DUAS CRÔNICAS DE FERNANDO CHEMALE

ME PRENDAM!
EU ROUBEI DE UMA CRIANÇA!

Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito, Vossa Excelência Promotor Público e Prezados Jurados, aviso que abro mão dos préstimos de um advogado, uma vez que farei minha própria defesa.

Vossa Excelência, os filhotes do “Homo Sapiens Sapiens” são muito queridos, engraçados, inteligentes, espontâneos e hipnotizantemente fofos, mas sinto dizer que não comungo da opinião que as crianças são anjos na Terra, criaturas desprovidas de maldade e incapazes de praticar crueldades. Na verdade, principalmente quando reunidas em grupo, são capazes de atrocidades, em especial, no que tange à arte de humilhar o próximo, agora americanizadamente batizada como bullying. E isto é inegável. Que o digam os adultos que, enquanto infantes, tenham sido gordinhos, gagos, míopes com óculos, desprovidos de beleza física, dentuços etc, e que hoje trazem consigo entranhadas em suas almas as cicatrizes desse mundo selvagem que é a convivência social na infância.

Esse comportamento deve ser uma herança troglodita de nosso lado animal, uma espécie de seleção natural, como ocorre entre os leões, por exemplo, quando os detentores de alguma fraqueza, seja doença, deficiência ou idade avançada, são humilhantemente escorraçados do grupo.

Bom, estava aqui tergiversando (enchendo linguiça) e tentando manipular o Júri Popular contra essas pequenas criaturas para aliviar minha Pena, já que inocentado estou ciente que não serei, pois sou réu confesso. Acalmem-se, elucidarei o ocorrido, justificando ter sido apenas uma expressão metafórica a respeito de uma experiência emocional pela qual passei um dia desses.       

Olhando um álbum empoeirado, me deparei com uma fotografia em que eu devia estar com uns 5 anos de idade. Eu era ainda um cartão de memória, um pen drive quase vazio, pronto para receber os bons e maus downloads da vida, que às vezes ainda vêm repletos de vírus. Vi aquele rosto leve e sorridente de um ser cheio de expectativas e planos em relação ao futuro. E tive uma sensação muito nítida de que, de certa forma, eu furtei daquele guri do retrato muitos desses sonhos. Me senti, de modo muito real, com diversas dívidas em relação àquele piá, e muitas delas, nunca terei como saldar. Por outro lado, naquele tempo remoto do retrato, há 32 anos, quando me falavam em homens com 37 anos me vinha na cabeça um cara sisudo, quase triste, barrigudo e fumando, imutável e resignado com os resultados de sua vida.

Portanto, vou encarar esta dívida, na verdade, como um confisco, uma aplicação a longo prazo que pode ser restituída com juros e correção monetária, mas em outra Moeda, entregando para aquele menino um quarentão bem alegre, metido a jovial e de bem com a vida, uma “metamorfose ambulante” que ainda espera muito da sua existência mundana.

Termino com uma frase de Mário Quintana ou Millôr (a internet não é uma fonte exata nem fidedigna): “Não tenha medo de errar, mas não faça da vida um rascunho, pode não dar tempo de passar a limpo”.

“TOC TOC TOC!!! SILÊNCIO NO TRIBUNAL!!!”

O Juiz conclama o Júri para dar o veredicto.

“O Réu é declarado… CULPADO!!!”

Pena aplicada: “Condenado a buscar a felicidade com todas as suas forças, incessantemente, até o último dos seus dias, pois o passado passou, o futuro ainda virá e o presente é só o que há!!!”

“Sessão encerrada.”


O BAILE DE MÁSCARAS

Não sou nenhum pé de valsa, mas, quando a vida me tira para dançar, não costumo negar o convite. Falta-me destreza tanto nos tablados da vida quanto nas pistas ou salões, estou tão distante de Carlinhos de Jesus ou Fred Astaire quanto o Real do Dólar; porém, com a idade, ganhei jogo de cintura, aprimorei o gingado, perdi certos medos e pudores. Aliás, se tem um coisa boa em envelhecer é que se perde o senso do ridículo. Menos necessidade de aprovação, menos receio do julgamento alheio.

Nunca descobri a receita de se viver bem, mas sei muito algumas dicas de como se viver mal. Sou do tipo que não ouve conselhos, nem tampouco aprende com os erros  dos outros. Eu preciso sentir na pele as consequências de minhas decisões equivocadas, é a única forma que assimilo algo.

Sim, sou primitivo. Sou praticamente um cão, que quando erra precisa de uma punição e quando acerta gosta de uma recompensa. E sou exibido também, se atirar a bolinha, eu vou buscar só para receber aplausos. Enfim, vou sendo adestrado pelas boas e más experiências que tenho ao longo do tempo.

Uma das lições que aprendi é que não há esforço mais em vão do que sempre querer agradar os outros. É muito desgastante. Esse comportamento requer um índice insalubre de flexibilidade e tolerância, duas características que são benéficas se vierem de forma equilibrada, mas, como diz o ditado, a diferença entre o veneno e o remédio é tão somente a dose.

A necessidade de aprovação alheia associada à dissimulação para obtenção de vantagens transforma essa bela dança que é nossa existência num bizarro baile de máscaras. Aqueles que deixam se envolver por essa atmosfera tornam tudo muito superficial, falso e não confiável. As relações interpessoais estão adoecidas por essa supervalorização das aparências em prol do esquecimento da verdadeira essência de cada indivíduo.

Nesse quesito, divido as pessoas em três grupos. Aquelas que valorizam o “ser”, as que valorizam somente o “ter”, e, o mais infeliz dos grupos, o das pessoas que se preocupam em “parecer ter”. Não conseguem “ser” ninguém, nem “ter” o que desejam, então usam o artifício de ostentar aquilo que não têm para não se sentirem inferiorizados.

Não vou ser hipócrita aqui. No cotidiano, não precisamos nos mascarar, mas acabamos, sim, usando uma maquiagem social ou profissional. No trabalho, temos uma postura condizente com nossa área de atuação; no bar, temos outra; e, nos nossos lares, uma também diferente. Faz parte, estamos inseridos num contexto de relações.  Mas o que não pode acontecer é a violação dos nossos valores, dos nossos sentimentos ou opiniões para “vender” uma imagem que não condiz com a realidade. Como bem disse Gandhi: “Um homem não pode fazer o certo numa área da vida, enquanto está ocupado em fazer o errado em outra. A vida é um todo indivisível.”

Eu vou continuar assim, dançando de forma errática, descompassado ou acelerando o ritmo. Eventualmente arriscando saltos mais arrojados. Me aproximando ou me afastando demais de meus pares. Conduzindo ou sendo conduzido. Por vezes, ensaiando passos sozinho. Mas, acima de tudo, evitando ao máximo pisar no pé de alguém.  E, até que a música acabe, segue o baile.

Fernando Chemale nasceu em Osório, em 1977. É Cirurgião Dentista formado na UFRGS , foi presidente por dois mandatos da Comunidade Terapeutica Fazenda Renascer, entidade que recupera e reinsere socialmente dependentes químicos e alcoolistas há 25 anos.  Aos 9 anos, lançou uma história em quadrinhos, “Osorinho Pancada”, na Feira do Livro de sua cidade. Escreve crônicas como hobby.

CRÔNICA

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