5 poemas de Mar Becker
Num fio
I
não importa o que eu diga das tuas mãos
só posso amá-las como amo
pelo que não sei dizer
amo tuas mãos ali onde elas calam
no silêncio que guardam, intacto como o nome
de um pássaro não catalogado
II
da tua boca não importa o que eu diga
amo-a porque me escapa
a sombra do meu desejo no teu
tuas palavras quando morrem nos meus lábios quando
renascem, em rasante
na água
imargeável
eu e tu, como se abandonados
um no outro
no mar
III
em cada chamado teu, amor
esta flor que não toco
em cada haste que se ergue, em cada fogo
tua voz, que foge
entre os dedos
suspensa
num fio
de ar

Ao teu lado
toda a história do amor:
acordar ao teu lado
de bruços
a penugem das costas, em remoinho
(e esta ave nascida bem no meio das hastes
das duas pontas de faca
das omoplatas)

À beira
poderia dizer que amo teu nome à boca
poderia me lembrar das vezes em que chega a manhã
e eu faço dele a primeira palavra tocada
mas não. o que digo é que o amor põe tudo a nascer frágil
que não raro estou cercada
de cuidados
que há manhãs em que me vejo à beira do teu nome
e não sou capaz de feri-lo
com a voz

Sal
porque tantos amaram o encontro
ama tu a despedida
porque tantos vieram por terra
vem tu como se ao mar
e também porque o mar não se alcança de todo, busca-me sem
esperança
busca-me, simplesmente
busca-me como quem descobrisse que é raro
como o nácar
o sal dos meus olhos

Seis lições de amor
a primeira lição de amor foi quando vi a boca da minha irmã inchada de sono, entreaberta
o ar através, e a ideia de uma ferida que não cicatriza
.
a segunda lição de amor veio numa tarde de brincadeira
cada uma segurava um dente-de-leão diante
dos lábios
meia dúzia de palavras a dizer, e no final contar quantos fiapos sobravam
(ou se há mesmo flores que nem o dizível suportam)
.
a terceira lição de amor nasceu da boca da mãe
melhor não deixar serviço pro dia seguinte, ela dizia; melhor não ir pro quarto dormir com a cozinha suja
não deixar louça por lavar, resto de nescau nos copos, farelo espalhado pela mesa. tu e tua irmã, também as frutas vocês escondam sempre, cubram com um pano de prato, ponham na geladeira. tem que cuidar, que de madrugada os espíritos vagam com fome, e aí até uma sobra de doce de abóbora no fio da faca pode chamá-los a entrar e
comer
essa história a gente ouvia ser contada de muitos jeitos, e eu toda vez reagia com algum espanto. não porque acreditava, isso não, a mãe falava por bobagem, queria a cozinha em ordem, ponto, mas
só o fato de imaginar, conceber que mesmo corpos leves como o ar, fantasmáticos
mesmo eles poderiam ter algo de rente à ternura rastejeira das ratas, compartilhando o mesmo método na busca
de um fio de vida
.
a quarta lição de amor, quando descobri onde devia me posicionar durante a missa, na catedral
se eu me sentasse à direita, bem no meio do segundo banco contando como quem segue em direção à saída, do altar para a porta
se erguesse os olhos na hora da eucaristia, aí teria como ver as mãos com nitidez
as mãos e os dedos tortos daquela que
era sempre a primeira da fila
a receber a hóstia
.
a quinta lição de amor
quando saí de um banho certa vez, nessa época no começo da anorexia, aos 15 anos
o cabelo preso, não tinha lavado; uma e outra mecha caindo no pescoço, e entre elas ramos azuis, esses tingidos na noite anterior, com papel crepom. eu diante espelho
e os fios em metileno escorrendo por finíssimos veios d’água. no colo, um pouco acima dos seios, a trama de tentáculos
(mulher inteira coberta pelo sonho daquela medusa a que chamam “imortal”)
Mar Becker (Marceli Andresa Becker) nasceu em Passo Fundo/RS. Tem formação em Filosofia e Especialização em Metafísica e Epistemologia. Em poesia, publicou duas plaquetes, uma pelo Centro Cultural São Paulo, Coleção Poesia Viva (2013), e outra pela Editora Quelônio, Coleção Vozes Versos (2017). A mulher submersa (Urutau, 2020, edições no Brasil e em Portugal) é seu livro de estreia.

Não é de hoje que eu digo, mas folgo em repetir: uma voz inusitada que procura sintonias guardadas no repertório próprio do leitor. Uma poesia que passa por efêmera, mas que é transcendental. Nasceu para ficar. Não acompanhei o trabalho de parto, mas peguei no colo assim que vi nascer. Não solto nunca mais,
CurtirCurtir
Olá!
Lindo o Poema Sal. …”busca-me sem esperança”… Simplesmente belo
Interessante – Seis lições de amor
Os diferentes seres na busca de um fio comum
Gostei da sua produção poética.
Parabéns
Ivete C Borges
CurtirCurtir