O PRIMEIRO FUNERAL DE FLORES DA CUNHA – LETÍCIA COPATTI DOGENSKI
Sempre o perturbou a ocorrência de não ter nome próprio, nome de si mesmo e só. Era um Flores da Cunha entre tantos, assim designado em estima àquele que, tempos passados, fora general e líder benquisto nas terras do Rio Grande do Sul. Era um Flores da Cunha qualquer, na sina de assolar a esperança de boa vida que a mãe pressupunha lhe seria dada como herança do nome. Era mais para Zé-Ninguém que para Flores da Cunha, e sempre o desgostou o fato. Portava a designação de outro, não era ele mesmo, mas um mero defronte. Seu talhe não era jeitoso ou disciplinado como o do verdadeiro possuidor de seu nome, sua natureza não era harmoniosa, tampouco sua ocupação, deslocando sacas de grãos sobre as costas na fazenda dos Seis Pinheiros, era meritório de um genuíno Flores da Cunha. Resignava-se com sua ordinária posição de homem comum na pequenez de sua existência, mas não sem se queixar o quanto pudesse.
Volta e meia trazia à tona o assunto durante a ceia. Quando os revezes cotidianos lhe despencavam sobre a cabeça, dizia que “Isso nunca aconteceria com o verdadeiro Flores da Cunha”. Quando o futum de seus suores após um dia todo de labuta emanava por debaixo de seus braços, proclamava: “O verdadeiro Flores da Cunha cheirava como rosas”. Quando a canseira das pernas o fazia cambetear e tropicar no vento, protestava: “O verdadeiro Flores da Cunha tinha joelhos de ferro”. Sua esposa Rosa muito melindrava, contravinha que nunca quisera se casar com “O verdadeiro Flores da Cunha”, ao que o marido repetia retruques em pensamento para não enervar ainda mais os ânimos dela. Apesar de muito pouco ser capaz, tentava refrear as torrentes reclamonas que golfava sobre a mesa para bom grado da mulher, cujo bem querer lhe destinado era o maior mistério.
Passava a semana toda nos Seis Pinheiros carregando as sacas das colheitas, assentado no indulto de que transportá-las tão pesadas no dorso lhe emperrava as pernas para o caminho de volta. Deveras, apesar da carnadura curta e inflada, na logística perfeita de robustez que o trabalho exigia, tinha os membros já curvando mercês do tempo, a exemplo do cabelo ralo na tampa e do bigode branqueado. Rosa se valia dos dias para usufruir do silêncio da ausência do marido em cada cômodo da residência. Flores da Cunha regressava apenas no fim de semana, para dar sinal de vida, dar aval ao ofício grosseiro nos vinténs atirados sobre a mesa, bebericar do trago forte da bodega próxima ou apoiar os pés quebrantados no beiral da área de entrada da casa. Por isso, na delonga de Flores da Cunha em retornar naquela noite de sexta-feira, Rosa não viu estranheza, que devia de estar se servindo dos hábitos bodegueiros.
O costume do tempo já não lhe permitia importância para com os trocados que o marido esbanjava no botequim da esquina, onde podia alastrar sua má sorte por outros ouvidos que não os seus. Mas quis fazer um escarcéu quando, numa manhã mal nascida, acordou com o esmurrar de sua porta, em batidas insistentes de quase pô-la abaixo. Rosa se içou da cama cravando os pés no chão no remedar da barulheira. Imaginando que o esposo se achegava na mínima capacidade da bebedeira, irrompia os cômodos já resmungando que “Isto não são horas de chegar”. Não foi parco eu espanto, deste modo, ao dar de fuças nas de Rolando, amigo querido de Flores da Cunha, tremendo como se confinado num inverno intrínseco e descomunal. Suas fácies pálidas externavam, sem ser preciso voz, o findar brusco de amizade tão antiga. “Rosa, senta que a notícia não é boa”, disse, já adentrando a sala, fadando Rosa, de supetão, ao penoso entendimento.
