‘ADÔNIS E O ALFABETO’, DE ALDOUS HUXLEY
Por Luiz-Olyntho Telles da Silva
Littera scripta manet, volat irrevocábile verbum.
(Ditado popular, de origem medieval).
Passei o ano ocupado com a linguagem e isso me levou a diferentes leituras, sem falar nas leituras dos livros dos amigos e conhecidos, que nunca são poucas.
Por mais interessantes que elas sejam, com sua potência de levar-nos a dimensões extraordinárias, este ano foi especial. No ano em que vivemos e morremos pela peste, li as histórias do Decamerão com outros olhos. Lá, na Florença de meados do século XIV, os jovens que nos contam as histórias dos horrores da peste negra estão longe do palco, a salvo em uma luxuosa Villa. Nós, no entanto, estamos no centro da ação, cada um sentindo-se com um alvo na testa e fazendo o possível para não ser atingido por este virulento vírus que nos ataca, de modo despicativo, a cusparadas, o que não é sem consequências. As leituras, como sói acontecer, sofrem também os efeitos dos episódios cotidianos.
Na tentativa de uma fuga para horizontes menos graves (vã esperança!), li a história de Simbad, o marujo, na excelente tradução de Mamede Moustafa Jarouche. Uma aula de como escapar das dificuldades que atingem a todos de modo bem democrático.
E, por falar em dificuldade, que vida difícil a de Clarice Lispector! Em seu primeiro conto, Triunfo, de 1940, contudo, ela já nos dá uma grande lição: temos que inventar algo que nos faça sentir fortes.
Outra leitura que me pegou foi O encantamento dos sentidos. Seu autor, Rogério Ferrer Koff, faz aí um estudo sobre Edmund Burke, o primeiro crítico da Revolução Francesa e que foi, antes de tudo, um homem capaz e com a coragem de pensar com sua própria cabeça. Pensar por si, em qualquer situação, é um modo de apropriarmo-nos das ideias como nosso escudo.
Mas minha ocupação com a linguagem, morada de toda a literatura, morada do homem, que já vem de mais tempo, neste ano esteve dominada pela leitura do Seminário 18, de Jacques Lacan, De um discurso que não seria do semblant. No seu transcurso ele vai citando outros textos, de modo geral sempre muito interessantes. Um desses é sobre os estudos de Alfred Metraux sobre a escrita rongorongo da língua rapa nui dos pascuenses. E o que me pareceu digno de nota, em sua descrição, é que, em sua viagem para a Ilha da Páscoa (esse é também o título de seu livro), realizada no primeiro semestre de 1934, com duração de cinco meses, ele nos conta, como que en passant, ter primeiro visitado os portos da África Ocidental, depois as geleiras da América do Sul, onde participou até de uma caçada na Patagônia, e tudo isso antes de chegar ao seu destino. Pois na literatura também é assim: na busca de alguma coisa sempre se encontra uma porção de outras. Aproveitá-las depende de nosso espírito de Serendip.
Pois então, entre as recomendações de Lacan, destacou-se uma de Aldous Huxley, Adônis e o alfabeto, de 1956.
Eu já conhecia Huxley dos romances. Lera Ponto Contraponto, de 1930, marcado pelo desencontro das pessoas; Um mundo feliz, de 1931, antevisão de um mundo com grandes massas adormecidas pelas drogas e entretidas com filmes; O admirável mundo novo, de 1932, quando as crianças são concebidas em provetas, fora do sexo; e A ilha, aparecido trinta anos depois, em 1962, no qual nos apresenta um lugar ideal para se viver, mas também condenado pela ganância e pela avidez das pessoas que só pensam no lucro.
Ele acreditava que a literatura era coisa de gente boa, e isso lhe acarretou pesada crítica de Otto Maria Carpeaux – por quem, desde que o conheci, sempre nutri grande admiração. Pois, como Huxley, sabidamente, era grande leitor da Enciclopédia Britânica, Carpeaux, de troça, dizia que ele, Huxley, não havia chegado aí até a letra V, onde constava o nome de François Villon, o maior poeta francês da Idade Média, ladrão e assassino. Está bem. Se não é como Huxley diz, deveria ser, e acho até que era assim que ele pensava. A verdade é que gostei tanto de Point Counterpoint, com tradução de Erico Verissimo e Leonel Vallandro, que copiei seu título para um livro dedicado ao estudo do significante e dos discursos.
Mas Adônis e o Alfabeto, de 1956, é outro tipo de livro. São ensaios sobre temas colhidos em suas viagens, traduzidos por Edith de Carvalho Negraes e Daniel Martins Júnior, que parecem não gostar muito de vírgulas, para a Hemus – Livraria Editora, de São Paulo. Entre eles, a recomendação de Lacan foi endereçada a um intitulado Hyperion a um Sátiro, e trata do lixo. Pode parecer estranho, mas depois de James Joyce ter aproximado litter de letter, o lixo da letra, e Otavio Paz ter dito que os que andam com las letrinas estão próximos de las latrinas, isso já não nos assusta.
