‘PARA DIMINUIR A FEBRE DE SENTIR’, DE DALVA MARIA SOARES
Por Tatiana Cruz
Dalva Maria Soares dá vontade de escrever. Vou melhorar: ler Dalva Maria Soares dá vontade de escrever. De novo, Tatiana, te esforça: ler Para diminuir a febre de sentir, livro de Dalva Maria Soares, dá vontade de escrever, confessar, conversar. Eu li Dalva rodeada de mulheres, todas as minhas mulheres mortas.
A vó Ritta sentada me olhando com aqueles olhos que foram azulando (será que todos os olhos vão azulando mais perto da morte?). A vó Lídia chegava com erva-cidreira para o chá, e a tia Mari sorria pra mim, orgulhosa do círculo formado de todas nós, ouvindo Dalva contar de Dindinha, dona Geralda, do tempo jogado fora com a mãe, das coisas que nos fazem mulher antes da palavra escrita, nós na palavra falada, nossa literatura forjada na lida de pano de prato, chimia, gordura do fogão, chaleira chiando é um lar, criança gritando, o concerto, nossa cultura letrada é um antes.
Eu chorei te lendo, Dalva, porque a carne dura e o arroz empapado da tua mãe, que tu clama, e eu sinto, é um tecido, Dalva, que rasgou, expondo as fibras nervosas ao sabor da estação que nem Pessoa, Santo Agostinho, Foucault nenhum homem me confessou como tu no teu imenso livro que tu chama livrinho porque é assim pequeninho como é o nosso coração, o prato de feijão, o galho de arruda de Dindinha. Confissão toda-toda pequenininha como é uma confissão assim, cochichadinha, com detalhe e precisão.
Sabe, Dalva, eu estou estudando inglês a fundo e passei um ano lendo pouco em português e me odiando por isso. Eu li teu livro e chorei, Dalva, porque eu sinto falta do café passado no saco de tecido puído da minha vó e o jeito que ela falava as palavras terminadas com L incluindo uma vogal no final. “Olha o Sole, menina, não vai se queimar”.
Quando as duas filhas brigam, sinto o corpo exausto de trabalho doméstico e intelectual e me sento no sofá e elas me olham e eu olho para elas, já sem braço eu, sem força eu, sem remo para remar e sem lugar para ancorar, eu dou um sorriso que foi virando o sorriso da minha vó Ritta, sorriso da minha mãe Angela e entendo então que eu estou amarrada ao destino do cansaço delas que é um destino de mulheres. Tu disse que tua mãe não tinha raiva, a mãe de Sem enfeite nenhum, a mãe de Adélia Prado, a mãe tua, a mãe da minha mãe, a minha mãe e eu agora, eu mãe das minhas meninas. Existem as marcas da dor. E eu me pergunto se um dia elas também perceberão em mim – e nelas – esse sorriso de quem abrandou, de quem deixa rolar não por sabedoria mas por um certo desânimo. Te ler, Dalva, me trouxe a esse lugar de dedo de prosa, de vontade de Baldim, pé de quiabo, de fruta com cheiro de chulé. De uma cerveja gelada na frente da praça. Nós e todas as nossas mulheres mortas em volta de nós. Te ler me deu vontade de escrever.
Obrigada por confessar em português de Baldim, trazendo as referências letradas todas para comemorar a certidão da averbação da separação na mesa do café. Teu livro, Dalva, dá vontade de confessar em livro, Dalva, e isso, para quem é mulher, Dalva, é uma revolução.
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