De ‘O’BRIEN DEVE SOFRER’, de Eduardo Pacheco Freitas
POR QUE O’BRIEN PRECISA SOFRER?
A resposta para a pergunta do título acima pode ser dada de duas maneiras. Na primeira delas, diremos que não há motivos para O’Brien sofrer, tendo em vista o cara bacana que ele é. Já na segunda, apontaremos que, para um personagem, não basta ser bacana, é preciso conflito, drama e alguma dose de sofrimento para que ele se torne interessante. E é exatamente isso — o fato de O’Brien vivenciar algumas situações terríveis ao longo das sete temporadas de Star Trek: Deep Space Nine — que colabora para que o personagem se torne um dos mais incríveis da série.
É claro que não se trata de dizer que O’Brien é legal porque ele sofre. Não, nada disso. Ele é, de qualquer modo, um personagem admirável. Mas a carga de sofrimento a qual ele foi exposto por roteiristas impiedosos e desalmados, que se refestelavam ao torturá-lo, sem dúvida alguma deixou Miles Edward O’Brien um personagem muito mais saboroso. Mas, antes de mais nada, é preciso algumas palavras sobre a série que nos apresentou as aventuras e desventuras de O’Brien.
Star Trek: Deep Space Nine é a minha série favorita. Essa afirmação já deixa claro que, além de predileta em geral, é a que mais gosto dentro do universo inteiro de Star Trek. E isso não é pouca coisa tendo em vista que, enquanto escrevo estas linhas, no verão de 2021, Star Trek já nos contou mais de 800 histórias na soma de episódios e filmes. Para assistir tudo na sequência, você precisaria ficar na frente da TV durante 25 dias, 24 horas por dia. Haja pipoca. DS9 é a melhor série de Star Trek, pois ela tem os melhores personagens. Pra mim, toda boa história precisa de bons personagens. Muito além de efeitos especiais ou tecnologias avassaladoras, ao fim e ao cabo, o que torna uma série interessante são os dramas, os dilemas e o destino dos seus personagens.
Evidentemente, toda série de Star Trek possui personagens legais. Mas, em geral, pode-se observar que, no elenco principal, existem sempre dois ou três personagens muito bons e alguns outros medianos. Essa é a diferença brutal que encontramos em DS9: todos os seus personagens principais são incríveis e, além disso, a maior parte dos personagens recorrentes são maravilhosos. A certa altura, DS9 chegou a ter mais de 30 personagens entre principais e recorrentes. Todos eles com grandes histórias para contar. Além disso, a caracterização dos tipos que habitam ou frequentam a DS9 é bastante complexa, nuançada e dúbia.
É possível observar na maior parte dos personagens principais da série uma espécie de duplicidade de caráter não encontrada nas suas predecessoras e sucessoras. Sisko, por exemplo, é tanto um nobre oficial da Frota Estelar quanto o Emissário dos Profetas de Bajor. Kira é, por sua vez, uma ex-guerrilheira que lutou contra o poder estabelecido e agora faz parte do poder.
A trill Dax é apenas uma jovem oficial de ciências que carrega um simbionte, mas ao mesmo tempo é a portadora das lembranças de 300 anos de vidas acumuladas dos hospedeiros deste. Já o jovem doutor Bashir aparenta ser apenas um médico zeloso e empolgado pela aventura nos limites da fronteira final, porém é um ser humano aprimorado geneticamente. Odo é ao mesmo tempo líquido e sólido, vivendo na difusa linha que separa esses dois reinos.
O ferengi Quark, capaz de fazer qualquer coisa para acumular fortuna, é igualmente capaz de gestos altruístas pouco comuns em sua sociedade. Por fim, encontramos o personagem que é objeto deste pequeno livro: Miles Edward O’Brien, um simples homem do povo e simultaneamente herói.
Quando DS9 começou, nós já o conhecíamos da série anterior, Star Trek: The Next Generation, na qual foi apenas um mero coadjuvante, praticamente um figurante. Mas é apenas em DS9, fazendo parte do elenco principal, que o ator irlandês Colm Meaney terá a oportunidade de desenvolver completamente o também irlandês e Engenheiro-Chefe Miles O’Brien. Desta vez poderemos ver o Chief em toda a sua capacidade humana e profissional.
O’Brien se mostra um amigo leal (a amizade com o jovem doutor Julian Bashir é a mais sincera e bonita de toda a franquia), um bom e fiel marido (resistindo bravamente a algumas tentações pelo caminho) e um técnico capaz de fazer voar elegantemente pelo espaço, como uma espaçonave, até mesmo aquela “monstruosidade cardassiana”, forma carinhosa pela qual Benjamin Sisko se referiu à estação DS9. O’Brien é o cara comum. Ele é o trabalhador, o membro da classe operária, do proletariado. Não à toa, quando o ferengi Rom organiza uma greve1, é ao lado dos grevistas que O’Brien se posiciona.
