REVISTA DO GLOBO EM BUSCA DE DEFINIÇÃO QUANTO AOS GÊNEROS JORNALÍSTICOS – ANTONIO HOHLFELDT
Genericamente, a revista é uma publicação periódica, entre o semanal e o mensal, que trata de interesses gerais ou relacionada a uma determinada atividade ou segmento etário ou de gênero. Tem, em geral, a forma de brochura, isto é, sem capa dura, em formato menor que o do jornal, mesmo no caso dos chamados tablóides, com uma quantidade significativa de páginas e ilustrações variadas (RABAÇA et BARBOSA, 1978, ps. 411-412), graças ao tipo de papel em que é impressa e que facilita a reprodução de imagens. O termo se origina do latim revidere, que significa ver de novo. Em inglês, surgiu no termo review, que passou logo a significar resenha, principalmente de livros, no jornalismo publicístico do século XVIII. Ainda no século XVIII, impôs-se o termo magazine, oriundo do francês magazin, que se referia a um determinado estabelecimento, a loja de variedades. A revista, assim, era vista como uma publicação de variedades, que revisava os acontecimentos dos últimos dias (ou semanas), aprofundando-os e, portanto, distanciando-se da notícia, pois que os interpretava e comentava. A primeira publicação que assume essa designação é a britânica Gentleman’s Magazine, de 1761.
No Brasil, a primeira publicação que pode receber um conceito de revista é As Variedades ou ensaios de literatura, editada a partir de 1812, em Salvador da Bahia, por Violante Atalipa Ximenes de Bivar e Velasco, filha do editor do jornal Idade d’ouro do Brasil, e que circulou até 1855.
Historicamente, a revista está ligada ao próprio desenvolvimento das tecnologias de impressão e da imagem. Na verdade, só depois de desenvolvidas as tecnologias da fotografia e de sua transformação em matéria-prima para impressão e reprodução é que as revistas encontraram, de fato, espaço para se firmarem junto ao público. A partir dos anos 1920 e 1930, com o surgimento de bancas e quiosques nas ruas das grandes cidades, as revistas passaram a dominar o mercado editorial, atingindo público variado e numericamente significativo. Apesar de boa parte da história das revistas ser a da publicação segmentada, na verdade, desde seu início, a revista teve, na literatura, o seu principal apoio, do ponto de vista do conteúdo, e na imagem – através da ilustração ou da fotografia – a sua atratividade. Por isso mesmo, tornou-se uma publicação de variedades, apta a atingir e a agradar a todo o tipo de leitor, da criança ao adulto, profissional liberal ou simples trabalhador braçal, da mulher dona-de-casa à jovem interessada na última moda dos grandes centros, etc. (MARCONDES FILHO, 2009, ps. 310-311).
País de analfabetos olha revista
Para um país formado de escasso público alfabetizado, como o Brasil, a revista foi uma importante alternativa de informação e de entretenimento, justamente porque baseada na imagem que, em grande parte, dispensava o texto (MARTINS et LUCA, 2008). Foi assim que, ainda no começo do século XIX, mal iniciada nossa imprensa, surgiram revistas como a já mencionada As variedades ou ensaios de literatura, O patriota, jornal literário, político e mercantil (1813), no Rio de Janeiro; a Revista da Sociedade Filomática (1833), em São Paulo, ou a Niterói, revista braziliense, de ciências, letras e artes (1836), esta última editada em Paris, todas com caráter literário e, por conseqüência, dirigidas a uma elite do país.
