‘O MERGULHADOR’, DE LUIS DO SANTOS
Do posfácio de O Mergulhador, por Paula Sperb,
jornalista e doutora em Letras pela Universidade de Caxias do Sul.
Foi ainda sob o título El zambullidor que a obra de Luis Do Santos me causou o efeito de estar diante de um clássico, capaz de reverberar para sempre no horizonte de expectativa do leitor. Olhava incauta a seção de literatura uruguaia daquela livraria no edifício Pablo Ferrando, em Montevidéu, quando confiei no destaque dado à obra e a trouxe na bagagem para o Brasil.
O impacto da narrativa foi semelhante ao que senti quando li O velho e o mar, de Ernest Hemingway, pela primeira vez. Queria que todas as minhas pessoas queridas o lessem também. Comprei exemplares de Hemingway para presenteá-las em datas comemorativas.
Assim como O velho e o mar, El Zambullidor é breve e profundo. Todavia, ser uma leitora devota desta pérola uruguaia, do tipo que distribui o livro para aqueles que quer bem, esbarrava na dificuldade de encontrá-lo no lado de cá da fronteira.
Assim como acreditei na recomendação silenciosa dos livreiros que colocaram El zambullidor à vista, depositei confiança que um bom leitor – como deve ser um bom editor – entenderia minha devoção a este pequeno gigante.
O que o leitor tem agora em mãos é O mergulhador, tradução fiel e primorosa feita pelo Flávio Ilha, cujo trabalho duplo de trazer para o português esta bela história e dar-lhe forma editorial é louvável.
O mergulhador é uma prosa poderosa e bela, narrada em primeira pessoa pela ótica de um menino que admira e teme o pai, um homem com o dom de encontrar afogados colocando um jasmim na água e mergulhando fundo onde a flor cessa de se mover.
Agora que ingressa no sistema literário sul-rio-grandense e brasileiro, Do Santos se situa, seja pela força narrativa ou pela temática, ao lado dos nossos melhores nomes. Vem de Alcy Cheuiche uma das primeiras aproximações possíveis. O conto de Cheuiche Uma vela acesa descendo a correnteza, publicado primeiramente no Caderno de Sábado do Correio do Povo (18/02/2017) e ainda não impresso em livro, dialoga diretamente com O mergulhador.
Em Cheuiche, dois irmãos aprendem como encontrar o corpo de um afogado colocando uma vela acesa no rio, que estanca onde está o morto. Em Do Santos, a procura também tem esse componente mágico, embora seja uma flor de jasmim e não uma vela acesa. “Meu pai então tirou as alpargatas e a camisa de trabalho e mergulhou com destreza até o ponto marcado pela flor”, conta o narrador.
Do Santos também está literariamente próximo de Sergio Faraco e de seu universo fronteiriço, habitado por homens em convívio com uma natureza rude, assim como a infância do narrador de O mergulhador. Criança, ele se vê distraído por pescarias, histórias de contrabandistas e a companhia de seu cachorro Titán.
Não por acaso, o conto Guapear com frangos, de Faraco, inicia com o afogamento de um tropeiro que decide atravessar o rio, apesar da forte chuva dos últimos dias. O drama humano envolve a busca pelo seu corpo no rio e a missão quase sagrada, uma questão de honra, de enterrá-lo dignamente.
A temática do rio a ser atravessado está ligada àqueles que enfrentam as águas por obrigação ou sobrevivência, como os contrabandistas que aparecem em O mergulhador nas figuras dos personagens Tibúrcio de Albuquerque e Pedro Martinidad, este último mais marcante pelo alívio na melancolia que traz para a infância do narrador.
A figura do contrabandista é um elo entre O mergulhador e o romance Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez, de Tabajara Ruas. Mas não o único elo. Ambos narram o amadurecimento e o crescimento de um menino no interior. Cada um a seu modo, conduzem o leitor pelos caminhos que levam a uma transição para a vida adulta, que não passa ileso ao que foi vivido no passado.
Em algumas passagens, O mergulhador cede lugar para um menino terrível, capaz de incendiar uma casa mesmo que a intenção inicial fosse queimar apenas um gato. Há um grito afônico por trás dessas ações descabidas, que vem de um garoto que precisa dormir sozinho em um galpão, apanha até cair e ressente a falta de ternura da família.
“Um dia descobri como fugir desses momentos de tormenta. Pensava nos bagres da manhã, em lambaris fritos, em balas de açúcar ou em armadilhas para rãs. E então já não existia mais ninguém que pudesse encontrar minha alma”, conta o narrador.
