VINTE ANOS EM QUINZE MINUTOS – FABRÍCIO SILVEIRA

Por volta das nove horas do dia dois de janeiro de 2019 recebi um email da pró-reitoria de pesquisa e pós-graduação da universidade em que eu trabalhava. O email havia sido enviado por uma das secretárias do setor – Samara Francisco era o nome dela – e me convocava para uma reunião pessoal com a pró-reitora na segunda-feira, dia sete de janeiro, ao final da manhã. O tema do encontro não me foi anunciado – era um email seco, uma bomba de formalidade – e optei por não perguntar nada a respeito. Tendo completado vinte anos de casa, eu já sabia do que se tratava: eu seria demitido.

A certeza da demissão, porém, não impediu que eu atravessasse o final de semana fazendo especulações – uma lista de possibilidades fervilhava na minha cabeça –, imaginando como eu reagiria nos desfechos mais improváveis, o que faria num futuro próximo, caso minha suspeita se confirmasse. Quais razões seriam alegadas? Quais os termos da rescisão? E meus direitos trabalhistas? Seriam todos respeitados?

Assim que cheguei ao gabinete da pró-reitoria, cinco minutos antes das onze horas, fui conduzido pela secretária – a mesma secretária que me enviara o email, agora desenvolta e sorridente – a uma sala especial, mais aconchegante e reservada, longe do espaço comum dos funcionários, do murmúrio habitual de suas vozes durante o trabalho. Cruzei por diversos rostos conhecidos, figuras familiares no interior dos nichos que ocupavam, concentrados em seus computadores de mesa. Alguém gesticulou na minha direção. Outra pessoa falava ao telefone. No caminho, a secretária me perguntou:

“Você nunca veio aqui, não é?”

“Não”, eu respondi. “É a primeira vez.”

Uma ligeira nota de cinismo reverberou no ar. Deixei que se aguçasse em mim um sentido ainda inexplorado de autoproteção. Seria bom ficar atento, com as orelhas em pé, manter o meu radar e o meu gravador ligados.

Quando entrei – e depois de agradecer a Samara, que fechou com cautela a porta às minhas costas –, me deparei com duas senhoras sentadas lado a lado, à distância de um metro uma da outra, em meio a papéis despontando de uma pasta azul com um logotipo branco impresso na capa em relevo. Cada uma delas tinha seu próprio computador pessoal. Elas me saudaram, ambas muito gentis. Primeiro cumprimentei a pró-reitora, professora Dorothy. Dei a volta na mesa e cumprimentei com dois beijos no rosto a secretária geral daquela pró-reitoria, reconhecida por sua retidão e competência, Mabel Koppe.

“Sente-se, por favor”, Dorothy me disse. “O ar condicionado está bom, não está?”

“Está ótimo, professora. Nem se compara ao calor que faz lá fora.”

Puxei uma das cadeiras, dentre as três que restavam desalinhadas à minha disposição, e me acomodei da mesma forma que faço quando chego em casa à noite, largando minha mochila amarela sobre a mesa. O ar condicionado mantinha a temperatura agradável. Produzia, além disso, um silencioso rumor dentro da sala.

Na minha frente, resignadas em sua cumplicidade corporativa, estavam as duas mulheres um pouco mais velhas do que eu, na casa dos cinquenta e tantos ou sessenta e poucos anos. Eu já as conhecia, evidentemente. Já havia travado contato com elas numa infinidade de vezes, seja por questões profissionais, no colegiado dos professores, nas reuniões semanais do comitê de ética, durante o mandato que me coube, seja nas festas de final de ano, nos eventos ao longo do semestre, nas efemérides celebradas pela instituição com rigor cívico e respeito ecumênico.

“Fabiano…”, a pró-reitora começou. “A pauta de nossa reunião não é das mais agradáveis.”

“Estou à sua disposição, professora. Qual é o assunto?”

“Na condição de gestora, preciso tratar disso contigo”, ela ajeitou o notebook, reenquadrou diante dele o corpo e desviou o olhar para os papéis dispostos ao lado, à esquerda de Mabel. “Estou vendo aqui: tua produção de artigos caiu muito nos últimos três anos”, apontou para a tela do computador. “Se contarmos, desde 2016, e foi assim também em 2017 e 2018, você não publicou nenhum artigo em periódicos acadêmicos. Nenhuma publicação em revistas. Nada. Não precisaria, claro, ter mil e trezentos pontos, como fez a Maria Paula, nem os oitocentos que fez a Maria Adriana.”

“Isso ocorreu, sim. Não vejo problema”, era a minha chance de argumentar. “Ocorreu porque eu publiquei livros, professora. Desde 2016, se não me engano, escrevi dois livros individuais, mais três livros que pude organizar ou dos quais fui co-autor. Pode conferir aí. Está no meu currículo. E quatro capítulos em livros organizados por outros colegas, de outras universidades, uma delas fora do país.”

“Mas livro não conta. Esse é o problema. Você me entende?”

“Não conta?”

“O livro depende do Qualis. Não sabemos como será avaliado. Só saberemos dessa pontuação daqui a dois anos.”

“Mas esses critérios não funcionam assim. Não se pode isolar um único item, de modo quase aleatório. É preciso cruzar esses dados, estabelecer alguma correlação entre eles. Melhor do que eu, a senhora sabe como isso funciona. Além do mais, professora, esses critérios variam. São desconstruídos, de tempos em tempos. São reconstruídos, depois, conforme os interesses que temos, as novas oportunidades, uma nova conjuntura, os grupos no poder. São critérios móveis. Para mim, é mais fácil aceitar as decisões tomadas aqui, sejam elas quais forem, se levarmos em conta o contexto político que enfrentamos. A crise das universidades é o que a imprensa hoje noticia.”