Logo, porém, a imagem ganhava espaço e as revistas especializadas na charge política ou de costumes conquistava espaços, com o aparecimento de publicações como A lanterna mágica – Periódico plástico-filosófico (1844), de Rafael Mendes Carvalho; A semana ilustrada (1860), de Henrique Fleuiss; O besouro, do português Rafael Bordallo Pinheiro (1878); além de publicações como as do piemontês Angelo Agostini, que logo se dedicaria também às histórias em quadrinhos. O desenvolvimento das técnicas gráficas no Brasil abre espaço para a caricatura, especialmente graças à litografia, através de publicações como O diabo coxo, O cabrião (1866) e a Revista Ilustrada (1876), atingindo a era das revistas ilustradas e dotadas de reproduções fotográficas, como O malho (1902), Kosmos (1904), Careta (1908), Fon-fon (1907), que celebrizaram J. Carlos, chegando às revistas dirigidas especialmente às crianças, como O tico-tico (1905), Eu sei tudo (1917) ou às mulheres, como Vida moderna (1906). Mas a literatura não perdera espaço, devendo recordar-se publicações como a Floreal (1907), de Lima Barreto, ainda que o repartindo com as novas artes e suas vanguardas, como o caso de O Pirralho (1911), Klaxon (1922), Terra roxa e outras terras (1925), Revista de antropofagia (1928), A revista (1925), Verde (1927), Maracujá (1929), Estética (1924), Festa (1927) ou Arco e flexa (1928), distribuindo-se pela geografia do país, entre Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Fortaleza, Cataguazes e Porto Alegre.
A Revista do Globo
Em Porto Alegre, a partir de 1929, passa a ser editada a revista de que se pretende ocupar neste estudo. Trata-se da Revista do Globo, que circulou de 5 de janeiro daquele ano a 17 de fevereiro de 1967, num total de 943 edições, duas das quais consideradas especiais, dedicadas, respectivamente, à chamada Revolução de 1930 e à grande enchente de maio de 1941. Geralmente com 80 a 90 páginas, dirigia-se ao público em geral, dividindo espaço entre a imagem e o texto, com forte ênfase, em boa parte de sua história, à literatura, mas transformando-se, gradualmente, numa revista de variedades, nas últimas décadas, sobretudo sob a direção de Justino Martins (14 de janeiro de 1939 em diante, num total 193 edições). Circulava quinzenalmente, à exceção do período de 10 de janeiro de 1931 a 28 de fevereiro do mesmo ano, em que se ensaiou uma publicação semanal, que logo foi abandonada). Foi idealizada por Mansueto Bernardi, a pedido de José Bertaso, que recém assumira a Editora do Globo (REVISTA DO GLOBO – Catálogo e texto, sem data, CD 1), e mais tarde adotada e ampliada por Erico Verissimo.
Durante 37 anos consecutivos, a Revista do Globo que, no início, deveria chamar-se Coxilha, “representação simbólica da terra gaúcha”, fez jus à denominação Revista do Globo quase que como uma imposição do público, que assim a batizou desde logo que soube do projeto de sua publicação, cobrindo acontecimentos de todo o mundo, com destaque para o regional e o nacional. Os textos internacionais eram literalmente recortados de publicações semelhantes e depois traduzidos pela equipe liderada por Erico Veríssimo. Propunha-se a “registrar e divulgar, com o auxílio da Livraria do Globo, tudo o que no Rio Grande houver e doravante ocorrer, digno de registro e divulgação” (THORSTENBERG, 1998, ps. 131 e 132).
A primeira revista ilustrada do Rio Grande do Sul fora Kodak (1912), cujo título dispensa qualquer comentário, dirigido por Lourival Cunha. Seguiram-se, dentre outras, A máscara (1918) e A ilustração pelotense (1912). A Revista do Globo logo se tornou “a principal publicação de seu gênero no sul do país, crescendo em tiragem e circulação, devidas em grande parte à sua qualidade gráfica e ao espaço dado à reportagem fotográfica, baseada na cobertura da vida social” (FRAGA, 2004, p. 32), num primeiro momento, até a chegada de Erico Veríssimo à redação da mesma. A partir de então, dirigir-se-ia mais à literatura, mas não deixou de incluir “os principais acontecimentos nacionais e internacionais: literatura, artes em geral, eventos políticos, econômicos e sociais, esportes, moda, culinária, humor, etc., tornando-se a vitrine da tradicional livraria da Rua da Praia” (FRAGA, 2004, ps. 34 e 35).
Depois da publicação de toda a coleção facsimilada da Revista do Globo, pela Faculdade de Letras da PUCRS (1999), num total de 15 CD-roms, uma série de trabalhos de pesquisa vêm-se desenvolvendo em torno da publicação. Valemo-nos, especialmente, de Página de rosto – Uma amostra do potencial literário da Revista do Globo, de Valdíria Thorstenberg (1998) e A interface literária da Revista do Globo/ Editora Globo, de Fabiane de Souza Fraga (2004), ambas orientadas por Alice T. Campos Moreira, a grande incentivadora de todo o projeto.