Por fim, a obra de Do Santos conversa com o romance Crisântemo branco, de Mary Lynn Bracht. A similaridade não está, porém, nas flores, o jasmim e o crisântemo, de pétalas brancas, mas nas marcas que traumas de infância, mesmo que narrados de forma lírica como em O mergulhador, imprimem naqueles que os vivem.
A obra de Bracht se passa na Coreia do Sul dominada pelo Japão na Segunda Guerra Mundial.
Uma das personagens é uma haenyeo, termo que designa as mulheres mergulhadoras de profundidade para capturar pescados de subsistência.
Mergulhar também era o sustento do pai do narrador. “Seu estranho ofício era instalar esses poderosos canos no ponto mais fundo para melhorar, assim, o rendimento das bombas. Sobre meu pai e seu trabalho se contavam coisas incríveis. Diziam que poderia prender a respiração por mais de cinco minutos e que chegava a profundidades que ninguém tolerava”, diz o narrador.
O mergulhador é um livro intenso, verdadeiro e profundamente humano, que, por meio da Diadorim, agora temos o prazer de ler — e de presentear.

O rio seguia turvo como nos dias de enchente, encrespado pelo vento norte e já com poucos aguapés que desciam tremulantes, mas vestindo, ainda, aquele seu irresistível marrom de luto. Ao choque da água com a barranca, os torrões caíam devagar, como pequenos lamentos. Desde meu alto esconderijo no mato, pude apreciar o voo errático das duas chalanas, os homens que afundavam no rio e apareciam ao cabo de alguns minutos, ofegando, derrotados todos, o rosto desfigurado pela tristeza e pelo frio. Jogavam ganchos amarrados a uma taquara, anzóis grandes, redes de pesca resistentes para ver se o fundo lhes devolvia alguma esperança, mas era tudo barro, desespero e medo. Alguém acendeu velas e entoou uma reza desoladora, enquanto eu seguia trepado a um dos galhos do arvoredo onde fui parar desde que o Comissário Silvestre desalojara a gurizada aos gritos.
Não havia passado mais do que meia hora quando o vi, descendo pelo caminho das barrancas. Era meu pai e seu inconfundível passo de garça desconjuntada, sua forma particular de enfiar as mãos nos bolsos, onde escondia também toda carícia, o rosto rachado do sol, sem o menor gesto que entregasse sua alma. Minha primeira reação foi escapar antes que me descobrisse, mas no mesmo instante entendi que qualquer movimento me denunciaria. Fiquei petrificado entre os galhos, oculto nas folhas como um pássaro a mais. Os homens saíram da água, as mulheres se apertaram buscando explicações incertas e acenderam mais velas. Então meu pai chegou até à margem do rio, sem dizer uma palavra, tirou do bolso da calça aquele jasmim branco do nosso jardim e, depois de murmurar uma oração entrecortada, o atirou na água antes de fazer o sinal da cruz.
O rio, a essa hora, era um potro furioso corcoveando contra o barranco. A flor baixou alguns metros, arrastada pela correnteza. Logo começou a girar em direções distintas até deter-se, a cerca de três metros da margem. Ficou parada ali mesmo, resistindo, enquanto as rajadas do vento norte a empurravam. Meu pai então tirou as alpargatas e a camisa de trabalho e mergulhou com destreza até o ponto marcado pela flor. Desde minha sentinela de folhas eu não podia escapar daquela cena assombrosa. Duas senhoras caíram de joelhos no barro. Os homens molhados observavam, absortos. Já não me recordo quanto tempo se passou, mas ainda trago na pele a horrível sensação de ver meu pai emergir da água com o corpo mole do afogado. Tinha os lábios roxos, a pele mortiça descascada pelo sol, os olhos abertos em direção ao nada.
Não pude evitar os engulhos, que quase me delataram. Foi quando aproveitei o desconcerto que tomou conta de todos naquele momento, busquei nossa trilha de molecagens e corri com toda a força que podiam ter as pernas magras dos meus nove anos. Quando cheguei em casa, senti o coração saindo pela boca, me faltava ar nos pulmões e o medo havia se apoderado do meu corpo. Fui até a torneira do quintal e deixei que a água fria espantasse aquelas lembranças. Depois subi no cinamomo e só desci quando todos já esperavam, ansiosos, o momento da janta. À hora de sempre, com o sol convertido em uma tímida luz distante, chegou meu pai, cansado e sem fome, apenas com a notícia de que Setembrino Cuevas havia se afogado.
( . . . )
Trecho inicial de O Mergulhador, de Luis do Santos.
Publicação da editora Diadorim,
traduzido do espanhol por Flavio Ilha.
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