De ‘O CONGRESSO DA MELANCOLIA’, de Léo Tavares

ANGST

Sob o sol, deitados sobre toalhas, deitados sobre pedra molhada, assumindo a morosidade, o sumo sonolento da tarde. Corpos de betume, corpos de cinábrio, e, entre eles, figuras de ectoplasma, costas de rebater o branco. Ele olhava a certa distância, nada era muito longe e nada parecia perto, fazia a leitura da cor só para registro íntimo. Sungas multicoloridas, listras nas sungas, rugosidades, texturas, superfícies lisas, volumes. Pequenas montanhas, vau e vale.

Eram cinco ou seis, deitados, o sol nas pedras, nas omoplatas, os cristais de quartzo despontando da terra como perfuração da beleza. Lá adiante, a cascata, a correnteza turbilhonante, o trovejar da água, coisa de eternidade, e aqui e ali espelhos, pequenas piscinas entre as rochas, lisuras e arranhados, ímãs geológicos para joelhos descuidados, para pernas aflitas, para fricções debaixo d’água. Dois se levantaram, retesamento, pulsação de panturrilhas, viscosidade, lustro, todos os poros mancomunados com a força, a recomposição dos músculos depois do descanso.

Diadumeno de Policleto, fotografia, 1894, Découvertes Gallimard, n. 36.

Ele olhava, agachado, sentindo o incômodo percorrer a espinha. Tinha as pernas fracas e se chamava Anselmo. Alguém dizia: entra na água, Anselmo! E ele fazia o gesto que comunicava: passo. Há pouco estavam todos, os seis ou sete, se ele pudesse ser contado, abrindo latas quentes de cerveja e rindo com voz grave, de cavernas aquáticas. Será que tinha cavernas ali, lá pelas veredas rochosas, avançando na mata? A água caía, ininterrupto estrondo, e seguia angulosa, desvios e desvios, vias de pedra, e ia levando as horas.

Tarde quente e avermelhada, Anselmo fechava os olhos para se desviar dos colegas, da visão dos colegas, dos risos de quartzo e do multicolorido das sungas. Tinham vindo juntos, tinham atravessado a pé a cidade, pequeno cravar de casas do século dezoito sobre um vale, terra vermelha, poeira e fachadas, tudo silencioso como deve ser a sesta. E iam juntos, os meninos da cidade com os meninos forasteiros, os meninos da rua da beira do rio e os universitários, todos compromissados com a própria idade, os últimos mais ou menos compromissados com o estudo das artes, todos de algum modo aficionados pelas mesmas imagens. Pegaram a estradinha de terra para a cachoeira, o rio também era vermelho, também as pedras se avermelhavam, carecas, e quando a água se levantava e as lambia era como se o rio estivesse numa lida, como se dissesse tira, tira, mas nada remove sangue muito antigo. Um lugar tão pequeno e tantas igrejas, tantos museus, tanto casarão, vocês viram o chafariz? Viram o sino, os instrumentos de moer, as pias e os relicários? E só Anselmo andava aflito, chegando à beira da água, deveríamos estar às nove horas no congresso. E a tarde avançava e não tinham comparecido, os três que seriam monitores, assistentes, que estavam lá por serem bons alunos, que tinham sucumbido no calor a ideias mais sensoriais e gratificantes do que podiam oferecer os professores e palestrantes num auditório gelado de ar-condicionado, num semiescuro de carpete e ácaros, de luz de projetor de imagens.

A gente vai se foder, pessoal, ele insistia, da pedra.

Quieta, bixa. Vai nada. Relaxa.

E logo depois dos sanduíches do almoço, compartilhados à sombra de um oitizeiro, ele começou a sentir o enjoo. Não disse nada, só ficou mais e mais quieto. Um dos colegas vasculhou a mochila e tirou de dentro um livro grosso.

O Lúcio desistiu oficialmente do alemão, disse o outro. Vamos comemorar!

E abriram as cervejas, espuma se desmanchando nas pedras quentes, escorrendo pelos tornozelos de Lúcio, espuma que se agarrava aos pelos das pernas, depois se aconchegava entre os dedos dos pés. Cheiro adocicado de álcool e suor, Anselmo buscava o cheiro, era difícil não ceder ao enjoo, mas era mais difícil não olhar para Lúcio. Seria penoso cancelar o sobrevoo da visão sobre o corpo de Lúcio, daquele seu posto privilegiado, um pouco acima dos demais, no desnível das pedras. Ondulava sobre a curva do pescoço de Lúcio: o osso que saltava do ombro, o arredondado que encimava o braço, os músculos todos, sempre em pulsação estranha sob os pelos pretos, invisível e adivinhável, como se o corpo fosse tomado de sobressaltos apenas por ter muita juventude. E por mais que Anselmo tivesse a mesma idade que eles, sentia-se velho como a pedra onde estava sentado. Tinha olhado para dentro da máquina de moer enferrujada no mercado público e visto um escuro, um escuro vermelho e espiralante, que poderia ser ativado. Se tivesse se demorado mais, talvez a máquina o tivesse tragado. Naquela cidade sentia que o seu corpo era chamado pelas paredes das fachadas, pelas esquadras das janelas, pelos batentes das portas, andava sacolejado, em descompasso, os pedregulhos pontiagudos do calçamento o puxavam, o campanário o seduzia para uma ascensão irrecusável antes da queda, as igrejas coloniais são baixas, de frontão arredondado, mas o cair é mais brutal sobre chão de pedra antiga, feito para machucar pés, quebrar costas, para empenar rodas e entortar cavalos.