O atual trabalho pretende discutir o conceito de gênero jornalístico, tal como utilizado pela Revista do Globo, especialmente quanto aos formatos reportagem, entrevista e artigo que, pelo verificado facilmente, em levantamento nos arquivos da revista, é em geral reduzido apenas a reportagem. Para este estudo, vai-se ater exclusivamente ao material de redação dedicado à literatura que é, de modo geral, o quantitativamente mais significativo, podendo-se mesmo dizer – o que não é de surpreender, em se tratando de uma revista publicada por uma editora de livros – seu principal foco editorial.
A literatura na revista
Fabiane de Souza Fraga, no estudo mencionado, refere 14 seções que, ao longo da história da revista, ocuparam-se com a literatura, especificamente: “Guia do leitor”, “Escritores e livros”, “Feira livre”, “Literatura”, “Literatura e arte”, “Vida literária”, “Literatura hoje”, “Livros e autores”, “Livros novos”, “As últimas edições da Livraria do Globo”, “Registro de Livros”, “Os livros da quinzena”, “Livros a aparecer” e “Leia isto”, que iam da simples notícia a respeito de um escritor, de um acontecimento literário ou de um próximo lançamento, a uma resenha mais aprofundada sobre uma obra. Neste levantamento, Fraga reconhece que o gênero romance foi o mais aquinhoado, e dentre os tantos autores abordados, Erico Veríssimo foi, claramente, o que teve maiores oportunidades, ao lado do poeta Mario Quintana, ambos, diga-se de passagem, editados pela própria Globo. Algumas seções foram efêmeras, como “As últimas edições da Livraria do Globo” ou “Registro de livros”, com não mais de um ano de presença nas páginas da publicação. Outras, ao contrário, foram duradouras, como “Escritores e livros”, que permaneceu durante 23 anos, ocupando, em média, duas páginas de cada edição da publicação (FRAGA, 2004, p. 141); pode-se igualmente evidenciar que o periódico funcionou como eficiente veículo de apoio e de divulgação dos títulos editados pela Globo, o que permite constituir, de certo modo, uma espécie de cânone literário (autores e gêneros referenciais) para um determinado período.
Mas a verdade é que a revista não falou de literatura apenas nesses espaços, como fica evidente se isolarmos as reportagens e entrevistas publicadas em suas páginas. Aliás, o trabalho de Valdíria Thorstenberg, que fixa seu foco sobre a página de rosto da revista, evidencia claramente isso, a partir da publicação, naquela página, do sumário da revista. Valdíria mostra que, com algumas variações, a Revista do Globo estampava, na chamada página de rosto, o cabeçalho com o título da publicação; o logotipo da mesma; o subtítulo; a formação do corpo editorial; a imprenta da publicação; o expediente e, enfim, o sumário. Da rápida consulta aos facsímiles de algumas dessas páginas de rosto, logo avulta que, a partir de 1940, passam a merecer destaque as reportagens, que crescem em importância até praticamente a metade da década de 1960, quando então desaparece do sumário a classificação genérica, limitando-se aos títulos das matérias.
Gêneros jornalísticos em discussão
O que logo se descobre, porém, é que o pesquisador não pode confiar cegamente na categorização assumida pela editoria da revista. Muitos textos parecem estar classificados erroneamente ou apresentam dubiedade quanto ao que, de fato, caracterizam, segundo os conceitos atuais. Basta algumas referências que se escolhe ao acaso: “Uma tarde com Viana Moog”, de Justino Martins (16.9.1939); neste caso, o repórter conversa com o escritor, mas em nenhum momento há qualquer transcrição de uma só fala de Viana Moog, cabendo sempre a palavra (ou o texto) a Martins: reportagem ou entrevista? A revista não cataloga a matéria, nem na primeira página da matéria, nem mesmo no sumário, já que a mesma aparece sob a editoria “Literatura”. Mas também não vem classificada enquanto “Reportagem”. Na aparência, é uma entrevista, na medida em que o repórter conversa com o escritor. Então, se se levar em conta que a entrevista é um gênero específico, mas também pode ser apenas instrumento para uma reportagem ou um artigo… No caso da edição do CD-rom, acabou sendo classificada enquanto reportagem.
