não é de quem canta, em primeiro lugar, mas de quem fala. E parece alguém que o faz do modo mais campeiro possível. Como se à sombra de uma arvoredo, antes mesmo de apear e, numa viagem no tempo e no espaço, trocasse palavras com aquela poesia, e as incorporasse. Desse modo, permitindo esse encontro em si mesmo, ele então deixa falar o tanto que há dentro dele mesmo daquela poética que finalmente se canaliza. Quando um poeta ou intérprete da poesia alheia deixa ver o universo afetivo que tem dentro de si é que essa espécie de milagre pode acontecer. Por isso, esse encontro dos dois amigos, mesmo que numa faixa apenas, é o ponto alto do disco de Mauro e também mais uma amostra do encontro feliz que já rendeu, entre outros sucessos de crítica e público, os discos Milonga abaixo de mau tempo, Mandado lenha e Milongamento.
Por tudo isso, a música de Mauro é em muitos momentos uma celebração da amizade, da simplicidade e de um modo de estar no mundo que é poético por não se saber poético. Desses lampejos, Mauro faz discos que são pinturas de melodia, afeto e delicadeza. Dizem que a música dos gaúchos é uma música dura, “abagualada”. Mas, no caso dele, é de uma mansidão amadurecida que dá gosto de escutar e entender. De escutar e entender para os que irão lhe escutar pela primeira vez. De entender ao escutar para outros mais treinados nas coisas que ele diz como ninguém.
Lucio Carvalho é editor da Sepé.
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