Uma palavra em alemão para cada um. Esse é o jogo. Lúcio destacava páginas do dicionário de alemão, folhas amareladas que o sol furava. Anselmo! A do Anselmo tá aqui. Angst. Vejamos. “Angst: medo, temor, ansiedade. Termo usado para descrever um conflito intenso. O termo angst diferencia-se da palavra furcht, que se refere normalmente a uma ameaça material, enquanto angst normalmente é uma emoção não direcional.” Combinou, não combinou?

Rumorejar de quartzo, vozes de cavernas, gotejantes ecos. A veia no pescoço de Lúcio. Os joelhos geométricos de Lúcio se elevando para o azul calcinado, as coxas de uma rigidez de estátua. E os tantos pelos. Juncos na ventania. Ver os ângulos possíveis para se ver Lúcio.

Depois, eles se jogaram na água. Anselmo tentava ficar em pé. Parecia que o estômago queria pedir passagem, queria se emaranhar na caixa torácica. A página arrancada do dicionário ia ficando empapada na superfície da água, estava presa em um espelho ovalado de pedra e ia submergir a qualquer momento. Ele ficou olhando, maturando o tempo de olhar. O que se revolvia no estômago vinha. Agachou-se em direção ao espelho, somente quando a folha já tinha sucumbido, e expeliu da garganta, sem ruído, uma coisa terrosa e quente, uma coisa carnuda que a água quis. Um peixinho passava. Os outros não viram e ele permanecia inclinado, a água se cansava de vibrar e se aquietava, lhe devolvendo o rosto. Um rosto com um peixe sobreposto.

Sentiu respingos gelados sobre as costas, depois uma presença morna, fazendo sombra.

Tá tudo bem?

Olhou para o corpo de Lúcio, de baixo. O amigo se sentou ao seu lado, a mão do amigo em concha sobre o seu ombro, o braço de Lúcio lhe envolvia as omoplatas, o corpo de Anselmo fazia força para não ceder ao próprio peso. Voltou o rosto para ele, estavam muito próximos, sobrancelhas negras, eram sobrancelhas-ímãs, tinha algo entre elas que catalisava, que fazia força, que fazia se querer algum tipo de ruína.

Eu vou morrer, Lúcio.

Princípio de brilho de quartzo, rompido, barulho que se retém, que recua até o ponto da sombra.

Que é isso? Não. Não vai, não. A mão deslizando sobre as costas, retornando ao ombro, convicta, pele de amaciar coisa convexa, pedra pontuda. Vai ficar tudo bem.

Anselmo lhe beijou o pescoço, a veia pululante, irrupção que se adiava, que se adiava, que iria romper depois, depois. Lúcio fechou os olhos, enquanto via em escarlate, sob as pálpebras. As sobrancelhas desciam, os lábios mostravam passagens. Ranhuras, veios. Os outros voltaram, em aspersões múltiplas, milhões de gotas atiradas dos músculos, tudo se refletia e se refratava, era preciso levar a mão à testa para fazer aba, para poder ver, apertando os olhos.

Cabeça d’água. Avisaram.

A minha palavra é schnabeltier, disse um deles, e traduziu: ornitorrinco.

Arrumavam as mochilas, calçavam tênis.

Vem tempestade.

Anselmo olhou para trás, protegido pela copa do oitizeiro, enquanto os ventos se arregimentavam. Fazia esforço para divisar algo no espelho d’água por onde tinha olhado.

A gente continua, disse Lúcio, baixinho, antes de começar a caminhada. Anselmo se esgueirou para fora da sombra, devagar, e o outro seguia em frente, adiante, de costas. Anselmo caminhava e as pernas eram fracas. Fez menção de dizer alguma coisa, de pedir alguma coisa, chegou a fazer um sinal com a mão, mas a água berrava sobre as pedras e a sua voz se perdia, afogada.

Léo Tavares. Nascido em São Gabriel, no Rio Grande do Sul, vive e trabalha no Distrito Federal. É Doutor em Artes Visuais pela Universidade de Brasília. Pesquisa a relação entre a palavra e a imagem. Autor dos livros de contos O Congresso da Melancolia (Urutau, 2021), Ruibarbo do deserto (Patuá, 2019) e Os Doentes em Torno da Caixa de Mesmer (Modelo de Nuvem, 2014), prêmio Contista Estreante, pela FestiPoa Literária, de Porto Alegre.

FICÇÃO

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