O título desse ensaio surge de um passeio de Huxley com seu amigo Thomas Mann. Estavam caminhando em uma praia da Califórnia, próxima a Los Angeles, imersos em agradável tertúlia literária, quando suas respectivas esposas, caminhando quatro ou cinco passos atrás, chamaram-lhes a atenção para uma quantidade de objetos esbranquiçados que cobriam aquele pedaço de areia, deserto naquele horário. Eram preservativos que vinham pelo esgoto e a maré espalhava no areal. Um tanto atônito com o inusitado, logo ocorre a Huxley uma frase de Paolo Mantegazza, por certo lida no seu A fisiologia do prazer: Una tela di ragno contro il pericolo, uma corazza contro il piacere (Uma teia de aranha contra o perigo e uma couraça contra o prazer). E como ali por perto havia uma fábrica de alguma coisa, chamada Hyperion, ele aproveitou o nome desse Titã para o título de seu ensaio que trata da diferença de classes, marcada pela qualidade do tratamento do esgoto. Depois de revisar a história e os grandes autores, deixa bem claro não haver nada a separar mais as pessoas do que a sujeira e o mau cheiro. Em Atenas – ele nos conta –, cinco séculos antes de Cristo, era proibido atacar um escravo, pois seria fácil confundi-lo com um cidadão. Ambos usavam as mesmas roupas andrajosas e nenhum deles tinha um aspecto respeitável. O tratamento do esgoto aproxima as pessoas. Claro, sempre que não houver uma peste mediante, e também sem mencionar essa assustadora solidão do homem frente aos espaços infinitos, tão bem caracterizados por Pascal. E quando dizia infinito ele nem tinha notícias da descoberta de um superaglomerado ancestral de galáxias, descoberto recentemente, em 2018, batizado, pelo tamanho colossal, também como Hiperíon, com massa de um milhão de bilhões de vezes a do sol e cuja luz leva mais de onze bilhões de anos para chegar até nós!
Huxley também se ocupa, nessa coletânea, da educação. Esse, aliás, é seu tema de abertura. Sua grande esperança está em John Dewey. Diferente de Platão, para quem o homem é um bípede implume, para ele o homem é um anfíbio, habitando simultaneamente, ou de modo alternado, diferentes universos: espírito e corpo; egoísmo e altruísmo; natureza e cultura; sendo, ao mesmo tempo, um produto da evolução e feito por si mesmo. Mas, conforme diz, o homem precisa ser educado.
O ensaio que dá título ao livro desliza como um fluxo de ideias, para não dizer como uma associação livre. Huxley está andando por uma estrada, não muito distante de Beirute, e para sobre uma ponte que cruza o rio Adônis. Enquanto admira as águas claras do rio – que, se não é caudaloso em águas, é volumoso em mitos –, seu pensamento voa para o alto de uma das montanhas dos arredores, seguindo um caminho estreito e difícil, até a um templo dedicado a Adônis, deus da vegetação que nasce, morre e renasce. Adônis, o eleito de Afrodite, de Ashtaroth, de Ishtar, de Astarté, de Atargatis, dependendo do lugar onde se está, se na Grécia, no reino de Salomão, na Babilônia, na Fenícia ou na Síria. Para Shakespeare, Adônis foi o escolhido de Vênus, como relata em seu longo poema, recém traduzido por Elvio Funck para a Movimento.
É com a imagem desse amante relutante que Huxley volta para o carro e retoma sua viagem até Jebeil, noutros tempos chamada Byblos. Encontrou-a com suas ruínas gregas, romanas, fenícias, os monumentos dos cruzados, restos dos egípcios e mesmo do neolítico, períodos dos quais quase não há descrições. O filósofo Luciano visitou-a no final do segundo século da nossa era, viu a cabeça de Osíris, e acreditou no seu renascimento, o que muito aproxima esse deus egípcio de Adônis. Da antiga Byblos, hoje podemos visitar as ruínas da Cidadela e o Porto de Pesca que continua ativo depois de mais de três mil anos. Foi o porto mais antigo da Fenícia, facilitando seu comércio com o Oriente e o Ocidente. Vêm daí duas palavras incorporadas pelo grego, conforme nos relata o autor: byblos e biblion. A primeira era a designação corrente de papiro, matéria-prima para fazer cordas e, depois, papel. Quando se apresentavam em rolos e continham escritos, eram chamados de biblion, bíblia, sinônimo de livro. Foi aí que aperfeiçoaram o alfabeto, há trinta e cinco séculos.
As centenas de caracteres cuneiformes foram substituídas por menos de trinta letras e alguns sinais diacríticos, com os quais temos uma indicação de como pronunciar as palavras, em qualquer língua.
Há línguas que ajudam a pensar de determinadas maneiras. Heidegger, por exemplo, pensava que só era possível filosofar em alemão. Podia ser uma verdade de sua época porque, quando das conquistas romanas, o latim foi, na Europa, a língua da filosofia e das ciências; quando, no final do século XVII, começo do XVIII, a França começou a exercer um domínio cultural, o francês tornou-se o novo latim. Leibnitz, alemão, escrevia em francês. Na época das grandes navegações, o português deixou sua marca em diferentes lugares do planeta. Hoje é o inglês a deixar essas marcas e, nos próximos anos, talvez tenhamos de aprender chinês. Curioso é que, enquanto Heidegger se ocupa com o ser, na linguagem chinesa não há uma representação para o verbo ser, o que não quer dizer, claro, que a China não tenha nos dado grandes filósofos ocupados com a ontologia.
A verdade é que a linguagem, nas suas diferentes configurações, em diferentes línguas, é formadora de sentimentos e de diferentes padrões de comportamento.
E agora, junto com Aldous Huxley, proponho irmos todos depositar um ramo de flores no túmulo do desconhecido criador de letras de Byblos.
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