DE ‘USO INTERNO’, DE LARA POZZOBON
AO LEITOR
Se é que algum leitor existe
recomendo que faça uso deste livrinho
como eu fiz: usei cada palavra em meu proveito
Por que o livro não serviria a alguém
que por acaso sinta-se despedaçado
e se queira colar, como a um vaso?
Parece mais um tormento
mas se calo a vida não muda;
como quase não falo, tentei essa tradução
[O poema é o que se pensa em dizer sem falar]

PRIMEIRA PESSOA
A primeira pessoa não sou eu
não dei causa ao verbo
que tudo principia
Sou talvez as coisas
às quais imploro que me acolham
como se apenas coisas fossem
Sou talvez as montanhas
que vibram sob os meus passos
e tremem quando respiro olhando para elas
As coisas que toco
ali é que eu sou e gosto
porque elas são tudo
O lápis que gastei a ponta
a massa que mastiguei
o sapato castigado por meus pés
A pessoa que passa por mim
pode ser eu talvez se andar alheia
como eu que mal a vejo e sei
A cadeira, o copo, a roupa
os óculos desconfortáveis
as coisas todas que se entregam
Apenas isso tem existência
e vive e lateja e sofre
apenas todas as coisas
A primeira pessoa do singular
de certo definitivamente
não é nem jamais será eu

COMO SE
como se arrancasse partes da minha pele
e fosse colando no papel
vou chamando essas palavras lá de dentro
ajudando-as a sair
sem quebrar, sem ferir
sem deixar que se destrocem
no caminho escuro
na passagem
na saída
até despencarem
para fora de mim
como se empilhasse coisas moles
que se amoldam
e por isso não se deixam entender
como se empilhasse blocos de tamanhos diferentes
que não podem manter o equilíbrio
se a pilha subir mais que o tamanho eu
como se emprestasse meus órgãos internos
minhas vísceras viradas pelo avesso
meus ossos um pouco moídos
para que o pó sirva de exemplo
do que seria a forma mais completa
de estar ali no mundo

MANIA
eu tenho uma paixão que me atravessa
eu a protejo
em troca ela me dá salvo conduto
para fazer qualquer tipo de promessa
qualquer vexame ou discurso maluco
sou dona de um suspiro tão profundo
e benfazejo
que depois de elevar o meu espírito
me faz estranhar de novo o meu mundo
e de repente é tudo mais bonito
sou dona de um raciocínio barroco
– é o meu molejo –
mas de ideias muito simples e práticas
que organizo raramente e por pouco
não confundo com louca matemática
se fico me esgueirando noite e dia
– tenho meu pejo –
com medo de que alguém enfim descubra
aquilo que me assusta e que me nubla
é só porque peguei uma mania
desando a desdizer tudo que é certo
(mas não fraquejo)
o erro já coloco em harmonia
se quero disfarçar mantenho perto
os dois lados contrários na aporia
portanto quando quero não duvido
e quando vejo
dou mais certeza ainda do incerto
fazendo com que tudo que me cerca
esteja pra sempre a salvo do olvido

HAICAI 1
o que não tem cabimento
dentro de mim
simplesmente coube
Lara Pozzobon nasceu em Santa Rosa (RS) mas com meses foi morar em Santa Cruz do Sul, cidade que considera sua terra natal. Morou em Porto Alegre, no Rio de Janeiro e agora vive em Dover, NH, nos EUA. Estudou Letras, porque a literatura era a única coisa que achava interessante. Depois tornou-se produtora, e então criou diversos projetos de cinema, teatro e contribuiu com a criação de algumas coisas novas no Brasil. Teve seu primeiro livro de poesia publicado em 2016, juntando poemas recentes com alguns escritos muitos anos antes. Voltou a estudar e está encantada com novos caminhos na área da educação.
🛒 Clique e encomende o seu exemplar