RETRATOS NA PAREDE – MARISTELA SCHEUER DEVES
Os antepassados o olhavam dos retratos. Não um, mas vários, uma dezena, várias dezenas deles. Tios-avós, bisavós, tataravós. Algumas das fotos na parede retrocediam mais de um século no tempo, e por diversas vezes se perguntara sobre como teriam conseguido, naquele interior do interior, um fotógrafo para fazer os registros mais antigos. Quando verbalizou sua dúvida, a mãe explicou que alguns retratos eram na verdade pinturas – mas tão realistas que, para ele, o pintor devia ter sido um gênio. Em meio aos retratos, imagens de santos, também dezenas, várias dezenas delas (e, observando-as, ele se perguntava quem retratara os santos, porém essa pergunta ele preferia não fazer em voz alta).
Mas eram mesmo os retratos dos antepassados que, quando criança, assustavam-no. Aqueles olhos, aquelas dezenas, centenas de olhos seguindo seus movimentos, perscrutando o mais fundo de sua alma. Pintados ou fotografados, os antepassados o olhavam dos retratos. Não um, mas vários, uma dezena, várias dezenas deles. Tios-avós, bisavós, tataravós, e outros antepassados tão longe no tempo que ele sequer sabia como nomeá-los. Todos olhando-o, seguindo seus movimentos, perscrutando-o. Parecia-lhe impossível esconder deles seus segredos, seus pecados, e isso o apavorava.
Sentia arrepios toda vez que entrava na sala da casa de seus avós – algo que se repetia, religiosamente, todo domingo à tarde. Domingo era dia de visitar os avós, e as visitas sentavam-se nos sofás abaixo dos retratos. Dos retratos de antepassados austeros, que não sorriam, que pareciam velhos mesmo quando tinham bebês recém-nascidos nos braços. Isso era outra coisa que o intrigava: como aquelas mulheres, suas antepassadas, podiam parir se pareciam ter setenta, oitenta anos? Quando criara coragem para fazer essa pergunta, descobriu que aquelas mulheres na verdade eram jovens, não mais que trinta e cinco, quarenta anos, apenas maltratadas pelo trabalho diário embaixo do sol e pelo número de filhos (que, pelos retratos, pareciam contar-se às dezenas).
Certa vez, tendo comido uva escondido no parreiral e mentido que não havia comido para poder comer melancia – pois, segundo a avó, não devia misturar as duas frutas –, tivera um acesso de pânico ao entrar na sala da casa e ver os retratos. Aqueles olhos dos antepassados, seguindo seus movimentos, perscrutando o mais fundo de sua alma, sabiam dos seus pecados: sabiam que tinha comido uva escondido no parreiral (e mentido que não comera para poder comer melancia). Não sabia se era verdade o que dizia a avó, que não devia misturar as duas frutas, mas só de ver aquelas centenas de olhos seguindo-o, perscrutando-o dos retratos, vendo seus pecados, sabendo seu segredo, sentiu o estômago embrulhar e vomitou tudo ali mesmo, na sala, sob o olhar fantasmagórico dos antepassados. Tios-avós, bisavós, tataravós e outros que não sabia nomear e que se perdiam no tempo demonstravam, mudos, sua reprovação, olhando-o sem piedade. E, no chão da sala, a prova de seu crime: pedaços de uva e melancia ainda não totalmente digeridos.
Não lembrava exatamente como terminara o episódio, se fora ou não castigado, mas lembrava-se muito bem dos retratos. Dos olhos dos retratos, das dezenas retratos dos antepassados, olhando-o, perscrutando-o, julgando-o. Sem piedade. Nunca mais comeu uvas e melancia num mesmo dia: não era uma possível congestão que o preocupava, mas os olhos, aqueles olhos frios. Mesmo adulto, mesmo quando estava longe da casa dos avós, a lembrança das centenas de olhos perscrutando-o, vendo seus pecados, o acompanhava, e nunca mais comeu uvas e melancia num mesmo dia. Porque eles, de alguma forma, saberiam, e o julgariam.
Quando brincava de esconde-esconde com os primos – as dezenas de primos, mas não tantas dezenas quanto os antepassados nos retratos –, ele não gostava de esconder-se na sala dos avós. Sabia que, quando alguém entrasse ali para procurá-lo, os olhos dos bisavós e tataravós nos retratos o denunciariam, olhando para o canto em que ele se escondera. Depois de algum tempo, deixou inclusive de esconder-se nos quartos que, para acessar, precisava primeiro passar pela sala: quando fazia isso, os olhos dos antepassados nos retratos o acompanhavam, e continuavam olhando para a porta pela qual se enfiara, denunciando-o. Assim, era sempre o primeiro entre os primos a ser encontrado.
