De ‘ORIENTE’, de Thomaz Albornoz Neves

C H I N A

FU TA SHIH
497 – 569

Tenho uma acha na mão
E não a tenho

Se caminho, cavalgo
um búfalo de água

Não há margem se a ponte
flui no lugar da correnteza

WANG WEI
701 – 761

CASA DE CAMPO NO RIO WANG

Quase um ano sem voltar
à montanha do Leste

Já é tempo de semear
os grãos da primavera

Na chuva, parece tinta
o verde escuro das ervas

A flor sobre o rio pende
a ponto de incendiar-se

RETORNO A SONG

O rio Yi é seda na brisa
A água flui por sentimento

Ao passo, meu cavalo
segue os voos migratórios

Poente. O outono deserto
A muralha em ruínas

No remoto monte Song
chego outra vez ao refúgio

O VALE DAS FLORES AMARELAS

Trilha íngrime. Dez mil voltas
Já paramos por três vezes

A fila some nas curvas
entre os cimos e a mata

Som de chuva nos pinheiros
de correnteza nas rochas

Cantarolo se o abismo
torna as vozes mais graves

Lá embaixo, pela névoa
o sol é branco ao poente

e os salsos parecem flutuar
ao redor do lago azul

Nunca tive paz no claustro
A imensidão vence a inquietude

MEDITO NO ÁTRIO

A névoa prateada vira neblina
Molha o átrio ainda fechado

Radiante, o verdor do musgo
transpassa os puídos da túnica

LI BAI
701 – 762

O homem da fronteira ignora
as letras por toda a vida

Arco tenso em meia-lua
Cada flecha abate duas gruas
Bravura que abrange o deserto
Temida por quem a admira

No outono, pela planície
chicote serpeando na neve
adestrado falcão por escolta
cavalga ao confim do reino

Atrás da cortina, como pode
poeta competir com ginete?

*

O homem vive em trânsito
Só morto volta à sua morada
Breve via entre o céu e a terra
e não é mais que o pó dos anos

Em vão, o coelho da lua
busca o elixir da eternidade
A árvore milenar desmorona
em pilhas de lenha seca

Na terra a ossada branqueia
e a raiz pressente a primavera
Olho ao redor e suspiro
Há algo sólido na glória da vida?

*

O monge de Chu
toca em minha honra

Seu mandolim faz sentir
a onda do ar nos pinheiros

Som que purifica fontes
Longe, ecoa um sino

O sol se põe lentamente
e em névoa o monte se esfuma

MENG JIAO
751 – 814

O ARCO-ÍRIS CINÁBRIO
Um momento no paraíso
Mil anos entre os homens

Moves a torre de casa
e tudo perde substância

O lenhador voltando à aldeia
vira pó em outro poente

Nada é nem jamais será
o que foi durante este dia

Mas a Ponte de Pedra espectra
seu arco-íris cinábrio

BAI JUYI
772 – 846

Na sabedoria da luz
a razão universal

não é mais que o corpo
de um nume morto

O que é a essência?
O que nutre o nume morto

Cânfora, incenso perfeito
Sua chama não deixa cinzas

*

A essência carece de essência
Se há vazio, é vazio abandonado

Para entender o sentido
esquecer a palavra

Teu sonho enquanto sonhas
vacuidade das vacuidades

Esperas frutos da flor de ar?
Pescas nas águas da miragem?

A supressão do ato é o ato
Pois o que na verdade é

Foge do inativo, escapa da ação

SU DONGPO
1037 – 1101

Abro a janela
para que entre a andorinha

Furo a cortina
para que a mosca saia

É por amor ao camundongo
esta migalha no chão

e por piedade da falena
a lamparina apagada

O VINHO CLARO, A CAPA FINA

A taça clara, o gole é suave
Mais fácil dobrar se a capa for fina
O feio do belo, o vinho avizinha
Esposa e amante, o tempo as iguala

Se buscas por ti em teu próprio destino
segue a prudência e o anonimato
Evita o pó das décadas, o vento Norte,
a Sala Imperial de Audiências

Cem anos são muitos, mas também acabam
Que há em ser cadáver rico ou pobre?
Pérola na boca do morto ilustre
à espera do ladrão de túmulos

A poesia é a sua própria recompensa
O justo é o inimigo de si mesmo
Bem e mal, dor e alegria
Véus da vacuidade

SOBRE UMA PINTURA DE YU-KO

Se Yu-ko pinta bambus
Vê o bambu
não vê a si mesmo

Pintando se abandona
e ao frescor do bambuzal
se torna bambu ele próprio

Ido Lao Zi
que outro teria o poder
de sair de si sem um gesto?