Depois do trabalho, ele gosta de tomar uma cerveja com seu amigo Bashir, explorar aventuras históricas nas holosuits do Quark’s (também junto ao seu inseparável amigo) ou simplesmente jogar dardos. Sabemos que O’Brien possui uma faceta erudita (é um exímio violoncelista), mas ele prefere mesmo as diversões populares. E é precisamente no fato de O’Brien ser a representação do homem comum, em meio a toda a glória dos oficiais da Frota Estelar, que os diabólicos roteiristas da série encontraram a brecha para fazê-lo passar por sofrimentos atrozes.
Vejamos o que o roteirista Robert Hewitt Wolfe disse a respeito dos episódios em que O’Brien deve sofrer:
Se O’Brien passa por algo torturante e horrível, o público sente isso de uma forma que não sentiria com qualquer um dos outros personagens. Porque todos os outros personagens tinham, mais ou menos, eu não diria uma vida mais heroica, mas uma vida nobre, enquanto O’Brien era só um cara tentando viver sua vida, e se você o tortura, aí está a história.
Um pouco sádico, não? Mas a tese faz sentido. Em geral, os trabalhadores costumam se ferrar muito. É natural que O’Brien também se ferre. Assim, em meio a toda a nobreza da elite da Frota Estrelar, encontraremos em DS9 o cara comum que será tão ou mais heroico que grande parte dos oficiais comissionados. Embora, muitas vezes, pague caro por isso.
Mas, além dos sofrimentos impostos a O’Brien que você verá nas páginas seguintes, o nosso querido personagem também passou por outras poucas e boas, nos proporcionando alguns dos melhores episódios da série. Teve aquela vez que ele precisou assumir a função de um narrador místico que contava histórias para afastar uma entidade maligna (O narrador – DS9, T1E14); ou então quando ele se tornou um vilão de filmes de espionagem em um programa holográfico do doutor Bashir (Nosso homem Bashir – DS9, T4E10); teve também a vez que, com a Jadzia Dax e o Bashir (sempre ele!), O’Brien foi reduzido ao tamanho de uma formiga… (A incrível nave que encolheu – DS9, T6E14). São muitas as histórias em que Colm Meaney, com aquela voz tonitruante, faz O’Brien roubar a cena!
Entretanto, nas páginas a seguir nos dedicamos aos episódios categorizados pelos próprios produtores de DS9 como O’BRIEN MUST SUFFER! Deste modo, este livro trata-se de um pequeno e despretensioso estudo acerca de um aspecto muito bem determinado e específico da trajetória de um único personagem ao longo das sete temporadas de Star Trek: Deep Space Nine: os sofrimentos de Miles O’Brien, naquilo que se convencionou chamar de episódios em que O’BRIEN DEVE SOFRER!
No final das contas, a maior parte desses episódios funcionou muito bem, agradando ao público sedento pelos sofrimentos do homem comum. Mas a grande sacada é que não se trata de sofrimento pelo sofrimento. Não há gratuidade nessas histórias. Pelo contrário, são histórias muito bem elaboradas que promovem um estudo de personagem. A cada uma delas, vemos O’Brien ser desenvolvido e aprendemos quais as suas reações às situações extremas pelas quais passa. Vemos sua integridade física, seu caráter e até mesmo a sua sanidade serem testadas por meio de grandes provações. É certo que ele sobreviveu a todas, mas é certo também que carregou para sempre as cicatrizes dessas experiências traumáticas.
Eu dizia no início que o que me cativa em DS9 são os seus personagens. Eles são, de fato, os que mais são desenvolvidos em termos dramáticos e narrativos ao longo da série em toda a história de Star Trek. E dentre eles, não há dúvida, Miles é um dos que mais enfrenta situações que testam a sua humanidade e, assim sendo, é um dos que mais evolui. O’Brien vive o drama e tira lições disso. É possível que não tenha existido um personagem em Star Trek que tenha passado por tantos e tão intensos sofrimentos. Logo, por eu achar que essa história merece ser contada, é que este livro foi escrito.
Ao contrário do meu livro anterior, Star Trek: Utopia e Crítica Social, que foi pensado para além do público trekker, acredito que esta obra que está em suas mãos (ou na tela do seu dispositivo), em função do seu recorte bastante específico, poderá atrair de maneira especial o interesse do trekker que ama Deep Space Nine. E se isso acontecer, já me darei por satisfeito. Porém, pela genialidade desse conjunto de histórias que abordo aqui, penso que a obra poderá divertir qualquer um que goste de seriados televisivos.
Escrevendo esse livro quando a pandemia do coronavírus completa um ano, quando mais de 250 mil brasileiros já perderam a vida, quando o Brasil além de assolado pela doença é vitimado pelo governo mais incompetente, vulgar, grotesco e imbecil da sua história – um governo genocida – , resta a mim desejar que as páginas a seguir transmitam a mensagem de que não há sofrimento que dure para sempre. Especialmente se agirmos como O’Brien que, inconformado com o seu destino, tomou as rédeas da sua própria vida e venceu o infortúnio.
Bem-vindo à estação Terok Nor, pegue um raktajino e aproveite a leitura.
Porto Alegre, fevereiro de 2021.
Eduardo Pacheco Freitas é historiador, professor e escritor. Também é autor de Star Trek: utopia e crítica social. Escreve no blogue Apenas um trekker.