Engraçado, pensava então e seguiu pensando, que apenas a ele os retratos denunciavam. Por que não faziam o mesmo com os primos, com as dezenas de primos? Quando era ele quem procurava e os primos se escondiam, ensaiara de entrar na sala para ver se aqueles olhos, aquelas centenas de olhos dos antepassados nos retratos, os deduravam, pensando que assim seria fácil encontrá-los. Mas não: mal colocava os pés na sala, todos os olhos dos retratos, olhos dos tios-avós, bisavós e tataravós, fotografados ou pintados, voltavam-se para ele. Só a ele acusavam, só a ele denunciavam.
Por muitos anos, o medo dos olhos dos retratos o acompanhou. Quando adolescente, entretanto, passou a rir do temor infantil e a devolver o olhar dos antepassados, encarando tios-avós, bisavós, tataravós e outros que vieram antes deles e que o olhavam dos retratos, tentando penetrar a alma deles como faziam com a sua. Olhava-os e imaginava quais teriam sido seus segredos, seus pecados. Seus crimes, até. Perscrutava os antepassados que o olhavam dos retratos como eles o perscrutavam, e, algumas vezes, chegou a pensar que flagrara um relance de temor em alguns deles. Ou, pelo menos, de espanto ante a sua petulância de encará-los como eles o encaravam, de perscrutá-los como eles o perscrutavam.
Se de início aquilo era um jogo, aos poucos olhar os olhos que o olhavam dos retratos tornou-se uma obsessão. Começou a inventar desculpas para visitar os avós, e, uma vez na casa deles, a inventar desculpas para ir à sala dos retratos, que quando criança tanto evitava. Os antepassados ainda o olhavam das paredes, só que agora ele ria do medo infantil e devolvia o olhar. Você, pensava ele encarando um bisavô, eu estou te vendo. Vendo quem você é, vendo quem você foi. Vendo o que você fez. Depois, virava-se para o retrato do tataravô. Dizia seu nome baixinho, e encarava seu olhar. Estou te vendo, pensava, estou vendo quem você é, estou vendo quem você foi e vendo o que você fez. Pensaram que só vocês tinham esse poder, esse poder de perscrutar-me, de perscrutar minha alma? Agora, eu também vejo vocês, pensava ele (e até mesmo o dizia em voz alta quando não havia ninguém por perto), olhando bem nos olhos dos retratos.
Ele pensava, mas sabia que não era verdade. Sabia que era bravata, que só os antepassados que o olhavam dos retratos, das dezenas, das várias dezenas de retratos que pareciam se multiplicar a cada visita nas paredes da sala dos avós, é que o viam realmente, viam sua alma, viam quem ele era. Ele só conseguia ver seus rostos, seus olhos que o seguiam, e olhar de volta, e desafiá-los, mas não via quem eles foram nem o que eles fizeram e sabia que eles sabiam disso. Pois eles viam no mais fundo de sua alma, e sabiam que era tudo bravata. Que ele era uma fraude. Mesmo assim, encarava de volta os retratos, sem medo – ou, pelo menos, com menos medo do que quando era criança e evitava os olhares dos retratos dos antepassados, que o acompanhavam e perscrutavam.
Ainda estava na adolescência, e ainda desafiava os antepassados que o olhavam dos retratos pendurados nas paredes com o seu próprio olhar, quando o retrato da avó foi juntar-se a eles. A avó, que o conhecia tão bem, a avó, que o pegara no colo e lhe fizera agrados, a avó, que sempre tinha um prato de gostosuras para recebê-lo (embora não deixasse ele e os primos comerem uvas e melancia de uma mesma vez), a avó, que ele amava, foi juntar-se aos retratos dos antepassados nas paredes. No dia em que o retrato foi pendurado – o mesmo dia em que ela foi enterrada –, ele não quis olhar os retratos. Não quis encarar seus olhares, não quis desafiá-los. Não queria desafiar a avó, que, ele sabia, o conhecia melhor do que qualquer antepassado que o olhava dos retratos desde a infância jamais poderia conhecer. Sabia que a avó enxergaria ainda mais fundo dentro dele, que a avó enxergaria, além de seus pecados e seus medos, também a sua dor.