As duas sorriram e se olharam. Não falaram nada por um segundo. Naquele momento pareceram concordar comigo.

“Como te disse, na condição de gestora, eu preciso tomar algumas decisões difíceis”, Dorothy continuou firme em sua marcha. “Quero informar do teu desligamento.”

Ela ficou me encarando com a frieza típica das Forças Armadas.

“Ok. E como é que procedemos, professora Dorothy?”, falei pausadamente, sem demonstrar qualquer contrariedade. Àquela altura já não havia mais jeito. Eu iria me rebelar contra os infortúnios do meu destino? Iria amaldiçoar as forças da natureza? Argumentar que não existe crise nenhuma e que os alunos – esses brincalhões! – estão todos lá fora, esperando para confirmar a matrícula no último minuto? Iria defender as políticas educacionais do novo governo, alegar que tudo será revertido no médio prazo ou subir na mesa e atear fogo ao meu próprio corpo?

Foi aí que Mabel interferiu, tirando da pasta uma folha timbrada e dando-lhe um golpe, num movimento duro com o braço, para que se mantivesse, na medida do possível, rígida e esticada, no formato transitório de um “U”, entregando-a na minha mão:

“É bem simples. Você tem aqui algumas instruções. São duas vias. Aqui está a outra”, alcançou-me a segunda folha, enquanto eu já ia examinando a primeira. “Você precisa assinar logo abaixo e anotar o seu email no espaço indicado para anotar o email.”

“Eu tenho que assinar agora?”, fiquei em dúvida. “Não posso voltar à tarde, logo depois do almoço?”, era uma questão legítima, a derradeira tentativa de travar o fluxo dos acontecimentos e escapar à primeira golfada da vertigem.

“Não. A assinatura ocorre durante a reunião”, Mabel foi taxativa. As duas senhoras concordaram, em bloco, prontas para endurecer, caso fosse necessário. “Uma das vias fica contigo. Você atesta que está ciente.”

“Eu manifesto apenas a minha ciência? Posso não estar de acordo quanto aos motivos da rescisão?”

“Sim, claro”, Dorothy me garantiu, “com certeza”, o que me deixou, afinal de contas, mais aliviado, seguro de que a justiça oscila, demora, some por algum tempo, mas – com o perdão do clichê! – não falha.

“Pois bem. Eu achei que iria me aposentar aqui, professora Dorothy”, já fui me dispondo a assinar o documento. Recorri à caneta que Mabel, de pronto, me alcançou.

“Quantos anos foram mesmo?”, me perguntou a pró-reitora.

“Mais de vinte.”

“Seus direitos trabalhistas estão todos assegurados, viu? Se quiseres, pode fazer uma estimativa no setor do RH.”

“Obrigado. Eu já imaginava. Poderei comprar um sitiozinho no interior do Uruguai? Será que dá?”, lhe provoquei e acessei, na hora, para minha própria surpresa, mananciais subterrâneos de descontração. Um daqueles talentos que a gente só descobre em situações extremas.

“É bem provável”, Dorothy sorriu. Teve o cuidado de manter os dentes escondidos. Um tipo de sisudez que demanda treino.

“Eu achava que iria me aposentar aqui. Juro. É verdade.”

“Ué? E por que não? Isso ainda pode acontecer. Podemos recontratá-lo no futuro.”

“Agora já não sei mais nada, professora. E me preocupo não só com as questões trabalhistas, viu? Me preocupo, no primeiro plano, com aquilo que vou deixar incompleto: as minhas orientações, por exemplo. Eu estava escalado para oferecer um curso intensivo, numa outra universidade, no Espírito Santo, no final de março.”

“Isso, a partir de agora, é outro assunto. Trataremos com a coordenação do curso, com os teus colegas e superiores imediatos.”

“É preciso fazer o exame médico no ambulatório. Não se esqueça”, Mabel me passou as coordenadas, para encerrarmos de vez o assunto, antes que tudo se tornasse ainda mais gosmento, pegajoso, uma calda açucarada, um bolo informe derretido. “É o exame demissional”, ela disse. “São procedimentos de praxe. Você pode sair daqui e fazê-los agora mesmo. Pode encaminhar ao RH as outras necessidades que tiver.” Elas se levantaram e cada uma me estendeu a mão direita, para que eu as cumprimentasse. Foi o que fiz. A reunião havia terminado. Vinte anos resolvidos em quinze minutos. É simples.

Fabrício Silveira é professor universitário. Dentre outros, é autor dos livros Rupturas Instáveis. Entrar e sair da música pop, indicado aos prêmios AGES Livro do Ano 2014, na categoria Não-Ficção, e Açorianos de Literatura 2013, na categoria Ensaio de Literatura e Humanidades, e Gigante Figura, sua estreia na escrita de ficção, indicado ao Prêmio AGES Livro do Ano 2019, na categoria Especial. É egresso da Oficina de Criação Literária ministrada pelo escritor Luiz Antonio de Assis Brasil na PUCRS. Atualmente, realiza estágio pós-doutoral – bolsa PNPD Capes – junto ao PPPGCom da UFRGS. Contato: fabriciosilveira@terra.com.br

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