O FIM DO CÂNONE (E NÓS COM ISSO) – LUÍS AUGUSTO FISCHER

Da apresentação do livro,
por Luiz Mauricio Azevedo.

Nas últimas duas décadas, Luís Augusto Fischer se tornou um nome incontornável na crítica literária gaúcha. Sua figura alta e firme sugere para mim um tipo de unheimliche. Ele é o crítico doméstico, que torce para o Internacional, que frequenta o Zaffari, que debulha a obra de Eduardo Guimarães e reidrata José Simões Lopes Neto; mas é também o pensador nacional, que o eixo Rio-São Paulo respeita e ouve; e que se preocupa com o fluxo dos movimentos da cultura. Sob as asas dessa dialética particular, nasceu a impressionante linha de produção de problematizações identitárias do meio crítico literário gaúcho. Hoje, a UFRGS, universidade federal onde Fischer atua, é a alma mater de um sistema social que produz pesquisadores que se esforçam para fugir da dicotomia nociva formada pelo ressentimento quanto à suposta irrelevância geopolítica dos fenômenos culturais gaúchos e a franca adulação ao pomposo título de melhor universidade federal do Brasil. Fischer captou rapidamente a potência criativa dessa contradição e fez com que ela trabalhasse a serviço de uma perspectiva nova de criticidade, que foi, em grande parte, responsável pela boa recepção de sua obra crítica nas universidades paulistanas, sempre tão orgulhosas de seus filtros quase herméticos.

É claro que O fim do cânone (e nós com isso) por ser um conjunto de textos já publicados, oscila nas dobras do tempo. O debate sobre o ENEM, por exemplo, tomou hoje outra dimensão, e nos surpreendemos ao ver que já chegamos a ter uma régua um pouco mais alta, já exigimos dos governos algo acima de dignidade e de comportamentos mínimos de civilidade como: não rir dos mortos, não utilizar a máquina pública para proteger familiares e não incentivar a automedicação.

Outros pontos, entretanto, ganharam maior dimensão: em especial a centralidade de São Paulo na construção da crítica brasileira e o exame da perda do Rio de Janeiro como centro da cultura nacional, debate nunca abandonado por completo, mas que hoje parece ter sido reativado no livro de Ruy Castro, Metrópole à beira mar. Fischer disse bem antes, lá atrás: “Um caso literário, entre tantos, é o abismo que separa o impressionante prestígio que Augusto Frederico Schmidt tinha, até os anos 1950, e seu total esquecimento atual.” Poderíamos, de comum acordo, retirar partes que se pretendem anacrônicas. Este, contudo, é um vício brasileiro (estamos no país de Ruy Barbosa, dos apagamentos, dos cancelamentos virtuais e da tentativa desesperada de reescrever biografias sujas como as de Monteiro Lobato e de Davi Canabarro) do qual eu, como editor-executivo da Figura de Linguagem, não padeço. E o autor desse livro, garanto, também não. As partes em que falam de cenários que não existem mais; as partes que comemoram realidades materiais retiradas de nós; as partes que formaram o mundo dissolvido ora retratado aqui não podem ser retiradas desse trabalho, porque a função de quem pesquisa é descrever as coisas que são, do jeito que são e no momento em que são; sem se preocupar com aquilo que deveriam ser, no tempo em que talvez um dia já não o sejam. Se formos desprezar todas as anotações históricas tão logo elas não reflitam mais o presente, será necessário abandonar toda nossa noção de logicidade e nosso próprio compromisso com o pensamento.Há uma vocação jornalística nesse texto, e não por acaso Fischer é o mais jornalístico dos teóricos brasileiros contemporâneos, disposto a investigar como muitos fazem, mas também a apresentar no espaço público (o que poucos se dedicam a fazer) o que tem encontrado e principalmente o modo como tem encontrado.

Fischer está sempre produzindo choques atômicos, reações em cadeia que ligam um pensamento ao outro, com uma velocidade e ousadia impressionante. É um autor profundamente modernista porque rejeita o formato modernista estabelecido por Andrade e Cia, mas pela renitente defesa desse modelo como confirmação de nossa habilidade em criar formatos nossos, mas urbanos. Fischer parece querer acessar o outro lado desse satélite, parece querer identificar os formatos urbanos, mas nossos. Não é o Modernismo que ele ataca, mas esse modernismo; não é o ENEM que ele condena, mas esse enem. O que importa a ele é a putrefação de ideias que nascem bem-intencionadas mas cujos desenhos determinam já de saída contaminações autoimplosivas. Há aqui, como se vê, uma forte crença na força política dos textos de ficção e – mais do que isso – na função emancipatória do ensino de literatura em sala de aula. Talvez essa seja, aliás, a maior contribuição desse volume de ensaios: apontar caminhos práticos para a transformação da atuação de professores e professoras na construção de projetos de leitura que possam ir além do mero letramento.

Quanto a mim, durante muito tempo vi Fischer à distância. E a delícia de hoje ser seu editor, e poder ouvir dele as confidências comuns que todo editor ouve, se deve ao fato do Brasil, que não muda muito, ter mudado um bocado nessas últimas duas décadas.

Luís Augusto Fischer é professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de Literatura Brasileira – modos de usar (L&PM).

Luiz Mauricio Azevedo é doutor em Teoria e História Literária, pela UNICAMP, pesquisador pós-doc na FFLCH/USP e editor da Figura de Linguagem.

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