Do mesmo período, a matéria “O casal Ludwig: Na intimidade do castelo de Moascia”, de Elisabeth Aigner, é um texto traduzido (25.2.1939) que aparece sem classificação explícita. Evidentemente, é uma entrevista, mas se acha catalogada no CD-rom como reportagem. Sob que critério?
Tomemos outro caso: “Sou um homem escancarado”, de Antonio Barata (28.2.1942); abaixo do título, encontramos a referência à reportagem que se vai ler. Mas o uso da primeira pessoa do singular entre aspas ou presentes em parágrafos introduzidos pelo travessão que, na língua portuguesa, indica a fala de alguém outro que não o que se expressava no parágrafo anterior, indica tratar-se, claramente, de uma entrevista, ainda que a revista a tenha classificado como uma reportagem…
Em “Ciro dos Anjos”, de Homero Senna (19.3.1949), ocorre a mesma situação. Tem-se claramente uma entrevista, com o diálogo entre repórter e entrevistado, mas a matéria é denominada reportagem.
Há, por outro lado, algumas situações mais difíceis de analisar, como em textos tipo “Stela me abriu a porta”, de Marques Rebelo (28.3.1942). O texto é assinado por Marques Rebelo, embora refira uma entrevista concedida a Antonio Barata. Nas linhas de apoio, lemos: “Como eu vejo a literatura do Rio Grande” ou “O labirinto, o melhor conto que escrevi”, evidenciando que o texto é auto-referencial; do mesmo modo, um texto como “O princípio das catedrais”, de Justino Martins (18.2.1950), termina por confundir o leitor, na medida em que se constituem, de certa maneira, em entrevistas, mas estão denominadas como reportagem. As linhas de reforço da manchete falam em entrevista, mas na assinatura da matéria, aparece reportagem. O que ocorre aqui? Há um certo critério subentendido: a entrevista é apenas o meio pelo qual o jornalista alcança as informações que busca, mas a matéria é, fundamentalmente, uma reportagem a respeito da edição de livros de luxo, a partir da conversa do repórter com um importante editor europeu?
Vai-se a outros exemplos: “Três poetas inéditos”, de Fernando Castro, é outro caso interessante. Trata-se de um texto referente a três escritores inéditos, como antecipa o título da matéria, um espanhol imigrado e dois argentinos. O repórter conversa com eles, sim, mas sobretudo faz um registro das condições de sobrevivência dos mesmos e, ao final da matéria, apresenta uma espécie de síntese biográfica de cada um. Entrevista? Na perspectiva de ser a entrevista o meio pelo qual o repórter alcança suas informações, certamente. Enquanto gênero jornalístico? Difícil imaginá-la como tal. Poder-se-ia, hoje em dia, classificar o texto muito mais como um artigo?
Isso significa, portanto, que o pesquisador precisa consultar cada matéria, diretamente no arquivo respectivo. Ou, por outro lado, que a editoria da Revista do Globo ainda não possuía um critério rígido a respeito dos gêneros dentro dos quais vai classificar os materiais publicados… e sua classificação atendia, quem sabe, muito mais ao gosto do público leitor… Ou, possibilidade esta que não exclui as demais, que os organizadores da coleção em CD-rom fizeram suas próprias classificações sem se preocuparem com o que a própria revista estampava ou com qualquer teoria de gêneros específica do jornalismo…
Examine-se, então, ainda que rapidamente, o que a teoria do jornalismo nos diz a respeito de cada um destes gêneros. Diz-se que a matéria-prima do jornalismo é a notícia, “relato de fatos ou acontecimentos atuais, de interesse e importância para a comunidade, e capaz de ser compreendido pelo público” (RABAÇA e BARBOSA, 1972, p. 324). Adriano Duarte Rodrigues enfatiza o aspecto midiático do relato (2000, p. 89), enquanto Ciro Marcondes Filho chama a atenção para o teor de novidade que a notícia deve conter (2009, p. 273).
