De ‘LOS PAPELES SALVAJES’ (Marosa di Giorgio), por Giuliana M. Seerig
O primeiro enigma sobre a obra de Marosa di Giorgio (Salto, 1932 – Montevideo, 2004) é o de que não se parece a nenhuma outra: sua escrita, como poucas, cria para si um mundo próprio. Apontada pela crítica como uma das vozes mais originais da lírica latinoamericana e considerada uma escritora de culto no Rio da Prata, ainda é um bosque quase intocado no Brasil, pouco conhecida para além dos círculos universitários e ainda não publicada em português brasileiro. “Los papeles salvajes”, reunião de seus livros, transita entre o sonho e a infância desde uma paisagem rural e distante, por onde se cruza, inesperadamente, com o fantástico, onde o maravilhoso brota da terra.
Os trechos selecionados e traduzidos, extraídos do segundo tomo (publicado pela editora Arca em 1991), ilustram elementos recorrentes na poética da autora: os seres míticos que rondam a casa, o abismo das lembranças, o mistério do próprio corpo. Transitando entre poesia e prosa, com suas recorrências e seus milagres, a escrita de Marosa é um convite aos signos e às memórias que restaram indomesticados. Ler Marosa pressupõe entregar-se a um exercício de encantamento e fabulação, sob o risco de deparar-se com o monstruoso, o confuso, assim como com o inocente e o belo. O leitor, tragado para esta atmosfera, sente-se convocado em suas memórias e em suas próprias mitologias; acaba por perguntar-se como se pareceria seu próprio país onírico, que seres o habitariam, o que contariam seus próprios papéis selvagens.

Que país fascinante é o meu país. Tão plano. Com os animais pintados no campo. E as casas, solitárias, ao longe, uma verde, outra rosada, outra celeste. E há uma estrela na metade da tarde – não sei como -, um jasmim de coroa e chama, e, por um instante, a estrela desce, e os animais fogem aterrados; mas a estrela retorna ao seu lugar, e os animais voltam aos seus lugares. E a casa verde, muito mais longe (porque é a mesma) já é rosada, e em frente tem uma árvore ou não tem nada.
Cruzam espíritos aqui e acolá.
Fogem as lagunas e os cerros, os negros trajando ponchos, e todas as coisas têm asas.
*
Aparecia uma planta má nos jardins. Suas folhas eram negras e rajadas; sua flor vermelha, errante, a seguia por vários lados. Era como se usasse máscara, navalha. Todos temeram tê-la em seus jardins; ela, porém, só se mostrou de vez em quando. E ao entardecer, à meia noite. A pequena lâmpada vermelha andando. Durou toda minha longa infância, e observou a todos, e a mim mais do que a ninguém. Como se quisesse me ensinar um segredo muito antigo e abominável.
*
Minha função: rezadeira.
Minha mãe me tirou de dentro de uma macieira, de cima de uma maçã redonda e branca que pendia de seu galho. Eu era escura, furta-cor. E levantava a pata na direção de Deus. E minha mãe disse: Vem aqui, recitadora. E me tomou como filha, me levou para casa, me entregou ao meu pai, às tias, à irmã e às primas, que, ao me mirar de rabo de olho, me quiseram, e até ergueram um pequeno teatro no meio da cozinha, da sala de jantar e da mesa para que prosseguisse com o murmúrio e a oração. E eu representava ao cair da tarde, entre retamas, em silêncio, ou sobre a almofada de gatos.
Hoje, na minha frágil cabeça há um brilhante. Meu pai não está mais aqui.
A prima foi embora para longe.
Minha irmã tem uma filha.
Minha mãe me olha.
E eu,
rezo.
*
Alguma manhã sinto tal temor que me deito tentando ocupar o menor lugar, quase não como, só água.
Levam-me para a mesa, me intervêm cirurgicamente; de bem de dentro de mim, tiram objetos monstruosos: relógios, bonecas, muitíssimos dentes e pentes, e ovos, ovos, ovos azuis, brancos e rosados, infinitamente, como se eu fosse uma pomba de quatro asas. Não sei se morrerei.
… E na metade da tarde, me capturam outra vez.
*
Alfarrobos com vagens demasiado doces, “perinhas de Natal”. A carroça tão leve, quase não existia, sobre o mato com papoulas fugitivas e outras flores, de um ciclamen tão radiante como nunca tornei a ver em lugar algum.
Havia hortaliças no mato; por obra do vento; ou passeando. Uma cenoura, amarela, rosada, passou brilhante, com um chapéu de plumas verdes; cebolas como senhoras algo ébrias, debaixo do véu transparente; a batata sem cintura tinha inveja das favas tão delgadas, que dentro tinham pérolas, porcelana. Ventos do sul, do norte, não entendi bem. Havia um murmúrio incrível em cada coisa. Os cometas, vermelhos, azuis e rosados, voavam alto, por todos os lados, tão finos, tão angelicais, que estavam fora das coisas.
Não me recordo do sentido dessa viagem, aonde íamos, a chegada.
Creio que, ainda, estou viajando.
Essa batata resmunga algo; responde-lhe com sua boca de fogo, aquela rosa.
*
Disse minha mãe: Não te esqueceste da Chácara? E por sua conjuração tornei-me pequena. Subiram aspargos cor de rosa, celestes e amarelos, como lápis de uma escrita amada e desconhecida, e ao cortá-los, escrevi com eles, por todos os lados, palavras, números, letras, que irradiavam um fulgor de pérolas e pedras preciosas.
E caíram então morcegos como panos rosados e grenás; juntei-os por dúzias nos cestos.
E as gatas puseram seus ovos, dos quais, em seguida, saíram gatinhos de olhos cintilantes. E amêndoas, maçãs dos anjos. Minha irmã e minhas primas voavam entre as folhas, levando cestos de pães.
Sim, sim, tudo. A lâmpada sobre a qual pousou uma mariposa que falava. O lugar onde te vi pela primeira vez; o recanto onde me encontraste para sempre. Enquanto isso, as primas corriam cada vez mais alto, voavam cada vez mais alto, distribuindo, aos gritos, convites e cravos.
Giuliana M. Seerig é bacharel em Letras (Português/Espanhol, FFLCH/USP), jornalista (UFSM) e escritora. Contato: giuseerig@gmail.com

“E eu,
Rezo”!
Obrigada pelo olhar delicado e certeiro, Giu!
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Parabéns, acendeu a vontade de ler este livro. ❤️
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Esse bestiário merece uma versão pra nossa língua brasileira ❤ (Pense com carinho) Esse trechinho me deu um gosto de que a Marosa fala a língua da Clarice e de uma botânica medieval (Hildegard von Bingen).
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Foi Marosa que pintou meu retrato de leitor quando jovem, em Montevidéu. Ela que me ensinou que é possível fazer poesia em prosa e até os dias de hoje sofro disso. Mas o que interessa aqui é a tradução. Considero que uma tradução é bem sucedida quando consegue provocar, no leitor dessa segunda língua, o mesmo grau de encanto, de estranhamento, de ambiguedade e de emoção que desfruta aquele que tem acesso direto ao idioma original. Esta tradução, então, é um bom exemplo. Parabéns!
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