‘LA TRAMA CELESTE’, DE ADOLFO BIOY CASARES
Por Iuri Müller
Organizo as leituras do ano e, se esperava encontrar rastros de desordem, acúmulos sem conexão e peças soltas, a verdade é que me deparo com outro registro: no ano do isolamento e do ensimesmamento, percebo que, de maneira não de todo consciente (sequer de modo exatamente disciplinado), acabei por separar as leituras de ficção em algumas fases bem definidas. Encontro, sem dificuldade, a “fase Natalia Ginzburg”, iniciada antes do desterro involuntário e retomada no inverno da clausura: voltei a Ginzburg com Todos os nossos ontens, romance que serpenteia por vidas erráticas durante a resistência italiana e nos entrega páginas riquíssimas sobre a solidão e a dispersão em tempos de terror, bem como episódios de ingênua conspiração e dos movimentos quase gratuitos que, afinal, por pequenos que sejam, empurram a vida adiante; segui com Natalia por meio das cartas que tecem o enredo amoroso e trágico de Caro Michele e, ainda no inverno que assistia pela janela, cheguei aos ensaios de As pequenas virtudes. Ali presentes, o texto dedicado a outro inverno e a outra desolação, mas em Abruzzo e em outro tempo, e o que recorda o amigo editor e criador que havia contado uma Turim particular que é, também, a da escritora, estão entre o que de melhor eu poderia ler no período. Houve, ainda, em tempo mais recente (porque se trata de um ano tão longo e tão distinto que se poderia dividi-lo em extensos períodos interiores, com marcos de separação no tempo e no espaço, com autoestradas mentais e postos de combustível e retas a se perder de vista), a fase em que me debrucei sobre os volumes de Thomas Bernhard e reli O náufrago e O imitador de vozes e li pela primeira vez Andar, um monumento à especulação e à caminhada, mas com Bernhard, sabemos bem, o remédio e o veneno habitam lares contíguos, de modo que é preciso manter a vigilância e não enfileirar tantos livros assim; convém dobrar, digamos, na direção de algum romance oitocentista, como é o caso de Ressurreição, de Tolstói, reeditado há pouco por aqui. No entanto, seja por uma estranha fidelidade às circunstâncias ou por uma prestação de contas com uma alameda da literatura, escolheria destacar, do todo das leituras da temporada, os livros lidos em março e abril, quando desconhecíamos – ainda mais – as proporções do vivido e as dores por vir, e as leituras daqueles meses foram, para mim, leituras de Adolfo Bioy Casares. Creio que não devo esquecer a tarde em que saí do Centro em caminhada quase clandestina para buscar, na livraria Avenida da avenida Independência, o exemplar de La trama celeste, de Bioy. No conto que empresta o título ao conjunto, o protagonista, depois de traumática viagem, não reconhece mais a Buenos Aires de todos os dias: há ruas que mudaram de nome, travessas que, no bairro Norte, sumiram do mapa. De volta para casa, tal como o personagem do conto de Bioy Casares, custei a reconhecer a cidade de ruas vazias e de homens que olhavam a calçada esgueirados nas janelas de um quarto de pensão.
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