De ‘NA MINHA CASA HÁ UM LEÃO’, de Tatiana Cruz
Helicônia da Costa Rica ao sol
Queria lhe falar da elegância das helicônias ao sol
não esmorecem
como são duras as helicônias
dizem que a elegância pesa
e elas tudo erguem
e nada pedem.
Sonho em ser uma helicônia, moldada pela evolução a
ponto de criar em mim mesma os repelentes das pestes,
reduzindo a produção do melado, do néctar, até confundir
os pássaros oportunistas, ficando, assim, amarga e ereta.
Eu, uma helicônia imóvel, que afasta os parasitas, e mesmo
assim elegante e bonita: a helicônia de algum jardim da
Costa Rica, ao meio-dia, sem suor, distinta e protegida.
Você vai caçoar de mim, desinteressado de helicônias,
jardins tropicais, da botânica que modela há séculos a
existência dessa flor que você trouxe agora mesmo para
enfeitar a mesa da casa.
Curioso você não se interessar pela helicônia.
Me sinto então um pouco menos doce.
Não sei manter a pose de uma helicônia.
Ainda não sei de que espécie de flor fui florescer.

Trabalho de parto
Ando descuidada das âncoras
Da planta-raiz
Que me tem só o céu
Ando sem pai nem mãe
Peregrina
Que nem filha
Nem mala
Nem futuro ou certidão
Ando uma perdida atravessada pela história dos outros
Um vão
Ando grávida dentro do coração
Os partos do coraçao atravessam gargantas
E saem assim
Uns descompassos
Uns descuidos de linguagemn
Uma necessidade
De assumir posição
Nascer do coração é nascer por cima
Derramando dramas
Estremecendo vísceras
E tudo um tremor
Uma falta de endereço
E tudo um ajeitar-se depois
O coração
Parindo
E essa lua cheia
A tua boca cheia de canção
A casa cheia de caixa
A caixa de mensagem cheia de sonho
O céu cheio de estrada
Um passaporte sem palavra
Um sentimento que inaugura a pré-história
E eu essa passagem para a era em que a gente nao conversa
A gente se acha
Parir do coração é esse achado sem linguagem
Eu tô grávida do meu coração e ele não cessa de trabalho
de parto de coração dentro de coração pré-linguagem
Mil corações dentro de mil corações em parto
Um trabalho
Tudo cheio de trabalho
Coração parindo
Garganta em trabalho de parto
Não cessa
O trabalho do coração
Em trabalho de parto
Como
Trabalha esse coração

Crustáceos
a tarde é um útero quente
de dentro do vidro da casa
de dentro da última casca
ainda queimo
encharcada
a tarde é um coração viscoso
forjado de camada sobre camada
engomado, molhado,
coberto de vapor d’água
a tarde é um signo mutável
um buraco
ou um esconderijo
um feto
um gemido
uma chaleira
que chia
uma enchente
em copo d’água
a tarde é casulo
domicílio de bicho
em condição de salto
a tarde é um guardado
um segredo
um baú de fotografia antiga
um café recém-passado
o silêncio
aguado
liquefeito
um defeito
destilado
a tarde
é um nome do meio
um parente morto
o próximo bebê
o espelho pra dentro
a tarde é o casamento
do que foi e do que devia ter sido feito
a tarde, hoje,
é um elemento
líquido em situação
de transbordamento
um lamento que voa
em um aposento
apertado
a tarde é esse imenso
silêncio
que fala

Pimenta-do-reino
Se perguntarem por mim
Digam que estou atarefada
Fazendo bolos
Sovando pães
Cheirando a carne
Amassando o alho com a mão
Vou tirar uma por uma as raminhas do
alecrim
Provar o sal
Encorpar o molho
Engrossar o caldo
Vou adoçar o creme
Derreter o queijo
A cozinha tem o tempo meu
Falamos a mesma língua
0 idioma da espera
Num silêncio que respeita a minha solidão
Se perguntarem por mim e eu não responder
É porque morri entre as panelas
Minúscula como um grão de pimenta
Que ninguém percebe até provar.

Silencio de bicho quando chove
Deveria ser permitido que se fizesse um silêncio absoluto
ou um silêncio de mar. Mas não qualquer mar. O silêncio
do mar dentro do mar. Como é o silêncio dentro da barriga
da mãe.
Como é o silêncio dos animais quando ainda chove.
Como a gente faz silêncio depois do amor.
E é possível ficar triste. Porque é uma fração.
Tem sol e guarda-sol e salva-vidas e vida.
E útero em expulsão e tudo grita e tudo finda.
Parece começo. Mas é tudo a mesma coisa.
Deveria ser permitido mais tempo.
No avesso.
Deveria.
Tatiana Cruz escreve poemas, faz colagens manuais, trabalha como jornalista e estuda poesia falada feita por mulher. É curadora do projeto 1MinuteSlam no Instagram, onde reúne e divulga o abrir voz poético de mulheres ao redor do mundo e co-fundadora do Sarau Nosotras, evento literário feito apenas por mulheres e exclusivo para frequentadoras mulheres.

Obrigada, Lucio querido. Tua leitura é importante pra mim. E tua Sepé um bálsamo. Uma necessidade.
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