DE ‘TIMBIRUPÁ’, DE LUÍS DILL

Reprodução do capítulo 1
de Timbirupá, romance
de Luís Dill, cujo lançamento foi
cancelado em função da pandemia.

No 13 de outubro de 1930, dia anterior à catástrofe dantesca verificada em Timbirupá, o padre Agostino Guglieri apanhou seu mosquetão Mauser escorado na pia batismal e avançou pelo corredor entre os bancos da igreja. Ouvira o piado do mugum-três-cores vindo do telhado e ele não era homem de se enganar com essas coisas. O canto era igual ao grito de uma dobradiça enferrujada. Esses desaforados não vão se arrancheirar no meu telhado, ele murmurou.

Duas carolas, as irmãs Xaveiro, que vinham entrando, se espantaram com o homenzarrão armado e de cara torcida. Elas, de imediato, deixaram o prédio caiado, mãos nas bochechas, sinais da cruz, no íntimo, famintas por desgraça.

Ele esbarrou na serafina abandonada e atacou os 68 degraus da torre do campanário. Calor danado ali dentro; a face norte do edifício apanhava muito sol e passava do meio-dia. Seus passos fizeram a madeira estalar, levantar poeira. Junto subiu cheiro de coisa velha. O suor escorreu pelo cachaço cabeludo e se escondeu na batina puída.

Refugiadas atrás do ingá-mata-burro, as carolas, com cheiro de vela, tinham os corações a barulhar dentro dos corpos murchos. Conheciam o caráter do padre Guglieri e já haviam ouvido uns tantos boatos sobre seu périplo pela selva antes de chegar a Timbirupá.

Iam falar qualquer coisa quando o viram brotar por baixo do sino de bronze e se debruçar. Ai, meu São Morgado, disse Salustiana, e Sebastiana protegeu-se da imagem levando as mãos aos olhos, mas tratou de abrir os dedos: queria observar através das frestas ossudas.

Padre Guglieri não cabia ali, torceu o corpo com dificuldade, voltou-se para o sul, a parte de trás da torre, onde estavam as linhas irregulares das telhas de capa e canal. Lá, mais adiante, sobre a abada, viu o ninho. Miserável, ele disse e fez pontaria. Que Deus, todo poderoso, guie meu tiro, ele orou sem mexer os lábios estreitos.

Uma cabeça preta de curiosos e amarelos olhos de gente se elevou da estrutura circular de gravetos. Pressentiu a movimentação. Girou, girou, e
então se viu observado pelo olhar escuro do humano. Ninguém piscou no duelo. O padre sorriu. Aí atirou.

O barulhão acordou quem sesteava, foi e voltou no azul de fogo do céu de Timbirupá. Palhas, penas e cerâmica se espalharam em nuvem, depois desabaram ao lado da porta lateral da sacristia.

As carolas soltaram grito simultâneo e se costuraram ao tronco do ingá-mata-burro. Rostos sonolentos surgiram nas janelas das casas em redor da Praça Dom Pedro II. Mas o primeiro a chegar foi cabo Aparício, impecável no seu uniforme cáqui, as botas lustrosas, bem como o couro do cinto preso pelo suspensório duplo onde ia a adaga à moda gaúcha. Saiu do quartel da polícia já com o Schmitão calibre 45 em punho. Reconhecia de orelha todo tipo de tiro.

Que foi, padre?, ele viu o pároco sair pela porta da frente da igreja ainda empunhando o mosquetão, o rosto afogueado.

Padre Guglieri ignorou o agente da força pública e se aproximou do ninho abatido. Ali estava o mugum-três-cores e quatro ovos pardacentos, dois deles parcialmente descascados, com os filhotes empurrando-se para a vida em movimentos estropiados.

Vade-retro, imundície, o padre excomungou, e pendurou a arma no ombro largo, fez cruz com os indicadores, beijou-os, três, quatro vezes, depois cuspiu no corpo da ave baleada.

Caçando, padre?

Só então o vigário reparou na companhia. Não, cabo, protegendo o rebanho, e começou a esmagar os ovos e os filhotes com a sola grossa do coturno.

Luís Dill nasceu em Porto Alegre em 1965. É formado em Jornalismo pela PUC/RS e tem Pós-graduação lato sensu em Literatura Brasileira. Como escritor estreou em 1990 e, com Timbirupá, chega aos sessenta livros publicados. Entre suas premiações estão o Açorianos de Literatura e o Biblioteca Nacional. Alguns de seus títulos já foram adquiridos por governos municipais, estaduais e federal. Vários receberam o selo Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, e fazem parte de seu acervo básico. Em sua atividade de escritor, participa de feiras do livro e de variados tipos de encontros com leitores em escolas e universidades.

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