Encontraram-no, explicou, numa dessas veredas a caminho das fazendas, decerto em seu retorno ao lar a partir dos Seis Pinheiros. Estendia-se teso e gelado, com o umbigo saltado a apontar a lua minguante, oferecido ao sereno pela camisa de botões aberta. Nem sequer se achegava a alvorada quando ouviu a notícia, noutra baiuca mais distante que agora frequentava pela fresca confiança do bodegueiro em lhe servir fiado, narrada por uns sujeitos enunciando a quem tivesse ouvidos a designação do miserável: o corpo na estrada era Flores da Cunha. Ela que não se afligisse, dizia Rolando ao acarinhar desjeitoso o ombro de Rosa, já despachara o filho Caio junto da funerária para recolher o cadáver do barral da estrada. Viera logo ter com ela, que merecia ouvir de boca amiga o relatar de tão cruel evento. “Toma teu tempo de amargura”, ele dizia em sua voz mais macia, “Sofresse o quanto precisar que eu cuido dos pormenores”.
Deixaria tudo pronto, Rolando prometia, encomendaria as flores e o caixão. Mais tarde, quando o sol já arrefecido, marchariam de encontro ao finado a aguardar na Igreja pelo adeus de seus entes em seu último dia acima da terra. O revés de não tê-lo mais seu despencou sobre Rosa como um machado a lhe destrinchar as entranhas. Passara uma vida, pranteava, à custa de fazê-lo feliz e ser feliz com ele. Avisou a família que viesse: a irmã Agenora, que muito pouco afeiçoava ao cunhado, e os filhos Miriam e Manuel, na veemência da mocidade construindo seus fadários aparte da guarida dos pais. Rezou o terço e regou cada conta com suas lágrimas, mandou para a funerária as rendas do enxoval do casamento, resistido até aquelas bodas de prata, para que forrassem o caixão de cedro. E, amontoando-se aos seus para lastimar sua desventura, tomou flores nos braços e fez sua procissão de encontro a Flores da Cunha.
Não tarde, a família de Flores da Cunha em cortejo esbarrou noutro cortejo por Flores da Cunha. Levavam tantas flores quanto, ensaiavam cânticos enquanto exibiam seus sofreres na rua da Igreja, choravam o desalento pela partida de sujeito tão estimado. Rosa sustou sua consternação para reparar em cada um daqueles rostos incógnitos, ladroando os lamentos pela morte de seu marido, seu homem, seu companheiro. Mas nenhuma angústia alheia lhe era mais atroz que a de uma jovem trajada de crepe lutuoso, cercada e amparada por tantos, enquanto transbordava lágrimas e ulos desesperados. Queixava o finamento do homem como se fosse ela a esposa. Num elã revolto de presenciar luto tão simulado, Rosa arriou as flores de seu colo e foi de encontro ao povaréu em séquito, bradando mil e um impropérios aos que cessavam suas odes no assombro de seu palavreado.
Em meio aos reclames de Rosa de “O marido é meu, o cortejo é meu!”, Agenora deu início àquele que logo se tornou o salmo mais cantado entre as duas procissões: “Flores da Cunha tinha duas famílias”. Enquanto Rosa, sustentada pelos parentes penosos de sua situação, tentava injuriar a outra viúva e aqueles que a escoltavam, Agenora esgoelava aos quatro cantos que sempre estivera certa, e não era por casualidade que tanto desgostava Flores da Cunha. Entre a profusão pasmada e raivosa que se tornara o consórcio dos grupos, esbravejava nas fuças dos seus e dos desconhecidos que “Se tem uma coisa que eu sei dizer de olhos fechados é se uma pessoa presta, e esse aí eu sempre avisei que era cafajeste!”. No esgoelar de suas razões, não percebia os sobrinhos, Miriam e Manuel, esforçando-se para se suster ante a dor de perder o pai, não só em corpo, mas também no sujeito que pensavam conhecer.
