UMA HISTÓRIA DE AMOR À TERRA – MARIA ALICE DA SILVA BRAGA

Manoelito de Ornellas foi um homem que conquistou o apogeu e marcou sua época como um intelectual que fez da literatura o veículo de conhecimento e divulgação da cultura sul-rio-grandense. De temperamento forte, por seu sangue latino, passional e de espírito romântico, foi, antes de tudo, um homem fascinado pela palavra.

Ornellas apreendia o mundo pela sensibilidade, por isso o homem e o poeta são inseparáveis. Descrever um é o mesmo que buscar no outro o complemento dessa complexa e romântica personalidade.

Dono de uma sensibilidade pura e compreensão clara dos problemas dos homens, sua escrita começou a se delinear na vida das criaturas humanas, nos conflitos do mundo e nas questões da terra e das origens, pois o escritor percebe, sofre e a sua angústia transforma-se em arte.

Manoelito afirmava que um livro de memórias é como uma confissão: clara, sincera e límpida. Quando o autor expressa suas vivências é a realidade que segue vibrando através de épocas mortas. Assim, escreveu Terra Xucra e Mormaço, tendo deixado, inacabado, Estuário – seriam três volumes de suas memórias. É interessante observar que o ato de recordar pertence ao presente, mas o reencontro com os entes queridos e com os espaços vivenciados transporta o autor para um tempo passado, permitindo, assim, que ele o reviva, religando o princípio e o fim – esse percurso é a totalidade criadora.

DESENVOLVIMENTO

Mormaço, segundo volume da trilogia inacabada de memórias do escritor gaúcho Manoelito de Ornellas é uma narrativa constituída por memórias de ausências: as figuras que animam o cenário são aquelas que povoaram a juventude do autor, e a paisagem, eternizada em molduras, é a obra mais completa de Manoelito, que formou uma galeria da “querência perdida… a imagem do pampa, iluminado de sol, sem esconderijos, onde os amanheceres e os crepúsculos eram mais demorados.”[1] Nesse cenário, fluía o tempo, tanto o cronológico como o psicológico e, na monotonia da paisagem, os calendários chegavam e terminavam, recomeçavam e, assim, cumpriam seu trabalho. O clima caracterizava a geografia humana.

Manoelito de Ornellas, em Mormaço, desce ao fundo de si mesmo, na medida em que o presente busca as referências no passado e o homem define a sua identidade através do culto e da lembrança dos seus antepassados. Ao revisitar Tupanciretã – cidade onde viveu sua juventude, fixou verdadeiros laços de afeto, conheceu e se engajou na política, deu os primeiros passos no caminho da literatura e do jornalismo e conheceu a mulher que foi sua companheira por toda a vida – Manoelito, já homem maduro, percorre a galeria de retratos, imagens recolhidas, preservadas e guardadas na memória. A pequena cidade ao noroeste do estado do Rio Grande do Sul marcou o tempo do jovem Ornellas entre chuva e sol, e mormaço. Suas reminiscências  contribuem  para recriar imagens que a vida abandonou e só a imaginação pode reanimar: o mormaço interior vivido entre sol e poeira, chuva e sol; o calor subindo da terra molhada; o mormaço na terra e nas almas; o poente; o vento.

Mormaço é constituído por 15 capítulos e todos possuem um segmento temporal que evoca momentos possíveis de serem datados porque o relato, apoiado em referências históricas, conduz a narrativa. Há um movimento de vaivém a partir do primeiro capítulo – Nova Paisagem – tomado como ponto-chave, que é a mudança da família Ornellas para Tupanciretã. A partir daí o desenvolvimento das partes acontece, na maioria das vezes, com o suporte temporal baseado em fatos históricos, ainda que nem todos explícitos. Nova Paisagem mostra o estado de espírito do autor e um certo ar melancólico que paira sobre o texto, quando ele escreve que deixara o último palmo de sua terra xucra.

Terra Xucra é o primeiro volume das memórias de Manoelito de Ornellas, que nasceu em uma pequena cidade na região da divisa oeste do Rio Grande do Sul, onde o rio Uruguai separa duas cidades: Itaqui, do lado brasileiro, e Alvear, na Argentina. A fronteira marcou a vida do menino, assim como pautou a trajetória do escritor; ele se expressava em espanhol e português com a mesma desenvoltura.  Da fronteira, espaço constante na vida de Manoelito, resulta duas faces: o homem e o escritor. Como homem, viveu a realidade e buscou na história passada as respostas para o presente; na condição de escritor, recolheu na literatura as fontes para viver o imaginário, como podemos observar em Terra Xucra e Mormaço.