Com o passar dos dias, das semanas, dos meses, voltou a devolver o olhar dos retratos. Viu que a avó, assim como todos os outros antepassados cujos retratos estavam pendurados nas paredes, o olhava. A avó, como os tios-avós, os bisavós, os tataravós e todos os outros antepassados que o olhavam das paredes, o perscrutava. Mas ela não o julgava, pensou, e sentiu alívio; ela o olhava e o acompanhava e o seguia com o olhar, mas era um olhar de amor, como ela o olhava e o acompanhava e o seguia com o olhar enquanto ainda não era apenas um retrato de antepassado pendurado na parede.
O olhar que o retrato da avó lhe dirigia da parede amenizou a sensação que os olhares dos outros antepassados cujos retratos estavam pendurados na parede há mais tempo lhe despertavam. Teriam mudado os olhares que lhe eram dirigidos pelos retratos dos antepassados – tios-avós, bisavós, tataravós e outros que ele sequer sabia como denominar –, ou teria sido o olhar que ele dirigia aos antepassados que o olhavam dos retratos que mudara? Ele não sabia, assim como não sabia se a mudança se devia somente à inclusão do retrato da avó que amava nas paredes, em meio às dezenas, várias dezenas de antepassados. Ele não sabia se era apenas a inclusão do retrato da avó, ou se aquilo significava que ele havia crescido.
Fosse por causa do retrato da avó que agora o olhava das paredes com um olhar de amor, fosse porque ele havia crescido, o certo é que o temor dos olhares dos retratos dos antepassados diminuiu. Isso não significava, entretanto, que seus olhares não mais o seguissem: eles continuavam lá, as dezenas, as várias dezenas deles, olhando-o, perscrutando-o, mas, agora, ele não mais se importava. Ele também não devolvia mais os olhares dos retratos dos antepassados que o olhavam das paredes. Não tentava mais penetrar em suas almas, nem perscrutá-los como faziam com ele. Simplesmente sorria, e, às vezes – quando não havia ninguém por perto –, lhes dava um pequeno aceno com a mão direita. Eles não acenavam de volta, mas o olhavam, sisudos e sérios como sempre.
Depois ele cresceu mais, e quando ele se tornou pai (por essa época o avô já havia virado, como a avó, um retrato na parede), fez questão de apresentar ao filho a sala de retratos na antiga casa dos avós, na qual agora moravam seus tios. A tia até quisera tirar os retratos, ele soube, as várias dezenas de retratos, das paredes, mas o tio não permitiu: era preciso ter respeito para com os antepassados, dissera o tio. E ele fez questão de levar o filho para conhecer os antepassados que os olhavam dos retratos, os avós, bisavós, tios-avós, tataravós e tantos outros, que os olhavam, olhavam para ele e, agora, olhavam também para o filho dele. Olhavam, seguiam, perscrutavam. O que será que viam no interior daquela criança inocente, tão inocente quanto ele mesmo fora um dia?
O filho cresceu e ele percebeu que o filho, como ele quando tinha sua idade, temia os retratos que o olhavam das paredes. Pensou então, pela primeira vez, se seu próprio pai também os temera; não ousou perguntar, mas acreditava que, se perguntasse, a resposta seria sim. Se os antepassados o olhavam dos retratos, das dezenas, várias dezenas de retratos pendurados nas paredes, se os avós, tios-avós, bisavós e tataravós e outros os quais sequer sabia como nomear o olhavam e perscrutavam, e olhavam e perscrutavam seu filho, deviam ter feito o mesmo com seu pai. Por que o pai jamais falara disso com ele? E por que ele próprio nunca tivera coragem de falar dos retratos com o pai? Pensou então se devia tocar no assunto com o filho. Mas será que o filho temia, mesmo, os retratos que o olhavam como ele temera os retratos quando tinha sua idade? Assim, resolveu calar.
Com as exigências do trabalho, o filho, as mudanças da vida, por algum tempo ele quase esqueceu os retratos, pois pouco visitava a antiga casa dos avós, na qual agora moravam seus tios. Um tio não reúne em torno de si toda uma família, como ocorre com os avós, pensou certa vez. Mas ele sabia que os retratos dos antepassados, as dezenas, as várias dezenas de retratos de avós, tios-avós, bisavós, tararavós e outros mais que nunca apendera a nomear, continuavam lá, na sala da antiga casa, olhando e acompanhando e perscrutando a alma de quem nela entrava. Alguns podiam sequer perceber, mas os retratos os olhavam, e desnudavam. Mas um tio não reúne em torno de si toda uma família, como ocorre com os avós, assim ele e o filho, agora já crescido, pouco visitavam a antiga casa e, com isso, pouco viam os retratos.