Enquanto paziguava os descontroles de Rosa a contendo pelos braços, sendo também vítima das unhadas raivosas remetidas à outra viúva, Rolando tentava imaginar porque diabos seu melhor amigo nunca lhe revelara o tamanho dualismo de sua vida. Neste desconcertar, viu o filho Caio forçando passagem entre o aglomerado pelejando há poucos metros da Igreja, disparado em sua direção com a fronte tomada de assombro. Pelo decair angustiado das sobrancelhas do jovem, já conseguia desvendar o grande engano criado por sua alma leviana. Em meio aos murros de Rosa que erravam a mira e estouravam em seu corpo, convocou aos brados qualquer um que tivesse braços, que careciam de leva-la para casa. Por essa hora, toda a cidade já era sabedora do alarido provocado pela mulher e dos boatos de que o morto sustentava duas famílias, já não havendo mais formalidade para que qualquer dos cortejos continuasse.
Desataram Rosa dos cabelos da outra e a arrastaram de volta ao lar, enquanto se deplorava com os filhos, ora caindo de joelhos em seus pesares, ora culpando os céus por permitirem tamanha dor a uma mulher. Rolando não piava um gemido, mas amparava a amiga pelos ombros como se recitando uma desculpa que não pode ser expressa. Dentre as tantas lágrimas que enxugava do rosto de Rosa e as quedas que evitava ao segurá-la no tropeçar do sofrimento, já não concebia uma vida escusa para o amigo, mas refazia em pensamento a última madrugada na bodega e os erros apressados que provocara. Assistia o cortejo em retorno e engolia a seco, como o derradeiro gole da aguardente, o suplício fruto do relato tosco que acedeu sem confirmar. Amparando Rosa, dava passos curtos, poupando as próprias pernas que, bem sabia, logo mais haveria de correr como nunca antes havia corrido.
O que o arregalo dos olhos de Caio lhe disse de longe sem que fosse preciso palavras, é que aquele funeral desairoso e prematuro era, senão, façanha de um grande descuido de sua natureza ansiosa. Não se aplicava a Flores da Cunha marido de Rosa, cunhado de Agenora e pai de Miriam e Manuel. Tampouco para o general Flores da Cunha, aquele que em outrora fora líder benquisto nas terras do Rio Grande do Sul e que já abandonara suas carnes neste mundo há muito tempo. Era um Flores da Cunha entre tantos, um Flores da Cunha qualquer, mais um entre os incontáveis Flores da Cunha viventes no Sul da América em honra ao primeiro daquele batismo. No tormento de perceber o nome do amigo proferido por bocas decadentes à custa da morte, não perdeu um momento imaginando que era factível outro Flores da Cunha ser o mais azarado naquele dia. A comitiva em regresso vinha cabisbaixa pela rua, e poucos ainda tinham o colo florescendo colorido. Já não se amuavam tanto pelo finado Flores da Cunha, mas pelo tormento demasiado e irregular que lhes causara deixando esta vida. Aos portões de casa, contudo, Rosa imitou o sobressalto daquela manhã ao vislumbrar aquele que, vivinho da Silva, apoiava os pés quebrantados no beiral da entrada na maior serenidade. Na mescla de sentimentos que se revelavam, não sabia se ria, bravejava ou ainda mais chorava. Era outro Flores da Cunha, não o seu. Outra viúva, não ela mesma. Foi de encontro ao marido, dando os cumprimentos num “Isso não são horas de chegar”, como teria feito mais cedo. Rolando, cônscio da baderna vexaminosa de seu engano, já ia bem longe, corria como nunca antes. E pela primeira vez, Flores da Cunha se alegrou de não ser outro Flores da Cunha.
Letícia Copatti Dogenski é gaúcha, cirurgiã-dentista, mestranda em Diagnóstico Bucal pela UFSC e autora das novelas “Onde as Nuvens Fazem Sombra”, “A Última Rosa do Verão” e do livro de contos “Previsões de Mau Signo”. Alguns de seus contos estão disponíveis em https://medium.com/@leticiadogenski
MUITO BOM….RELATO MISTO DE FICÇÃO E REALIDADE SOBRE UMA DAS FIGURAS EMBLEMÁTICAS DA HISTÓRIA DO RIO GRANDE
GFFLOLOSTARIA D E ENVIAR ESSA NARRATIVA PARA A PATRÍCIA FLORES DA CUNHA , CASADA COM O NETO DO GEN FLORES DA CUNHA. OBRIGADA. GILDA BITTENCOURT
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