3 poemas de Patrícia Peterle
A caça
Animal estranho e entranhante
tímido e protervo caminha
vai seguindo seu rumo em desaprumo
arisco arredio temerário
suas ações abrem trilhas promovem
contaminações inesperadas.
Armadilhas de sentidos
artista camaleônico e libertino que em seu obrar
se desloca a todo instante
põe-se à escuta de outras vidas vozes
que soam uma música longínqua.
Intérprete musical? Por que não. Meio masoquista
generoso e curioso, em nada ocioso.
Orgulho luciferino. É fiel a si.
A aporia é parte de seu ser
natureza maternal, dá tudo sem nada pedir em troca
sua ação é espectral oblativa amorosa.
A palavra é sua presa escorregadia
nessa porosidade das línguas

Não estava nada branco ainda
mas ali havia o branco branco.
Potes tigelas mais ou menos
cheios já estavam preparados.
A mesa de madeira era o palco
o pano de fundo sem cortinas
vermelhas. As mãos sobrevoam
a cena e encenam um estranho
balé suspenso no ar, de um lado
para o outro, para frente e para
trás, tocam vasilhas tigelinhas
o líquido penetrando no sólido
os dedos cravam, sal e fermento
separados provocam mutações
um ritual antigo se revitaliza
nessa comunhão que se renova
– alquimia de sons, formas, cores –
Segue-se o passo a passo, mas a
comandar é a metamorfose química
consistência densidade elasticidade
sensação gosmenta coisa melecada
que vai se transformando numa massa
que vai se encorpando, enquanto tudo
ao redor se cobre por nuvens rarefeitas
uma penugem alva que vai dominando.
Penetram pela fresta lábeis raios
a porta do lado esquerdo range
os vidros ora espelhos na janela
refletem a microscópica poeira
do grão não mais grão que dá
o perfil dos traços contornos
orifícios de um rosto. Passagens
de estado. Carcaça carcomida
de um eu não mais eu, pululam
as pálpebras irisados pulvísculos
no ar e ali a desordem na órbita
daquela morada corporal, por fora
enfarinhada e por dentro aninhada
em convulsão. Olho no olho,
disfarces receios tensões,
peço licença a mim
aos meus outros.
Agora, tudo branco.

A sós
se há regras, hoje, pouco valem
…
Entrando, não há possibilidade de desvio
o corpo a corpo
abrem-se trilhas e percursos até então inexplorados
a mão coça os cabelos
os olhos desviam
os dedos se movem
os pés se mexem lá embaixo
os pelinhos se arrepiam
as gotículas nos poros.
Na aparente estaticidade, tudo se move.
Tensão. Festa.
Em pouco tempo, corpo e mente parecem caminhar de ponta-cabeça,
o trivial vai ficando para trás
o infra-ordinário vai entrando em cena
o habitual se transforma
outros ruídos naquele mesmo fundo
A paisagem anterior é deslocada,
permanece aquela matéria bruta.
É ela a liga, uma possibilidade,
matéria primária, imaterial
E agora?
Reaprendo e, de esguelha,
observo dessa soleira.
Patricia Peterle nasceu em São Paulo e cresceu no Rio de Janeiro. Atualmente mora em Florianópolis. É crítica literária, editora, tradutora de textos literários e filosóficos e professora de literatura italiana e comparada na Universidade Federal de Santa Catarina, atua também na Pós-graduação em Língua, Literatura e Cultura Italianas da Universidade de São Paulo. Tem Pós-doutorado em História pela UNESP e em Poesia Italiana pela Università di Genova. Seus poemas foram publicados nas revistas Acrobatas, Mallamargens, Ruído Manifesto. patriciapeterle@gmail.com

Fiquei maravilhosamente BESTA
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