Tomando-se a notícia como formato padrão do relato jornalístico, pode-se diferenciar a reportagem enquanto uma notícia desdobrada ou aprofundada: num primeiro sentido, ela é o “conjunto de providências necessárias à confecção de uma noticia jornalística”, implicando a cobertura, apuração, seleção de dados, interpretação e tratamento editorial segundo determinadas técnicas (RABAÇA e BARBOSA, 1972, p. 405). Por extensão, a reportagem torna-se aquela notícia que vai além do primeiro parágrafo que, no jornalismo contemporâneo, é chamado de lead e que deve responder às questões essenciais sobre quem, o quê, quando, onde. Quando se buscar mostrar o como e o por quê, deve-se ir além da notícia, chegando à reportagem. O termo reportagem origina-se do francês repórter, que significa reconduzir ao lugar original, o que, em termos jornalísticos, se traduz pela narrativa competente em reproduzir o(s) acontecimento(s) através de um relato específico. Christa Berger e Beatriz Marocco propõem uma tipologia da reportagem que inclui a reportagem informativa e a reportagem interpretativa; reportagem literária; reportagem de precisão, etc. (BERGER et MAROCCO in MARCONDES FILHO, 2009, p. 307). No caso da reportagem interpretativa, abre-se caminho para o jornalismo investigativo. Não é o caso, por certo, da Revista do Globo. A maior parte de suas reportagens, quando assim se pode as classificar, abordam lugares e eventos literários, ou centram sua atenção em temas culturais, o que, muitas vezes, as aproxima do artigo, mais do que da reportagem propriamente dita.
O que se diz a respeito do artigo, então? Trata-se de um “texto jornalístico interpretativo e opinativo, mais ou menos extenso, que desenvolve uma idéia ou comenta um assunto a partir de uma determinada fundamentação”, afirmam Carlos Alberto Rabaça e Gustavo Barbosa (1972, p. 25). De modo geral, o artigo vem marcado por uma opinião (RODRIGUES, 2000, p. 14). Trata-se de uma forma moderna, reduzida, do antigo ensaio (essay) do jornalismo britânico do século XVIII, desenvolvendo um conjunto de idéias sobre ou em defesa de determinado tema.
Ainda ao acaso, consultando os fichários dos CD-roms, chega-se a esta matéria: “O ano literário nos Estados Unidos”. Trata-se de matéria veiculada em 12 de janeiro de 1946. No sumário da revista, vem sob a editoria “Divulgação”. Ao se consultar o artigo, descobre-se ser a tradução de texto publicado pela revista Time, por licença especial. Trata-se de um levantamento do movimento literário norte-americano naquele país, mercado que interessava especialmente a Erico Veríssimo que, enquanto editor da Globo, vinha introduzindo diversos escritores norte-americanos junto ao leitor brasileiro, muitas vezes ele mesmo se responsabilizando por suas traduções. Evidentemente, é um artigo pois, mais que informar a respeito de um acontecimento, o que o colocaria enquanto reportagem, também opina a seu respeito. A revista não o classifica – a chapeleta da matéria fala apenas em informação – mas, na catalogação feita a posteriori, pelos editores do CD-rom, aparece enquanto reportagem. O mesmo ocorre com “Presença e ausência de Mario de Andrade”, editado em 23 de fevereiro de 1946. Trata-se de uma bela evocação de Mario de Andrade, assinada por Justino Martins, com excelente material fotográfico. Tanto o sumário da revista quanto a assinatura da matéria a classificam enquanto reportagem. Mais que uma reportagem, contudo, na medida em que há a apreciação sobre a produção literária do escritor paulistano, trata-se claramente de um artigo que, no entanto, aparece classificado enquanto reportagem no próprio sumário da revista. Ainda um terceiro exemplo: “Um convite à leitura”, de Luiz Carlos Barbosa Lessa, editado em 26 de abril de 1947. Trata-se de um artigo a respeito de bibliotecas e livros populares, valorizando a leitura. Tanto no sumário da revista, quanto na assinatura da matéria, o gênero indicado é o da reportagem. Contudo, uma leitura mais atenta mostrará que se trata apenas de um artigo.
Reportagem ou entrevista?
