RUAS DE MAIO – IURI MÜLLER
Saio de casa vestindo a camiseta, pouco depois das duas da tarde. Faz sol e o outono naquela hora abre mão do vento frio. As ruas estão quase vazias, como acontece normalmente aos domingos. Muitos ainda estão nos churrascos neste horário, e dá para sentir o cheiro da carne desde as calçadas. É assim nas casas do Centro e nos bairros que se erguem na medida em que se caminha pela avenida. Mas eu ando devagar, com as mãos no bolso do casaco de lã. Primeiro pela Pantaleão, logo na Henrique Dias. Dali, já enxergo as costas da Catedral, que se apresenta neste estranho ângulo aos fundos do beco do Atlético. Então escolho a André Marques até a Vale Machado, a rua em que por quatro anos eu aguardava o ônibus, mas nos finais de semana ela mais parece uma passagem desabitada. De qualquer maneira, é por ali que eu alcanço a avenida. Na primeira quadra, o único ruído é de uma igreja que celebra, sem cessar, cultos durante o dia todo. Mais adiante, algumas motos de entrega saem das pequenas garagens, com seus motoristas anestesiados pelo sono ou pela ressaca. Vejo o supermercado, fechado, o antiquário, fechado, dois ou três açougues que já se preparam para também eles fecharem outra vez as grades da entrada. Quem havia optado pelo churrasco já tinha comprado carne, de nada adianta permanecer em pé atrás do balcão depois das duas. Desço a avenida não pelo canteiro central, onde os bancos estão vazios, mas pela calçada da margem direita. Há alguns anos, os camelôs montavam dezenas de tendas por ali, e disso não há nem sinal. Do outro lado da via, há, penso que ainda exista, um café que abre milagrosamente aos domingos, e era um refúgio repetido, mas necessário, quando eu vivia nesta cidade. Vejo que ainda está lá, esta sim, a loja que vende pássaros e espalha gaiolas pela calçada. Quando venço a segunda quadra, uma moto diminui a velocidade e o motoqueiro me pergunta onde fica o estádio, sem tirar o capacete. É o perigo de partidas assim, eu penso, gente que nunca foi a um jogo e agora que chega a fase boa resolve aparecer. Mas informo corretamente, indico onde deve começar a Rua Sete e o caminho que se deve fazer até o estádio. É errado culpar os torcedores de ocasião pelas derrotas, eu sei, mas ainda assim vejo como uma circunstância de azar. Com estádio cheio, as coisas não costumam dar tão certo. A mesma cena se repete na altura do Hotel Samara, onde se hospeda o livreiro argentino de quem eu já devo ter comprado cinquenta e cinco livros. Mas o segundo torcedor pelo menos vestia a mesma camiseta que eu, deve ter se preparado melhor para a partida. Quase pedi uma carona, mas o dia estava feito para as caminhadas, quem sabe até a esmo, por aí. Em outros anos, os domingos eram de largos e demorados percursos a pé. Minhas companhias sempre estiveram um pouco longe do Centro, e eu inevitavelmente ao lado do Parque. Ao longo do tempo, decorei cada padaria ou armazém que abriu, fechou e deu lugar a qualquer outra coisa no trecho que começa na Astrogildo e termina lá perto dos quartéis da Borges de Medeiros. É um percurso bonito: se passa pelo Calçadão, pela Praça dos Bombeiros, a esquina com a Visconde de Pelotas, e então me falta pouco. Mas agora eu estou caminhando para outro lado, já me vejo pisando os trilhos da Estação, e lembro que nesta madrugada ouvi um trem que chegava ou que partia, e que me acordou por alguns instantes. Na Rua Sete, percebo alguma movimentação, ainda que tenha saído cedo demais de casa. Algumas camisetas, alguns carros a mais na rua estreita, a rua que antes já foi a terceira ou a quarta mais importante da cidade, e hoje ela importa quase que só para os habitantes desta região. Na rádio, alguém comenta algo sobre ingressos esgotados, mas eu sei que é mentira. A duas quadras do estádio, compro o meu por dez reais. O portão de ferro está aberto e muita gente já enfrenta as britas e adentra o pátio. Chego sozinho, por lá devo encontrar algum amigo ou conhecido, e depois chegará o meu pai. Falta ainda uma hora para o jogo, que eu vejo passar em um par de conversas, no contorno quase sem pensar que faço por todo o limite das arquibancadas. E logo já está tudo no lugar, todos aí, duas mil pessoas num dia de céu azul e de um sol que não nos queima, só nos beija, e as coisas começam bem para logo se desmoronarem em poucos minutos. Fizemos o primeiro, levamos dois, arrastamos o resto do jogo para levar a função para a marca do pênalti. O nosso craque, camisa dez nas costas, anos e anos de Segunda Divisão e de uma magia ignorada pelos que não conhecem estes campos, pega a bola primeiro e com ela arrasta as redes para trás. Saímos na frente, mas outra vez eles não se intimidam e então não perdoam o nosso erro. Ganham, levam as chances para lá, colocam o estádio outra vez em silêncio. Ninguém arrisca uma vaia, ainda bem. Subitamente mudos, saímos pelo mesmo portão para fazer o caminho inverso, de volta para casa. Desta vez, vou embora de carro. No rádio, o técnico ou o presidente agradece aos que lá estiveram, valoriza o empenho dos jogadores, recorda as dificuldades financeiras e aponta que o próximo ano pode ser diferente. Para mim não é uma conversa nova, mas eu sempre acredito. Algumas luzes da rua se acendem, o céu começa a escurecer. Já há quem busque por diversão barata na avenida e quem caminhe sem rumo, indiferente às decepções do futebol subterrâneo e do ocaso e do outono.
Iuri Müller é jornalista, escritor e pesquisador em Literatura. “Ruas de maio” integra o volume de contos Luz em nevoeiro (Modelo de Nuvem, 2016). Contato: iuri.muller@gmail.com
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