A FERTILIDADE DO MICROCONTO EM JOSELMA NOAL, por Dirce Mello
De cara, o livro Duzentos, da gaúcha Joselma Noal, chama a atenção pela bela e bem cuidada edição: do projeto gráfico ao tipo de papel da impressão, um primor! Uma edição que mostra o respeito e o carinho para com o autor, fato relevante para escritores com experiências amargosas neste sentido, nem sempre socializadas. Portanto, faz-se importante ressaltar que a obra contou com uma edição de primeiríssima qualidade, a cargo da editora paulista Kazuá.
O gracioso Duzentos é um minilivro de bolsa com 200 minicontos, categoria literária conhecida como minificção, cujo histórico e conceituação são bem explanados no prefácio Pelos caminhos da minificção, a cargo de Francilene Maria R. A. Cechinel. Cada conto recebe um número, que brinca como um diagrama com seu conteúdo. O número vai decrescendo e a nossa curiosidade vai crescendo: o que vem mais? Há contos com títulos que dançam com seu conteúdo, como em Sonho de Valsa: Na madrugada do baile de formatura, ela adormeceu sorrindo agarrada ao travesseiro. Se tivesse terminado o maldito TCC…
Pois bem, logo às primeiras páginas, percebemos que o cartão de visitas mais surpreendente do livro é o seu conteúdo. Cada miniconto encerra um mundo de ideias, que Joselma explora com inteligência e fina perspicácia na captação de imagens do cotidiano que nos fazem viajar ao máximo em um conteúdo mínimo. Porém, atenção! Um voraz apetite de leitura pode fazer supor que rapidamente a teremos concluído. Ledo engano: pode-se levar mais tempo lendo-o do que a um livro de narrativa longa. Joselma é especialista em nos fazer embarcar no drama, na aventura, na “deixa” que quer transmitir a cada miniconto para nos tocar, revolver, fazer refletir, tendo o domínio da comunicação breve, enxuta e certeira. Seu texto é crítico, provocante, e mergulha o leitor no vasto universo conceitual, vivencial, sentimental do cotidiano; e sobretudo, joga sementes fertilizadoras na nossa imaginação! Sem perceber, adentramos por suas entrelinhas invisíveis, a viajar pelas humanidades-nossas-de-cada-dia.
O ponto final que dá limite a cada conto, na verdade, deslimita nosso pensamento e nos alça mais à frente, a novos horizontes que abrem o livro das nossas próprias memórias e a elas se misturam. Por vezes, precisamos de um tempo para digerir o que é revirado por dentro, das tripas ao coração; o que torna paradoxal o efeito do Duzentos nos mais habituados às longas narrativas – seus minicontos nos convidam a lê-los e a relê-los inúmeras vezes, para que caibam em nós! Sendo doutora em Letras e tradutora, a autora é feliz ao utilizar o jogo de palavras (O laranja vacilou e na mão dos traficantes virou suco), a brincar com elas (Quarta-feira e ela feito cinzas retorna à rotina), a passeá-las pelo tempo (Buscava o fio da memória que se destecia a cada laçada).
Porém, sua marca registrada está na capacidade de nos colocar frente a frente com o rico sortimento de sensações e emoções humanas, em suas sanidades e loucuras (Era difícil explicar ao juiz, incapaz de perceber a arte nas suas fotos do estrangulamento da mulher do parque), congruências e incoerências (A mulher vivia o inusitado, mas sonhava com a monotonia). Passando uma lupa nos personagens que nos habitam, ela os escancara, nos obriga a vê-los! Estejam ocultos (Ao voltarem do enterro do avô, viu brotar pela primeira vez um sorriso na sempre tristonha avó); sejam pueris (Os poemas estavam tristes enjaulados. Assim que pousaram no papel da menina, ela os ensinou a voar); ou tramem sórdidas cumplicidades (A mãe não entende. O pai justifica: ‘O guri tem tirado boas notas!’ O pai pisca para o guri que lhe sorri em retribuição. ‘Da próxima vez vou tirar foto!’); ou carreguem na violência (Transou com o travesti, gostou, gozou e depois o espancou até a morte). Cada história evoca uma faceta de nossa personalidade que reconhecemos, o que faz com que ela fertilize dentro do nosso solo interior.
Ao visitarmos, por exemplo, nossa dualidade (Levantou nauseada pelo gosto da falsidade, postada por ela mesma, todas as manhãs, no facebook. Vomitou muito antes de mais uma selfie, declarando amor ao marido), inevitavelmente vamos ao que isso ressoa em nós e assim, expandimos nossas fronteiras. Vale destacar o tempero de humor e picardia presente na autora, seja em flagrantes da vida real (De manhã ela era creme dental. De tarde: vassoura. De noite: chaleira), seja em estereótipos da vida política (O guri iniciou a sua carreira com modestos furtos e hoje é deputado federal). Por fim, destaco um conto que bem poderia ser o autorretrato desta talentosa minicontista. Em Horizonte, Joselma parece descrever seu próprio horizonte: “O inatingível desejo de alcançar o novo, de dizer o indescritível, de encontrar forma para o nada e para o tudo através da palavra.” Seu desejo foi atingido, pois nos suscitou o novo, descreveu um real surreal e remodelou formas do nada e do tudo que nos fertilizaram o ser, a alma.
(Rio de Janeiro, fevereiro de 2021)
Dirce Mello é Profª da UFPB aposentada, doutora em Políticas Públicas e Movimentos Sociais. Terapeuta dos métodos Pathwork®, Constelações Familiares e Mãos de Luz. Escritora integrante do coletivo literário feminino Mulherio das Letras/RJ.