Soube por uma prima que a galeria de retratos crescera, com a acréscimo de dois ou três tios. Pensou, então, quantos retratos mais caberiam nas paredes. Será que os mais antigos seriam, um dia, desalojados? Será que um bisavô, um tio-avô, um tataravô sairia das paredes para dar lugar a um de seus descendentes? Talvez um dia, porém não logo: a sala era imensa, como toda a casa (que antigamente abrigara não só os avós, mas todos os seus dez filhos), e por mais que dezenas, várias dezenas de fotografias e pinturas dos antepassados cobrissem as paredes, ainda havia muitos espaços vagos nos quais pendurar mais e mais retratos.
E, de tempos em tempos, a galeria crescia mais e mais, e numa das raras visitas percebeu, pela primeira vez, que os retratos dos antepassados que o olhavam das paredes da antiga casa dos avós já não eram mais todos em preto e branco. Desde a avó, e o avô, e agora alguns dos tios, alguma cor pincelava os rostos que o olhavam. Agora, além dos rostos em preto e branco de tios-avós, bisavós, tataravós e outros antepassados que nunca descobrira como se chamavam, rostos em cores – de pessoas que, para ele, um dia tiveram ainda mais cor e vida e amor e sentido – também o olhavam, e o perscrutavam, mas já sem querer penetrar em sua alma: os olhares desses rostos coloridos o acompanhavam com amor, quase com cuidado, e com uma pontinha de saudade. Saudade da parte deles, que o olhavam, e dele, que lhes devolvia o olhar.
O tempo passou e ele, que um dia fora um menino, depois um adolescente, e depois um pai, agora era também um avô. E, nas cada vez mais escassas visitas à antiga casa e à antiga sala de retratos dos antepassados, seus avós, que um dia o olhavam das cadeiras de balanço na varanda, agora os olhavam, a ele, ao filho e ao neto, das paredes da casa em que um dia moraram. Agora, seus avós – que eram agora apenas retratos nas paredes e amor e saudade – eram os bisavós do seu filho e os tataravós do seu neto, e os olhavam, dos retratos, com o mesmo amor que um dia haviam olhado para ele. Quanto aos seus bisavós e tataravós, haviam se tornado, para seu filho e seu neto, aqueles que não se sabe bem como nomear, e que, ainda assim, os olhavam e perscrutavam a cada uma das bem espaçadas visitas.
Um a um, ao longo dos anos, os olhares dos tios foram se juntando nas paredes aos olhares dos avós, dos tios-avós, dos bisavós, dos tataravós e das dezenas de outros antepassados. Os retratos, as muitas dezenas de retratos que dezenas de anos antes lhe davam medo, à medida que se multiplicavam ainda mais lhe traziam apenas nostalgia. Aos risos, contou ao filho e depois ao neto sobre a vez em que vomitara na sala após comer uvas e melancia, mas creditou isso ao nervosismo com a mentira, sem falar-lhes do papel desempenhado pelos olhares. Contou dos primos que, décadas atrás, corriam com ele pela casa – sim, naquela época eram mesmo várias dezenas de primos e primas, não o pequeno punhado de primos que as crianças têm hoje. Eram bons tempos, pensou, apesar dos antepassados que o olhavam dos retratos e que, por muito tempo, o aterrorizavam.
Ficou triste, muito triste, quando o espaço destinado ao pai na parede foi preenchido. Lembrou da pontada de tristeza quando a avó o precedera, tanto tempo antes, e pensou se outra transformação se daria na galeria de retratos e na forma como ele próprio reagiria a ela. Mas, quando entrou ali, os retratos ainda o olhavam, agora com o que ele pensou ser uma pitada de compaixão. Porque eles vislumbravam sua alma, e sabiam o que se passava nela. Resolveu que voltaria com mais frequência. Assim como os avós, os tios também não mais existiam, eram só retratos que o olhavam da parece, como o pai agora era retrato que o olhava da parede, mas o primo que tomara posse da velha casa dos avós garantiu que as portas estariam sempre abertas para ele. Afinal, os antepassados eram de todos eles, as dezenas de antepassados eram dele e das dezenas de primos dele e de seus filhos e de seus netos.