Pode-se estender este levantamento infinitamente. Vai-se verificar que, de modo geral, a Revista do Globo centrou sua atenção em dois gêneros claramente jornalísticos, a reportagem e a entrevista, embora, na prática, explore outros tipos de gêneros jornalísticos. A variação, contudo, não aparece, nem em seu sumário, nem na assinatura das matérias. O mesmo critério, por conseqüência, foi adotado para a catalogação do conteúdo da revista. Isso desclassifica a revista ou a tarefa de sua catalogação? Claro que não. O que evidencia, apenas, é que o reconhecimento dos gêneros jornalísticos é, sobretudo, uma questão de cultura jornalística. No caso da Revista do Globo, que se dirigia a um público não-especializado, mas que se pretendia leitor ou que se tornasse leitor, havia que facilitar as coisas. Daí a simplificação dos dois gêneros. Mais que isso, é bom lembrar que, propositadamente, a atenção deste artigo foi centrada em período anterior aos anos 1950, quando só então a imprensa brasileira sofrerá uma forte renovação e, sob o impulso do jornalismo norte-americano, modificar-se-á sensivelmente, inclusive com a introdução de procedimentos até então inexistentes na prática jornalística nacional. A partir do Diário Carioca, num primeiro momento, mas logo depois com Última Hora e Jornal do Brasil, será adotada a prática do lead, da objetividade jornalística e as editorias ganharão maior importância na atratividade e definição prévia do leitor. É claro que isso não vai se refletir de imediato nas múltiplas publicações brasileiras. Basta lembrar que, dentre os três jornais mencionados, todos do Rio de Janeiro, medeia pelo menos uma década de história do jornalismo brasileiro.
Variação de editores, variação de conceito?
E as revistas? Por definição, elas viviam seu próprio universo. Adotarão essas práticas e esses conceitos? Eis uma pesquisa a ser desenvolvida em nosso país, e ainda inexistente. Apenas a título de exploração do tema, escolheu-se os anos 1960 foi-se investigar qual o comportamento da Revista do Globo. Não se deve esquecer que já outros editores respondem pela publicação. O diretor é, agora, José Bertaso Filho, e o editor, o jornalista Antonio Goulart, entre 1960 e 1964; Ney Fonseca, até o início de 1965, e Flávio Carneiro, ao longo dos dois próximos anos, sendo substituído por João Freire, que já respondera anteriormente pela revista, e que vai permanecer até o final de sua história. Ou seja, seguir-se-ão um sem-número de editores, o que pode pressupor também diferentes conceitos sobre a revista. O que ocorrerá, então, com ela, quanto ao tema que está a se discutir?
Ao chegar aos 33 anos de vida, a revista está mais moderna. Na edição de 3 de fevereiro de 1962, estampa 14 matérias indicadas como reportagens, no sumário. Nenhuma menção a qualquer entrevista. Logo na página 28, já se vai encontrar a primeira dissonância. Apontada como reportagem, no sumário, a matéria “O magro da gaita”, sobre Edu da Gaita, torna-se, agora, entrevista, devidamente assinada por Carmen Fernandes. O mesmo ocorre à página 40, quando a revista comemora seu aniversário, entrevistando três antigos editores, Antonio Goulart, Mansueto Bernardi e Erico Veríssimo. Ao contrário do caso anterior, aqui se indica apenas a existência dos três depoimentos. A matéria, contudo, está toda na primeira pessoa, o que evidencia muito mais um depoimento (artigo) do que propriamente a entrevista. Na mesma edição, ainda, a matéria “Miriam tem olhos castanhos”, assinada por Luis Carlos Lisboa, é introduzida apenas com a indicação “Textos de…”, constituindo-se, efetivamente, numa entrevista, e não numa reportagem, como se encontra no sumário.
