‘ESCRAVIDÃO – VOLUME I’, DE LAURENTINO GOMES

Por Miguel da Costa Franco

Neste ano tão singular em razão da pandemia, dediquei-me com renovada intensidade à literatura, em especial a de autoria negra, um tanto por acaso, outro tanto pelo interesse pessoal de esgarçar os contornos da minha bolha de branquitude. A literatura e as obras audiovisuais, de natureza ficcional ou não, são instrumentos que permitem mergulhar de forma produtiva e consequente na intimidade dos seres humanos. Ajuda-nos a entendê-los melhor, algumas vezes de maneira mais efetiva do que mediante os contatos presenciais.

Transitei por clássicos brasileiros, como Machado de Assis e Lima Barreto, ou talentosos escritores locais, já consagrados ou estreantes, como Jefferson Tenório, José Falero, Nathalia Protazio e Duan Kissonde. Enveredei também por excelentes autores norte-americanos (Toni Morrison, Alice Parker, Joyce Carol Oates, Flannery O’Connor), nigerianos (Chimamanda Adichie, Sefi Aita, Chinua Achebe, Buchi Emecheta) e de Gana (Taiye Selasi), muitos dos quais pelo fato de estar associado a um eficiente mecanismo de difusão da boa literatura. Naveguei ainda por outros autores, como José Eduardo Agualusa, J. M. Coetzee e Mia Couto, representantes de Angola, África do Sul e Moçambique, capazes de fazer-nos entender com mais largueza o que seja a África, esta enorme fração do globo terrestre que abriga 800 grupos étnicos distintos.

A literatura de ficção abriu-me o interesse pela história africana e esta, inevitavelmente, fez-me querer saber mais sobre a tragédia da escravização da população negra daquele continente.

Ainda que pudesse discorrer neste artigo sobre vários dos excelentes livros que li – cada um, a seu modo, relevante – minha sugestão de leitura vai para o imprescindível “Escravidão – Volume I – Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares”, de Laurentino Gomes, lançado em 2019 pela Globo Livros. Trata-se de um trabalho historiográfico e jornalístico de fôlego, que traz fartos elementos sobre o fenômeno do brutal deslocamento forçado de africanos negros entre os séculos XVI e XIX, envolvendo números impressionantes: 36 mil viagens de navios negreiros e 12,5 milhões de pessoas, 2 oceanos e 4 continentes.

O Brasil foi um expoente neste processo espúrio, recebendo algo próximo de 5 milhões de cativos. Tornou-se o maior território escravista do hemisfério ocidental, o que mais resistiu a abolir o tráfico e o último a decretar o fim do cativeiro no continente americano, mantendo a prática na legalidade por mais de três séculos. Ao arrepio da lei, ainda observamos ocorrências de trabalho escravo nos dias atuais, em especial nos fundões rurais, nas atividades mais rudes e nas fronteiras por desbravar, como também em alguns porões escondidos das principais cidades do país ou em inesperados lares da nossa elite tacanha.

Infelizmente, a mentalidade escravocrata subsiste para além das relações de trabalho. É inegável que os longos anos de convívio com a escravidão e suas consequências moldaram a nossa sociedade de forma impactante, alimentando o racismo e o preconceito, tão vivos e mortais – especialmente contra o povo negro – ainda que a escravização seja um “(…) fenômeno tão antigo quanto a própria história da humanidade”, no dizer de Laurentino, “(…) desde a mais remota Antiguidade, da Babilônia ao Império Romano, da China Imperial ao Egito dos Faraós, das conquistas do Islã na Idade Média aos povos pré-colombianos da América (…)”, envolvendo todas as regiões, raças e linhagens étnicas. O próprio termo “escravos”, segundo o autor, deriva de “eslavos”, gente de pele clara e de brilhantes olhos azuis.

Não há como entender o Brasil, e nos tornarmos melhores como nação, sem nos aprofundarmos neste assunto. É a sugestão que faço.

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NÃO-FICÇÃO

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