Na última visita, mais uma vez os antepassados o olhavam dos retratos. Não um, mas vários, uma dezena, várias dezenas deles. Agora, mais do que nunca, tinha a impressão de que eram não apenas dezenas, mas centenas. Pais, tios, avós, tios-avós, bisavós, tataravós, e tantos outros que ele nunca aprendera a nomear. Todos eles o olhavam dos retratos, o olhavam e viam sua alma. Não mais tentavam perscrutar o que havia dentro dele, pois disso já sabiam há muito tempo: havia saudade, saudade dos que agora estavam nos retratos coloridos, saudade da criança que ele fora e que outrora encarava com espanto e temor os antepassados em preto e branco, saudade de toda a fantasia e de toda a esperança que então se escondiam em sua alma inocente. Saudades, até mesmo, do medo e do mistério que na época cercavam aqueles retratos de antepassados que lhe pareciam sisudos, e que, agora, via como realmente tinham sido: pessoas que, como ele, um dia foram crianças, jovens, adultos, pais, avós; que, como ele, temeram, amaram, erraram e, às vezes, também acertaram. Que o olhavam com o mesmo amor e a mesma esperança que ele, agora, sentado na antiga cadeira de balanço que um dia fora dos avós, olhava para o neto já quase crescido e que lhe acompanhava sem muita vontade nessa volta ao passado.
O primo dono da casa, envelhecido como ele – e tão, tão parecido com o avô! –, ofereceu melancia e uvas. Ele riu, e disse que, por prudência, preferia ficar só com a melancia. O neto quis as duas frutas, ele pensou em avisar para não misturar, depois riu de novo e desta vez o primo o acompanhou. Provavelmente lembrava, como ele, de sua antiga façanha na sala dos retratos, no passado. Notou, mas não disse nada, que o primo só comia uvas, enquanto recordavam os domingos de verão em que toda a família se reunia no pátio, os avós, os tios, as dezenas de primos, todos com uma fatia de melancia ou um cacho de uvas nas mãos. Ou uma, ou outra, como instruía a avó, que agora era retrato na sala na qual ele certa vez vomitara de nervoso porque os antepassados que o olhavam dos retratos sabiam que ele fizera a mistura proibida.
Naquela noite, sonhou que era outra vez criança e entrava na sala da casa dos avós, de cujas paredes os antepassados o olhavam dos retratos. Só que, no sonho, ele não sentia medo: sentia paz, e compreensão. Olhou ao redor, na sala que sempre lhe parecera tão grande, e viu que todos estavam lá, nos retratos – os avós, os tios-avós, os bisavós, os tataravós, os demais antepassados que ele não sabia nomear, e também os tios, e os pais, e já alguns primos também. Eles o olhavam, e, dessa vez, lhe sorriam, e respondiam quando ele acenava. E ele percebeu que aquele era o seu lugar, sempre fora o seu lugar. Aquela casa, aquela sala, aquelas dezenas e mais dezenas de retratos nas paredes.
A vez seguinte em que entrou na sala dos retratos na antiga casa dos avós, que depois se tornara casa dos tios e agora era a casa de um dos primos, foi como retrato. Um retrato colorido e sorridente, colocado na parede pelo filho e pelo neto, que, ele viu enquanto os olhava do retrato, tinham lágrimas nos olhos. Destinaram-lhe um lugar entre o pai e o avô, coloridos como ele, e abaixo dos bisavós, estes em preto e branco, na parede à direita de quem entrava, próximo ao velho relógio de pêndulo que tantas vezes, assim como os retratos, o assustara. E ele agora olhava o filho e o neto da parede de retratos, apenas mais um entre os antepassados daqueles que vieram depois dele. Ele os olhava dentre as várias dezenas de retratos, e os acompanhava, e perscrutava suas almas.
Maristela Scheuer Deves é jornalista e escritora, especialista em Leitura e Produção Textual pela UCS e mestranda em Letras – Escrita Criativa pela PUCRS. Autora do romance policial A Culpa é dos Teus Pais, dos livros de mistério infanto-juvenis O Sumiço das Bergamotas e O Caso do Buraco e dos livros infantis O Baú dos Contos de Fadas, Os Deliciosos Biscoitos de Oma Guerta e Uma Cidade Desassombrada.