Uma terra xucra, vasta e rica, conquistada durante décadas dedicadas a levar o rincão natal para além de seus limites, uma escrita voltada para o campo e sua gente, para a história e o passado com trincheiras na metalinguagem. Assim é a literatura de Manoelito de Ornellas.

Terra xucra é uma viagem do autor ao passado, reconstituindo a origem e a vida do menino pobre do Itaqui. Em sua graça evocadora, Terra Xucra mostra, em tom abafado,  uma alma sensível que registra suas lembranças e valoriza as coisas comuns da querência. O autor parte de suas impressões de menino e revive o cenário gaúcho, mostrando ao leitor uma forma de amar e respeitar a vida.

São 44 capítulos curtos, cada um conta uma história. São textos originais e o autor pinta quadros muito vivos que remetem à paisagem, como no capítulo O Menino Pobre do Itaqui, no qual o autor destaca que a paisagem mais constante da memória é a de uma cidade pequena, de casas com telhados baixos, de longos beirais, à margem  de um rio largo e azul.

O capítulo Nos desertos da fronteira retrata a chegada de Pedro Nicolau Ornellas, avô de Manoelito, à campanha que faz fronteira do Brasil com a Argentina para civilizar um trato de terra no município de Itaqui. O pai de Manoelito, nessa época, era adolescente, trabalhava na terra e plantara, em frente à casa onde moraram, a árvore que no pampa é símbolo da hospitalidade. Muitos anos mais tarde, Manoelito voltou à terra que fora domada pelos pioneiros do sangue dos Ornellas e  pousou algumas horas sob a sombra paternal da ramagem farta e verde.    Terra Xucra é um capítulo que fala dos costumes do homem do campo, dos objetos do gaúcho, dos hábitos e da vida do campeiro, da cultura nascida nos galpões fincados no meio do campo, aquecidos e iluminados pelo fogo e cobertos de capim santa-fé; uma terra de poucas culminâncias, mas muitas histórias.   Quando Manoelito foi obrigado a deixar o campo, rumo a terras estranhas, sentiu o afastamento de sua terra xucra. Assim, no capítulo A Transplantação, ele descreve a paisagem que ficara para trás, cada coxilha marcara uma etapa, um pouco da vida do menino que levou a nostalgia dos campos e a visão das latitudes imensas, o berço de suas primeiras alegrias e brincadeiras, seu solo sagrado.

Terra xucra é uma obra que descreve a vida do escritor com momentos de alegria e outros de tristeza, mas mostra, acima de tudo, o respeito que ele tinha pela vida e pela terra. Manoelito acreditava que o único bem do homem é o solo onde nasce, pois é lá onde se encontra a verdadeira identidade do indivíduo.

Mormaço abriga outra fase da vida do escritor, como: a transferência dos Ornellas para a cidade de Tupanciretã, o primeiro emprego de Manoelito, seu engajamento em movimentos políticos, seus primeiros escritos, seu namoro e casamento com Lucy, o nascimento da filha e a busca de novos horizontes. Esses são os principais marcos cronológicos do percurso evocado, acontecimentos reais que permeiam os passos do escritor e permitem contornos à autobiografia. Ao reconstituir os episódios de sua juventude, Manoelito encontra-se com a terra e com as origens, mas logo abandona esse estado e, comandado pelo intelecto, torna-se amante dos livros. A leitura da natureza leva o escritor a elaborar a melhor obra.

É igualmente oportuno realçar, em Mormaço, o modo pelo qual o eu procura a sua identidade, quando refere que no peito, guarda o desejo de romper distâncias, de procurar novos mundos, de conhecer fisionomias novas.

As memórias de Manoelito de Ornellas possuem valor documental e a história se faz presente nas duas  obras, conduzindo o fio temporal e permitindo, desse modo, que a recuperação da lembrança se apoie na cronologia dos fatos sucedidos.

Como jornalista escrevia diariamente, mas foi na literatura que encontrou seu maior prazer. Estimulado por Aureliano de Figueiredo Pinto, o jovem Manoelito escrevia muito para vencer a angústia daqueles fundões de campo. Buscava no desenho rupestre dos peraus, na solidão e na distância da cidade grande o motivo para novas descobertas. Escrevia o que a terra o inspirava.