NALAN XINGDE
1655 – 1685

Daqui ao horizonte, em turbas
cavalgam guerreiros maltrapilhos

Uma estrela cai brilhando
até sumir entre as estrelas

Confio o sono ao cavalo e sonho
abrir ao meio o arroio do Lobo

Falseia um casco, eu acordo e de repente
toda a minha vida volta para trás

IMPRESSÕES NO TEMPLO DE SHUANGLIN

Coração em cinzas. Longas tranças
ainda não desbastadas pelo monge

O vento e a chuva e o vento novamente
Assim vidas e mortes se sucedem

A vela sozinha não conhece a solidão
A razão como um muro abandonado

YUAN MEI
1716 – 1797

No aguaceiro o rochedo brilha
O nevoeiro penetra na pedra

A chuva parte, a névoa regressa
O abismo não se move do espaço

J A P Ã O

EIHEI DOGEN
1200-1253

Somos sopros entre
o nascimento e a morte
a morte e o nascimento

A via desconhecida
e a via do conhecimento
recorremos sonhando

De tudo o que vivi
dura ainda
o som da chuva

no alpendre
certa noite
em meu retiro de Fukakusa

INGO
1209 – 1281

Por setenta e três anos
retirei água do fogo
Um inseto sou agora
E o mundo reverbera
ao menor roce com meu corpo

RIUZAN
?

Transparência, a lua no azul
Gelo no oceano até o horizonte

Defina amplo, defina denso
A cauda do dragão enrosca a onda

YAGYU-TAJIMA
?

FRAGMENTOS DO TRÍPLICE TRATADO SOBRE A ESPADA

A mente imóvel é o vazio
que flui e realiza o mistério

O vazio é a ausência na mente
E a mente ausente a quietude

Abandona o pensamento
como se não o abandonasses

Adestra tua técnica. Observa
como se não a observasses

Se reages antes que a mente
estarás à frente da destreza

E que a imagem da mente seja
o vazio próprio do espelho

Se olhas com o vazio primeiro
serás reflexo do que olhas

Só depois foca teus olhos
um palmo antes do corpo

Se avanço sem movimento
ajo, mas não me movo

Ser como a lua nas ondas
sempre feita e desfeita

Ou de madeira, um boneco,
que a disciplina animou.

TACHIBANA AKEMI
1812 – 1868

Alegro
se abrindo o papel
o pincel faz
escrever
melhor do que eu sabia

Se
depois de cem dias
lutando em vão
com as palavras
o poema surge pronto

Ou quando
mesmo sem mestres
compreendo
o sentido das doutrinas
de árduo entendimento

E mais ainda se
– algo raro –
há peixe na mesa
e meus filhos murmuram
contentes enquanto comemos

Ou
ao abrir um livro ao acaso
reconheço alguém
mais semelhante a mim
do que eu mesmo

TAKAHASHI
1901 – 1987

Além das palavras, este nada interior
em que me torno para permanecer

Apenas isto é preciso, meditar
Eu penso, respirar com todo o corpo

A realização é tão pura
está além de tudo, do amor inclusive

Vislumbro viver em qualquer lugar
De nada preciso, nem mesmo da vida

*

O vento sopra nos pinheiros

Ouça: rumo ao princípio
de um passado sem fim

Ao ouvir, ouves tudo.

*

Não são as palavras
apenas palavras
Longe disso
Eu ouço o que
faz com que fales
e eu escute

Poemas incluídos em Oriente, primeiro volume de traduções de poesia clássica chinesa e japonesa de Thomaz Albornoz Neves. No prelo.

POESIA

4 comentários Deixe um comentário

  1. Só poetas deveriam traduzir poesia. Ainda que a deixem impregnada com suas qualidades. E que qualidades tem o poeta Thomaz Albornoz Neves, considerado um dos grandes poetas brasileiros por críticos que li depois de tê-lo como um dos maiores do Brasil. Quanto a deixar sua marca nos poemas, não sei se isso é crítica, mas li estes poemas com a paixão que leio os poemas do tradutor. Essa coisa de ler a imagem, o concreto. Essa coisa do arroubo.

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  2. Animais

    Abro a cortina do salão para entrarem andorinhas,
    esburaco o papel das janelas para saírem as moscas.
    Porque estimo os ratos, deixo-lhes bagos de arroz,
    porque lamento a sorte das falenas, apago a candeia.

    Minha tradução do poema de Su Dongbo
    Um abraço e felicitações pelo seu excelente trabalho.
    António Graça de Abreu, em Portugal

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