Ainda aleatoriamente, como tem sido o método adotado, chega-se a 2 de janeiro de 1965. Uma consulta ao sumário indica o abandono da categorização das matérias. Estão indicados apenas os títulos do que se irá ler na revista. Folhando-a, chegamos à página 28, onde se descobre a matéria intitulada “Um maestro que é Mozart”. Trata-se de entrevista realizada por Lea Brenner com o maestro e compositor Camargo Guarnieri. A matéria vem caracterizada, contudo, como reportagem. O mesmo vai ocorrer com “O Gre-nal dos presidentes”, que Flávio Carneiro assina. A matéria é introduzida enquanto reportagem; também no olho da mesma, pequeno texto que introduz as entrevistas com os presidentes dos dois principais times de futebol sul-rio-grandenses, menciona-se o texto como reportagem, embora o mais incauto dos leitores, ao passar seus olhos por ela, verifique tratar-se de uma dupla entrevista com ambas as personalidades futebolísticas. Por fim, na página 70, vai-se ler “Vim salvar o mundo”, texto de Paulo Poli, anunciado como reportagem mas que é, na verdade, uma entrevista com o motorista Bezerra da Cunha, nordestino que se pretende profeta…
A revista encerrará sua existência com a edição 941, de fevereiro de 1967. Circulava quinzenalmente. O sumário estampa novidades: sem indicar categorias das matérias, separadamente, como fizera ao longo de boa parte de sua vida, traz, agora, porém, indicativo de entrevista ao menos para duas matérias. De fato, na página 22, está estampada uma entrevista com o publicitário Flávio Corrêa, em matéria assinada por Fúlvio Bastos. Da mesma maneira, na página 66, descobre-se uma anunciada entrevista com o cantor Orlando Silva, assinada por Paulo Carneiro. Mas teria a editoria da revista, enfim, adotado critérios mais contemporâneos para a categorização dos gêneros jornalísticos apresentados a seus leitores? Parece que não. Na mesma edição, à página 14, matéria intitulada “Leny, a cantora que vale quanto pesa” (alusão a um conhecido produto da época?), em texto assinado por Adolfo Braga é…? A conhecida cantora havia retornado dos Estados Unidos e anunciava o final de sua carreira. Embora apenas anunciada como texto, na verdade a matéria é inequivocamente uma entrevista, ainda que não identificada como tal. Leia-se essas passagens: “Foi numa manhã ensolarada que conheci Leny Eversong pessoalmente”; “Leny recorda: …”; “Quando lhe perguntei a respeito de seus planos…”; “Estou realizada como pessoa humana – disse-me Leny, sem que eu lhe perguntasse qualquer coisa” , e assim por diante – trata-se de estratégias textuais claramente indicativas de uma entrevista, ainda que não categorizada como tal, pela publicação.
Em suma, o que concluir? Aparentemente, o gênero reportagem, na Revista do Globo, abarca tudo aquilo que não seja coluna, publicidade ou simples material informativo. Quanto à entrevista, embora seja dos gêneros mais freqüentados pela publicação, como se pode verificar com facilidade, bastando folhear-se a mesma, só em suas últimas edições ela é eventualmente assim identificada. Pode-se resumir, pois, que a Revista do Globo preferiu ignorar novos conceitos jornalísticos para simplificar e facilitar ao leitor da revista. Licença poética, talvez, mas que gera, para os eventuais pesquisadores da publicação, na contemporaneidade, um desafio e um cuidado fundamentais: não se pode seguir a categorização adotada pela revista e, por conseqüência, por sua digitalização e catalogação, sendo necessário, assim, que se consulte cada matéria, se a pesquisa implicar em discriminar e identificar um determinado gênero de texto veiculado naquele veículo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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MARCONDES FILHO, Ciro (Org.) – Dicionário da comunicação, São Paulo, Paulus. 2009.
MARTINS, Ana Luiza et LUCA, Tânia Regina de (Org.) – História da imprensa no Brasil, São Paulo, Contexto. 2008.
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Antonio Hohlfeldt é Pós-Doutor em comunicação pela Universidade Fernando Pessoa, Porto (2008). Pesquisador do CNPq. Ex-Presidente da INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (2008-2014). Professor do PPGCOM da PUCRS, nas disciplinas de “Teorias da Comunicação”, “Comunicação e opinião pública” e Professor do PPGL da mesma universidade, onde leciona diferentes disciplinas, dentre as quais “Teorias do Drama”. Na Graduação, leciona “Leituras em Jornalismo” e “Laboratório de texto teatral”. Autor de ensaios no campo da Literatura e da Comunicação Social, dentre os quais Teorias da comunicação: Conceitos, escolas e tendências (Vozes, 2001, 16ª. edição).