Mormaço e Terra Xucra procuram presentificar o passado sob a lente da nostalgia; nas duas obras, o eu individual, em si mesmo, dissecado pela introspecção, revela-se um sujeito em conflito. Nele coabitam o homem e o escritor, um destinado ao encontro com a terra e com as origens, o outro, comandado pelo intelecto, a devorar livros. Mas a leitura da natureza leva ao melhor dos livros.

Manoelito mostra que um acontecimento sempre o conduz a recordar ou a imaginar outro. O processo análogo entre a paisagem ou mesmo entre os fatos narrados leva a pensar que a representação entre o objeto e o seu significado conduz à essência das coisas, qual seja a terra, como espaço, permanece como uma referência concreta – é a metáfora da memória, enquanto a obra de arte, por outro lado, detém o tempo, eternizando-o pelo registro das impressões recolhidas na memória.

As recordações surgem sob a forma de impressões visuais, mesmo as formações espontâneas da memória são imagens permanentes que passam a ser compreendidas no momento que a criação se encarrega de traduzir os sentimentos.

Manoelito de Ornellas, na busca incessante da escrita, percorre os caminhos nem sempre claros da introspecção para registrar sua memória através da arte, pois pela via da criação ele consegue segurar o tempo.

CONSIDERAÇÕES

Manoelito de Ornellas, escritor, foi nascendo, assim, a partir de separações e perdas materiais e afetivas, as quais o motivaram a buscar na literatura a transcendência da realidade. Enquanto perdia de um lado, ganhava de outro. Era a vida, na sua duplicidade, delineando o homem em sua trajetória.

O hábito das anotações deu-lhe condições de escrever suas memórias:  Terra xucra e Mormaço. No primeiro, dedicado aos pais, aos irmãos, à sua Itaqui, e aos amigos, narra impressões da infância, momentos difíceis e outros de pura felicidade. Em tudo o que Manoelito escreve nota-se um estar à vontade na medida em que o autor restaura a ordem dos acontecimentos, uma integração perfeita entre o menino e o seu meio, pois ele viveu no campo e compreendeu a natureza. Sabia observar e respeitar o ciclo natural das plantas e dos animais.

Já em Mormaço, memórias da juventude e parte da vida adulta de Manoelito, –  além do relato dos acontecimentos dessa fase, revela traços de uma pessoa sensível. Quando o autor escreve suas memórias inevitavelmente está falando de sua gente. São histórias de vida: pessoal e coletiva.

Memórias e história são as duas faces do mesmo universo que habitam não apenas sua Terra xucra, mas também o Mormaço dos homens e da terra. O ponto de intersecção entre tais obras reside na temática principal, a origem pessoal e coletiva, que tem como fonte primeva o amor acendrado pela terra natal.

Manoelito entendia que o solo nativo é a única propriedade plena do homem, um tesouro que a todos iguala e enriquece[2]; portanto, é a terra o fulcro essencial. Para o escritor, com um simples refrão ou mesmo uma palavra, retirados da tradição oral, pode-se, muitas vezes, chegar às fontes secretas da história remota, ou seja, reside nas raízes, a essência primordial. O ponto comum entre as modalidades discursivas do escritor e do homem é a terra, unidade temática que integra no seu cerne as ambivalências da obra e do escritor Manoelito de Ornellas.

REFERÊNCIAS

ORNELLAS, Manoelito de. Terra Xucra. Porto Alegre: Sulina, 1969.

_____. Mormaço. Porto Alegre: Sulina, 1972.

_____. Mormaço (inédito).

MARTINS, Ari. Escritores do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da UFRGS, Instituto Estadual do Livro, 1978.

MOREIRA, Maria Eunice. Regionalismo e literatura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia, 1982.

ZILBERMAN, Regina. A literatura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980.

_____. Literatura gaúcha – temas e figuras da ficção e da poesia do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: LP&M, 1985. WILLEMART, Philippe. Bastidores da criação literária. São Paulo: Iluminuras, 1999.


[1] ORNELLAS, Manoelito de. Mormaço.  Porto Alegre: Sulina, 1969, p. 10.

[2] Terra Xucra. Porto Alegre: Sulina, 1969, p. 97.

Maria Alice da Silva Braga é pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação da PUCRS, na área de Literatura, História e Memória; Doutora em Letras, Teoria Literária com ênfase em Crítica Genética; Mestre em Letras com ênfase em Teoria Literária; graduada em Língua Portuguesa e respectivas Literaturas pela PUCRS. Tem experiência na área de Letras no ensino de Língua Portuguesa e suas respectivas literaturas e culturas.

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